VALDETE DAUFEMBACK NIEHUES
Após participar de uma reunião com o objetivo de elaborar um documento que irá representar os anseios dos moradores do Jardim Paraíso em audiência pública sobre segurança, saí do local com a sensação de estar lendo em texto de Marx sobre o fim do capitalismo motivado pelas suas contradições. O acúmulo de informações e os silêncios velados em razão do medo atentam para um olhar observador de quem não consegue se apropriar inteiramente das intenções geradoras da violência que fazem refém a sociedade e a divide por um discurso que classifica seres humanos em “bandidos” e “cidadãos do bem”, em que o primeiro pode ser eliminado em beneficio do segundo.
Ao me expressar sobre a sociedade nestes tempos de valorização da meritocracia e de atribuição à falta de moral familiar como responsável pelo aumento da violência urbana, corro o risco de ser mal interpretada porque não consigo entender esse olhar desviante da realidade que aponta negativamente para as pessoas mais vulneráveis e mais expostas às conseqüências deste sistema demente e perverso que concentra a renda e espalha miséria pelo mundo. Quanto mais o capitalismo exclui, considerando que esta é uma de suas funções, mais nos tornamos expostos aos riscos de toda natureza, nos defendendo daqueles que imaginamos ser nossos inimigos, dos quais supostamente poderemos sofrer agressões físicas ou patrimoniais, ou por discriminação pelo fato de não possuirmos um capital econômico ou cultural que nos coloque no rol da meritocracia.
Neste sistema resta pouco espaço para a solidariedade e cultivo dos laços comunitários. Estamos nos distanciando de uma experiência pautada em interesses coletivos e abraçando uma nova perspectiva marcada por uma relação de interesses de grupos identitários que se fecha em círculos e, por vezes, dotados de sentimentos de intolerância.
O próprio ecumenismo que tanto se prezou há décadas sucumbiu diante da arena do mercado religioso. Igrejas disputam a fidelidade de seu público, individualizando as almas, a fé e as ações. O seu caráter religioso de “ser no mundo” foi destituído ao convergir à inércia de “estar no mundo”, que significa não interagir com a comunidade, mas que assimila tão somente um fim em si mesmo.
Na administração pública desenhou-se um trabalho de atendimento em rede, o que efetivamente não aconteceu. Quem precisa dos serviços públicos em vários órgãos sabe do que estou me referindo. E então acabamos nos acostumando e naturalizando a maneira de ser no atendimento porque acreditamos que o melhor a fazer é adequar as necessidades da população aos meios de que dispomos de acordo com o que o Estado oferece, ou seja, ousamos pouco e cada vez menos em matéria de direitos.
Temos dificuldades em compreender o significado de segurança pública e por isso reivindicamos o controle da violência com a construção de mais cadeias, presídios, redução da maioridade penal, enquanto negligenciamos a necessidade de investimento em políticas públicas que visem à prevenção da violência.
Investimentos em educação são considerados gastos e não como atributos de prevenção. O modelo de escola que temos já não serve mais para educar nossas crianças. Fizemos um processo inverso de eficiência em educação, uma vez que fechamos as unidades escolares de pequeno porte e transformamos as escolas urbanas em verdadeiros depósitos de crianças, sem as mínimas condições de sustentabilidade. As crianças já não sabem mais o que é pisar na grama, descansar à sombra de uma árvore, apreciar um canteiro de flores. Com aparência cinza, o pátio escolar se revestiu de concreto e brita, provocando stress porque o ambiente não oferece condições para os alunos praticarem brincadeiras que liberem energias e estimulem a criatividade.
Quando a violência urbana desperta nossa atenção só conseguimos enxergar o tempo imediato e alegamos como causa a desestruturação das famílias, a falta de religiosidade, os métodos de ensino. Porém, praticamente não ouvimos mais vozes ecoarem sobre um dos reais motivos deste desacerto e com isso tenta-se tratar da febre e não de suas causas.
Refiro-me a este modelo de capitalismo de rapina que não sossega enquanto não estrangular suas vítimas, conforme denunciado pelo Papa Francisco.
Precisamos agir com coragem para não aceitar apenas as poucas ferramentas de que dispomos para atuar na prevenção da violência. Precisamos ser ouvidos, mas para isso temos que agir em rede, com entrelaçamento de ideias, de atitudes, de solidariedade e não permitir que sejamos fantoches suspensos em cordões a obedecer ao comando do articulador das forças produtivas destruidoras.