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quinta-feira, 10 de julho de 2014

A Copa, o senador e o bacharelismo virtual


POR CLÓVIS GRUNER

A derrota para a Alemanha adiou por mais quatro anos o sonho de milhões de brasileiros. Mas o mundial serviu para que exercitássemos nossa reprimida verve intelectual: não faltaram análises que pretendiam, nada modestamente, desnudar a identidade brasileira una e imutável, expor nossa verdade histórica e iluminar os caminhos e descaminhos de nossa política. Com as redes sociais se transformando em uma espécie de “puxadinho acadêmico” e o futebol servindo para “estudo de campo” (com o perdão do trocadilho), era pra se esperar novos e interessantes achados. Os resultados de tanta pesquisa, no entanto, são duvidosos.

Houve um esforço, principalmente depois de terça-feira, para associar o resultado da Copa com as eleições de outubro, como se ambas as coisas – futebol e eleição – estivessem automaticamente relacionadas. Não é verdade: se em 1994 o Brasil conquistou o tetracampeonato e o candidato governista, FHC, foi eleito, a coisa não se repetiu em 1998, quando a seleção perdeu a final em uma partida, lembremos, também vergonhosa, mas o resultado não influenciou as urnas e FHC foi reeleito. Por outro lado, em 2002 a seleção foi pentacampeã e o candidato da situação, José Serra, perdeu para Lula, que foi reeleito em 2006 e elegeu Dilma em 2010, apesar das campanhas pífias nas Copas da Alemanha e da África, com resultados ainda piores que os desta, em que chegaremos, pelo menos, ao quarto lugar.

Não estou negando a relação entre futebol e política. Mas dificilmente alguém decide o voto movido pelo resultado de um torneio esportivo, independente de nossa paixão pelo futebol. Assim como a reeleição de Dilma não estaria garantida com o hexa, uma eventual eleição, seja de Aécio Never ou de Eduardo Campos, não será resultado da derrota: é bom a oposição ter claro que os sete gols alemães não substituem ideias nem, tampouco, um programa de governo. É certo que Dilma fará um uso político do fato da Copa ter acontecido sem que se concretizasse a tragédia anunciada pelos muitos anjos do apocalipse. Mas por outro lado, não faltará quem lhe cobre a ausência de transparência; os operários mortos na execução das obras; a ação truculenta da polícia e do exército; os milhares de cidadãos brasileiros removidos à força em função das obras, entre outras coisas.

ANTROPOLOGIA DE TECLADO – Mas os equívocos não foram só políticos. No day after da semi-final, internautas se apressaram a associar a supremacia alemã em campo à sua superioridade intelectual e científica: a atestar nossa incompetência, circulou pelo Facebook uma estatística confrontando o número de prêmios Nobel conquistado pela Alemanha a inexistência de um único brasileiro. A resposta veio no mesmo tom: descobrimos atônitos, graças ao diligente patriotismo de plantão, que a terra de Hegel amarga o vexame de seus 7,5 milhões de analfabetos o que, subentende-se, coloca no mesmo patamar os seus e os nossos problemas. Heideggarizando: é-de-dar-dó-do-ser-aí.

Sei que a vida, o universo e tudo o mais não cabem em um ‘post’ de rede social. Mas isso poderia servir justamente para tomarmos um pouco mais de cuidado com comparações e publicações apressadas e desprovidas de fundamento, tais como a do senador Álvaro Dias. O parlamentar paranaense já havia sido motivo de chacota ao cismar com a bandeira cubana no clip da Copa. Na semana passada, a solidarizar-se com as vítimas do desabamento de um viaduto em construção na capital mineira, o tucano preferiu tripudiar e tentar faturar eleitoralmente com a tragédia. Pois ontem o senador presenteou-nos com um texto anônimo, publicado em sua página no Facebook, exemplar em sua pretensão de fazer, de nossa suposta identidade, um diagnóstico que se quer histórico e antropológico, mas que não chega a tocar as fronteiras da mediocridade.

