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quarta-feira, 12 de março de 2014

O ódio conservador


POR CLÓVIS GRUNER

Alex tinha oito anos, gostava de lavar louças, não gostava de cortar o cabelo e era um pouco desobediente – provavelmente não mais nem menos que os garotos de sua idade. Desde o dia 17 de fevereiro ele não lava mais louça, não desobedece e nunca mais precisará cortar o cabelo. Foi espancado pelo pai, Alex André Moraes Soeiro, com quem vivia desde o ano passado, que o achava afeminado e queria que ele aprendesse a “andar como um homem”. Morreu com inúmeros hematomas pelo corpo e o fígado perfurado.

Renato Duarte Horácio, de 16 anos, queria levar de Gastão Vidigal algumas boas lembranças depois de passar e passear pela cidade nos três dias de carnaval, acompanhado da mãe e do irmão mais velho. Fotografou lugares, fotografou a folia, fotografou pessoas. Confundido com um pedófilo e levado à delegacia, terminou seu feriado espancado até a morte por um “justiceiro”, Fabrício Avelino de Almeida, que o encurralou em frente ao prédio da Delegacia de Polícia e o agrediu com seguidos e violentos socos na cabeça.

As mortes precoces, trágicas e violentas de Alex e Renato são a expressão de um estado de coisas que cada vez mais escapa ao controle e nos ameaça a todos. Estamos envolvidos por um ambiente de ódio crescente. Alimentado diuturnamente, o ódio que viceja hoje país afora já não se conforma em permanecer nos ambientes virtuais, onde não faltam anônimos (e alguns não anônimos) dispostos a trocar a inteligência e o bom senso pelo simples ranger de dentes. Ele se impõe, cada vez mais e mais perigosamente, nos espaços do mundo dito “real”, estimulando e chancelando ações como as de Alex, o pai, e Fabrício. Alex, o filho, e Renato, não foram as primeiras vítimas dessa escalada de ódio e violência e, temo, não serão as últimas.

CULTIVAR O FASCISMO – O fenômeno não é inteiramente novo, embora esteja a ganhar contornos mais sombrios. A atravessá-lo e sustentá-lo, uma moral e uma conduta conservadoras (porque não se pode falar, no Brasil, de um “pensamento conservador”) que não apenas empobrecem o debate e o ambiente políticos, mas disseminam a truculência e legitimam a intolerância.

Como disse, isso tudo não é inteiramente novo. Em 2010, principalmente durante as eleições presidenciais, já era possível perceber que havia algo ruim no ar que respirávamos. Naquele ano praticamente todo o debate eleitoral do segundo turno foi pautado pela agenda conservadora e assistimos a candidatura de José Serra e o PSDB aderirem aos grupos fundamentalistas, ao passo que Dilma Rousseff e o PT se mostravam incapazes de oferecer uma alternativa verdadeiramente progressista. Temerosos de confrontar os grupos religiosos, a candidatura petista sinalizava o rumo que o governo tomaria depois da candidata eleita, culminando com o vexame da eleição de Marco Feliciano para a presidência da CDHM em 2013.

Recentemente escrevi no Chuva sobre uma certa monotonia conservadora. No artigo apontava, entre outros, dois traços fundamentais do que Murilo Cleto chamou, em texto lapidar, de “a onda”: a tendência crescente entre os grupos e indivíduos reacionários a ver no outro não um adversário a ser confrontado, mas um inimigo a ser eliminado; e a dificuldade de conviver em um ambiente democrático e de livre circulação de ideias. Na ocasião, me referia principalmente ao debate travado nos ambientes midiáticos – ou talvez seja mais correto afirmar a falta de debate –, pontuado por uma ausência de ideias e de pluralidade que beiram à monotonia e caracterizado pela mixórdia argumentativa – a lei de Coqsics, na definição de José António Baço.

Mas ainda mais preocupante e nada monótono é que o conservadorismo e os sentimentos de ódio que cultiva e dissemina estão agora a orientar não apenas o blá-blá-blá ressentido teclado no conforto covarde do anonimato. Eles estão matando gente inocente: quando um pai espanca o filho de oito anos até a morte porque ele era afeminado”, e um justiceiro mata um adolescente de dezesseis anos porque suspeitava que ele fosse pedófilo, os assassinos podem se chamar Alex e Fabrício. Mas por detrás de seu gesto paira a sombra de um Jair Bolsonaro e de uma Rachel Sheherazade, que tem motivos para estarem felizes e orgulhosos, junto com os milhares que se reconhecem neles e se identificam com sua postura e discursos protofascistas. Não é todo mundo que goza do privilégio de matar sem nem sujar as mãos. E ainda receber aplausos por isso.