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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O papa é Bope

POR CLÓVIS GRUNER

Sou ateu, mas isso não me impede de reconhecer e respeitar determinados aspectos do cristianismo. Os santos católicos, por exemplo: simpatizo com um ou outro, não pela sua santidade, coisa em que não acredito, e mais por suas obras ou trajetórias de vida. Francisco de Assis é um deles. Consta que era um rebelde na juventude. Rebeldia que, a se pautar pelas muitas hagiografias escritas a seu respeito, não abandonou inteiramente após sua conversão. Em um período marcado pela opulência – estamos a falar da chamada “alta Idade Média” – da igreja católica, Francisco de Assis confrontou a instituição a que pertencia reafirmando alguns valores que estão na origem do cristianismo, ainda no primeiro século depois da morte de Cristo, tais como a pobreza e a humildade.

Eleito papa, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio adotou o nome Francisco, e com a escolha pretendia reatar os vínculos da igreja com os mais pobres e humildes. Se a intenção foi boa, há de se lembrar ao sumo pontífice que de boas intenções o inferno está cheio: entre os dois Franciscos, séculos de história a separá-los. E se o primeiro perturbava, com seu apelo ao despojamento, a opulência e o poder da igreja romana, este reafirma ambos. Do primeiro, o segundo talvez preserve o carisma, exaustivamente mencionado pela mídia nativa – embora, sejamos honestos, não é difícil esbanjar simpatia se você substitui alguém como Bento XVI. Mas as semelhanças param por aí.

A POLÍTICA DA INDIFERENÇA – O papa Francisco está à frente de uma instituição que, embora em crise, permanece sólida e poderosa. E que não parece nenhum pouco disposta a respeitar os limites impostos a ela pela modernidade política nos últimos dois séculos. Uma das evidências foi a escandalosa soma de dinheiro público gasto para financiar parte da visita papal, algo em torno de 120 milhões de reais. Como se não bastasse, a Jornada Mundial da Juventude serviu de palco para o proselitismo conservador, de forte teor machista e homofóbico, que marca a trajetória das igrejas de um modo geral e que no caso da Igreja Católica Apostólica Romana, acentuou-se principalmente depois do pontificado de João Paulo II, ele  mesmo um notório conservador ligado à Opus Dei.

Na última semana e não por coincidência, aumentaram as pressões para que a presidenta Dilma Rousseff vete projeto de lei, já aprovado no Congresso, que obriga os hospitais públicos a atender em caráter emergencial e multidisciplinar vítimas de violência sexual, garantindo-lhes acesso a antibióticos para evitar doenças sexualmente transmissíveis, antivirais contra o HIV, cuidados ginecológicos, assistência psicológica e social e medidas de “profilaxia da gravidez”. Indiferentes à criminalização e prisão de mulheres que abortam clandestinamente ou a vida de outras milhares que morrem anualmente em função das más condições higiênicas de seus abortos e, principalmente, insensíveis ao sofrimento das vítimas de estupro, grupos religiosos que se autoproclamam “pró-vida” querem que Dilma vete integralmente o projeto – o que, parece, ela não fará. Com o propósito de fortalecer a posição da igreja, foram produzidos e distribuídos durante a JMJ pequenos fetos de plástico e terços com fetinhos abortados, entre outros artefatos bizarros. Tudo muito esclarecido.

OSSO DURO DE ROER – Neste sentido, é emblemático o gesto de Francisco ilustrado pela imagem no alto deste texto. E para entender sua dimensão, menciono uma passagem do filme “Hannah Arendt”, em que a filósofa alemã assiste na televisão as notícias sobre o sequestro de Adolf Eichmann e seu julgamento em Israel. Em um dado momento, o âncora informa (e se tratam de imagens de época, retiradas de arquivo) que o nazista alemão havia fugido para a Argentina depois da guerra com o auxílio do Vaticano, que lhe fornecera passaporte e outros documentos falsos.

Se provoca certo incômodo em alguns, a informação certamente não causa estranhamento em quem conhece um pouco da história recente. As evidências estão aí a mostrar que a igreja católica apoiou em graus variados e por diferentes razões todas as ditaduras de direita ao longo do século XX: o fascismo italiano de Mussolini; as ditaduras de Franco e Salazar, na Espanha e em Portugal, respectivamente; os muitos golpes civis militares na América Latina (Paraguai, Chile, Argentina, Brasil...). Com o nazismo alemão, há quem diga que o Vaticano foi, na melhor das hipóteses, conivente. Mas não é difícil encontrar quem acuse Pio XII de ser o “papa de Hitler” e o Vaticano de manter com a Alemanha nazista uma relação para além da simples conivência silenciosa. Claro, sempre houve e haverá clérigos dispostos a enfrentar e resistir à barbárie, como foi o caso no passado de um Francisco de Assis e no Brasil contemporâneo, de Paulo Evaristo Arns e Pedro Casaldáliga, entre outros, que usaram sua autoridade política e moral para denunciar os crimes da ditadura. Mas eles são a nota dissonante na história de uma instituição que preferiu acarinhar ditadores a proteger os perseguidos.

Saber disso não diminui a indignidade de ver Francisco abençoar os soldados do Bope, a Tropa de Elite que um mês antes da benção papal assassinou dez moradores da Favela da Maré e é responsável também pelo desaparecimento de Amarildo há mais de duas semanas. Se não minimiza a indignidade, ao menos pode servir para aplacar um pouco a surpresa. O gesto de Francisco reafirma um compromisso e uma postura históricos da igreja católica: afagar os assassinos ao invés de perguntar-lhes sobre suas vítimas.