ENFIM, UM PROJETO PARA O PAÍS – Intitulado “Mais que um jogo”, o texto não apenas desfila alguns lugares comuns do vira-latismo de boutique, mas os eleva a um outro nível, tendo como fio condutor a máxima que abre a breve digressão: a derrota da seleção brasileira representou “a vitória da competência sobre a malandragem!”. Piora: nas linhas seguintes ficamos sabendo que “o Brasil cansou de ser traído pelo seu próprio povo”, e que nós todos, além de malandros e incompetentes, somos parasitas corruptos e incorrigíveis. E não apenas nós, mas nossos pais, mães, avôs e avós: o legado da copa será o “exemplo para gerações futuras”, não para a nossa ou de nossos genitores e progenitores. Somos, diz o autor desconhecido e repete o senador, além de desonestos, assassinos, ladrões e traiçoeiros atávicos.

Não sei dizer o que mais me incomodou, se a pretensão arrogante de fazer o diagnóstico de uma sociedade complexa, diversa e contraditória como a nossa a partir de um único jogo, ou o oportunismo malandro e eleitoreiro do senador. No primeiro caso, fico a imaginar qual a repercussão do texto se, por exemplo, o resultado fosse outro e se tivéssemos chegado à final: seríamos um outro povo, segundo o autor daquelas mal traçadas. E se é legítimo reduzir o que somos a uma derrota no futebol, que dizer do fato que a mesma seleção vencida em campo na terça sagrou-se cinco vezes campeã mundial em torneios anteriores? Como disse um amigo, pra fazer antropologia barata sobre o “ser brasileiro” a partir de uma partida de futebol, já basta o Roberto DaMatta.

Até ontem à noite, quase 33 mil pessoas haviam compartilhado o pequeno libelo, e pelo menos duas coisas explicam sua repercussão. Uma delas é o tal oportunismo eleitoreiro, explícito na menção maldosa e malandra ao ex-presidente Lula. Outra é aquilo que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira lata”. Quando cunhou a expressão, o “anjo pornográfico” pretendia arrancar-nos dessa incômoda e humilhante condição, a de vivermos em uma espécie de sujeição voluntária – parafraseando La Boètie. Álvaro Dias e assemelhados não pretendem outra coisa senão perpetuá-la, porque essa é a condição sobre a qual construíram seu projeto de poder. Outro dia reclamei que a oposição não tem um programa de governo porque não está disposta a pensar o país. Me enganei: uma coisa e outra estão lá, naquelas poucas linhas compartilhadas no Facebook do senador tucano. Ao menos para isso nos serviu a Copa.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

#copa2014: torcer até vai; festejar não

POR CHARLES HENRIQUE VOOS

Quando o Brasil entrou em campo na abertura do mundial de futebol, na tarde de ontem, lembrei-me de quando era criança e gostava de acompanhar todos os jogos da Copa. Além de colecionar figurinhas, ou estudar as tabelas, o futebol por si só era o objeto principal daquele sonho infantil. Ao retornar a consciência para a realidade, em 2014, estava eu, em frente ao televisor, torcendo para a seleção brasileira.

Poderia ser como sempre foi. Mas não foi.

Sempre defendi aqui no blog, na sala de aula e em outros espaços nos quais convivo de que a FIFA, juntamente com o governo federal e os gestores estaduais e municipais de todas as 12 sedes, promoveram um atentado aos direitos básicos garantidos na Constituição Brasileira de 1988. É notório e sabido para a maioria que a Copa foi uma coisa inventada que se sobrepõe ao planejamento das cidades, porque em nome dos megaeventos vale tudo: remoções de famílias (estima-se que aproximadamente meio milhão de pessoas foram afetadas direta ou indiretamente) para construir estádios no lugar, operários morreram devido a obras de estádios feitas às pressas, em dispensas de licitações e outras situações já cantadas há muito tempo, ao contrário dos aproveitadores de uma situação eleitoral.

Aproveitadores estes que se situam dentro de grupos políticos (ou possuem simpatia com estas organizações) sobretudo pelas eleições que se aproximam. O problema da Copa é generalizado, pois foi construído pelos gestores dos 12 governos estaduais e mais os 12 governos municipais de cada sede, compostos por representantes dos mais diversos partidos políticos, da esquerda à direita. As remoções e violações do Direito à Cidade foram operacionalizadas por todos, sem exceções, e não somente pelo Palácio do Planalto. Longe de não reconhecer a culpa de quem está lá, xingar a presidenta faz parte de um desconhecimento sobre tudo o que vem acontecendo com a política urbana dos megaeventos desde que foram anunciados em meados dos anos 2000. É desconhecer a profundeza das questões que levam milhares às ruas há muitos anos (muito antes das "Jornadas de Junho"), lutando pela função social do espaço urbano.


Os pobres ficaram longe dos estádios. A miscigenação tão característica de nosso país não era a realidade da Arena Corinthians Itaquera São Paulo Isentão, pois eu só via brancos em grande maioria no estádio. Sinal de alguma coisa errada. Sinal de que a Copa, desde o começo, não foi para todos. Não foi para quem mais sofre com os problemas diários de nossa nação. Nem de longe.

Sendo assim, não consegui festejar e nem ao menos gritar "gol", como fizera em outros momentos de minha vida. Fiquei torcendo pela seleção, mas longe do clima de "festa" e "oba-oba". E muito menos entrarei na onda de uma massa que vaia sem dar os créditos aos verdadeiros protestos, mirando em uma parte dos responsáveis por tudo o que vemos aí.

O jogo acabou, a Copa acabará mês que vem. A atual questão urbana brasileira, por sua vez, parece não ter fim.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Pit stop, demagogia e austeridade

POR CLÓVIS GRUNER

Pra começo de conversa: são hipócritas e eleitoreiras a imensa maioria das críticas aos gastos presidenciais em Lisboa no final de semana. O assunto só mereceu tamanho destaque porque se trata de uma presidenta de esquerda, e sempre há gente disposta a compartilhar factóides vindos da direita e masturbar-se indignar-se com eles, principalmente em ano eleitoral. Por outro lado, ele serviu para expor uma vez mais a pobreza - de idéias, argumentos, proposições - em que estão mergulhados a oposição e parte da chamada grande imprensa - o que, no Brasil, é praticamente a mesma coisa. 

Há muito que criticar no governo Dilma. As políticas de segurança pública e de direitos humanos engataram marcha à ré nos últimos quatro anos; pode-se dizer o mesmo da política indigenista. Na educação, os índices continuam muito aquém do esperado, a mostrar que o propalado aumento no número de vagas, principalmente nas universidades, é medida insuficiente sem investimentos estruturais em todos os níveis. Além disso, a ampliação do arco de alianças comprometeu ainda mais o outrora projeto político petista. Os resultados todos conhecem: a co-responsabilidade do governo na eleição de Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos no ano passado é um deles. A presença da senadora ruralista Kátia Abreu entre os aliados do governo, outro.

O problema é que a oposição não está disposta a um confronto político pautado em projetos e programas. Em parte, porque tem teto de vidro: é difícil criticar as alianças e os aliados petistas depois de ter feito o mesmo nos anos de gestão tucana. Além disso, é delicado posicionar-se sobre temas para os quais ela tem pouco a mostrar no passado, quando foi governo, e ainda menos a oferecer em um futuro próximo, quando pretende ser governo. Mesmo o esforço por transformar as manifestações de junho passado em grandes atos “contra tudo” resultou em um grande nada: Dilma segue liderando as pesquisas, e nem mesmo a entrada em cena de um político de carreira como Aécio Neves conseguiu mudar o quadro. Sobra pouco, e daí protestar contra a Copa e fazer de dois dias em Lisboa um escândalo político parece ser uma boa opção.

DINHEIRO PÚBLICO, CAPRICHOS PRIVADOS – Li gente defendendo os valores gastos no pit stop presidencial argumentando que, afinal, ela estava em missão oficial, que nada há de ilegal nos gastos e que eles são compatíveis com a dignidade do cargo. Outros lembraram que Dilma apenas repete o que é prática comum entre nossos governantes e, por certo, não faltou quem lembrasse das muitas viagens de Fernando Henrique, uma delas com Regina “eu tenho medo” Duarte como convidada, sabe-se lá porque. É tudo verdade. Mas o buraco é mais embaixo. A gastança de Dilma em Lisboa – e em Roma, no ano passado – é sintoma de um mal antigo. Ela, Lula, FHC, todos sem exceção, reiteram um comportamento recorrente em nossos representantes políticos: a ostentação à custa do dinheiro público.

A coisa vem de longe e os exemplos abundam. Basta ler as crônicas de Machado de Assis sobre a vida na corte durante o Segundo Reinado, ou o panorama nada alvissareiro que faz Lima Barreto dos primeiros anos da República: não satisfeitos em fazer da coisa pública extensão de seus interesses e vícios privados, nossas elites políticas se acostumaram a usar o dinheiro público para sustentar e alardear seus muitos caprichos. Em uma cultura onde o consumo e a ostentação são dois dos principais signos de distinção social, não chega a ser uma surpresa ver os governantes valendo-se de uma coisa e outra para reafirmarem os privilégios que seus cargos lhes conferem. Também não surpreende ouvir vozes antes emudecidas apenas agora reagindo, só aparentemente preocupadas com a austeridade. Ostentar não é em si um problema; problema é quando um ex-operário e uma ex-guerrilheira decidem dar um rolezinho.  

Não, não estou aqui a defender que Dilma deva hospedar-se em um albergue e comer um PF no boteco da esquina. Mas oito mil dinheiros a diária, mesmo a de uma suíte presidencial, é muito. Sei também que não resolveríamos nossos problemas economizando os poucos “trocados” gastos em Lisboa. Mas seria no mínimo simpático, além de um gesto simbolicamente significativo, a presidenta de um país onde milhões ainda contam com o Bolsa Família para complementar a renda, dar o exemplo e hospedar-se em um bom hotel mais barato que o Ritz ou o Westin Excelsior. Parafraseando um ex-candidato a prefeito de Joinville: dá pra fazer.

O presidente do Uruguai, José Alberto Mujica, tem sua própria receita; ela não precisa obviamente ser seguida à risca, mas poderia servir como parâmetro. Por outro lado, difícil não anotar a esquizofrenia: os mesmos – colunistas, políticos de oposição – que hoje criticam a ostentação de Dilma, provavelmente a chamariam de demagoga – que é como se referem a Mujica – se ela decidisse praticar uma política da “não ostentação”. Ser um presidente ou presidenta de esquerda é meter-se em uma encruzilhada: se gasta e ostenta, esbanjou dinheiro público; se não gasta e é humilde, é demagogia populista. Mas é este o nível da disputa política no país. E não vai melhorar. Ruim para nós, que teremos de ver o debate público reduzido a isso ou a algo pior nos próximos meses, até pelo menos as eleições.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Alianças políticas, biografias e o exemplo americano


POR CLÓVIS GRUNER

Há coisas que me agradam no modelo americano de democracia – e claro, há outras que não, mas delas não falarei hoje. Uma: nos Estados Unidos, ex-presidentes não podem ocupar nenhuma função pública ou disputar outro cargo eletivo. É claro que eles continuam a fazer política; o objetivo da legislação não é afastá-los da vida pública. No horizonte, e sempre de um ponto de vista ideal, está o entendimento de que em uma democracia, a renovação – mesmo que dentro de um mesmo partido – é tão importante como o direito de escolha.

No Brasil é diferente. Com o anúncio da união entre Eduardo Campos e Marina Silva para as eleições de 2014, as especulações ganharem espaço nos noticiários e redes sociais. Entre elas, uma me chamou a atenção: sentindo-se ameaçados, tucanos e petistas teriam chegado a aventar a possibilidade de lançarem FHC e Lula, no lugar de Aécio Neves e Dilma Rousseff. Acho pouco provável. Mas que tal tenha sido sugerido, revela uma das muitas fragilidades da nossa cultura política, o personalismo. É essencial à democracia que partidos sejam capazes de forjar novos líderes. Além disso, uma eleição se vence com nomes, certamente, mas também e principalmente com projetos.

O caso do PT é mais emblemático. Pesquisas apontam uma vantagem significativa de Dilma. Mas falta um ano para as eleições, e o partido precisa ser capaz de manter o favoritismo e continuar a convencer os eleitores com base em realizações passadas e presentes e em planos futuros. O carisma e os altos índices de aprovação de Lula não podem ser um deux ex machina eleitoral. Por outro lado, as declarações de Marina tampouco sugerem que seu interesse é, de fato, renovar o debate político, mas simplesmente substituir um dos atores da atual polarização, o já combalido PSDB.

Tudo junto e misturado, parece mesmo que estamos à deriva. Os dois maiores partidos brasileiros e o que surge como promessa de renovação já deixaram claro seus projetos de poder. Mas nenhum deles tem, efetivamente, um projeto para o país.

ERA PROIBIDO PROIBIR – Vai longe o tempo em que Caetano Veloso desancou os estudantes que o vaiaram durante o IV Festival de Música Brasileira – mais precisamente, 45 anos. Se há quatro décadas e meia o então jovem compositor ecoava o Maio francês, hoje ele se vale de sua conhecida verborragia para disfarçar o indisfarçável e justificar o injustificável. Abrigados na associação “Procure Saber”, capitaneada pela empresária e ex-atriz Paula Lavigne, ele, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan e Roberto Carlos, entre outros, defendem a manutenção dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que proíbem a publicação, para fins comerciais, de biografias não autorizadas. Na prática, isso significa que biógrafos só podem publicar desde que devidamente autorizados pelos biografados ou seus herdeiros.

Não vou me alongar. Tudo que gostaria de dizer sobre o tema – e até um pouco mais – já foi dito pelo jornalista Mário Magalhães, biógrafo de Marighela, em seu blog. Mas me causa espanto ver nomes cuja resistência à violência da ditadura e seus muitos meios de censura é amplamente conhecida, posicionando-se tão descaradamente a favor dela e com argumentos pífios – entre outras coisas, a “Procure Saber” reivindica que os biografados recebam uma porcentagem sobre as vendas de suas biografias, sob a alegação de serem os personagens de tais narrativas. A coisa beira ao absurdo: recentemente Roberto Carlos, o mesmo que, tal um inquisidor, conseguiu que recolhessem das livrarias sua biografia e só voltou atrás na decisão de mandar à fogueira centenas de exemplares na última hora, entrou com um pedido para proibir a venda de um livro – originalmente uma dissertação de mestrado em História, um trabalho acadêmico portanto, não uma biografia – sobre a Jovem Guarda. Solidário ao “rei”, Chico tentou desqualificar o historiador Paulo César Araújo, autor da biografia, chamando-o indiretamente de desonesto. Foi ampla e documentalmente desmentido.

Nos Estados Unidos biografias não autorizadas são permitidas por lei, sob a alegação que a liberdade de expressão e o direito à informação estão acima do direito à privacidade, especialmente quando se trata de personalidades públicas. Desacordos são resolvidos na Justiça. No Brasil prevalece o entendimento contrário. Ora, mas se as noções de público e privado já são, em si, problemáticas, elas o são ainda mais quando envolvem figuras públicas – sejam elas artistas ou não. Primeiro porque há, sim, a inegável e quase “natural” curiosidade do público sobre a vida de seus ídolos, por exemplo. Mas não é só, nem o principal: justamente porque públicas, suas trajetórias se confundem com a história do país. Saber delas, de suas escolhas, seus percursos, seus engajamentos, suas experiências e ideias é saber um pouco mais sobre nosso passado. Nos coibirem de conhecer suas biografias ou nos limitar às autorizadas, é privar o leitor de conhecer aspectos da história que, muitas vezes, só nos chegam quando narradas sob o ponto de vista de quem as viveu.

Caetano fala muito, mas não diz o óbvio: o que está em discussão não é o direito à privacidade, mas a pretensão de monopolizar o direito ao passado. Eles não entenderam nada e saíram dessa diminuídos. Como disse um amigo: “os ídolos da velha MPB encolheram”.

PS.: No dia 11 de outubro o Brasil perdeu Gabriela Leite. A mais destacada defensora dos direitos das prostitutas brasileiras, mais conhecida pela criação da marca Daspu, Gabriela morreu aos 62 anos, vítima de câncer. Ela sabia que as fronteiras entre a vida privada e a esfera pública eram tênues. E soube usar a primeira em benefício dos embates que travou na segunda. Este texto é uma homenagem a ela.