quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Ninguém é profeta em sua terra: uma (tentativa de) autocrítica

POR CHARLES HENRIQUE VOOS

Às vezes os novos caminhos de nossas vidas surgem de forma repentina. Lembro-me bem de quando foi publicado no jornal, há 10 anos, meu primeiro artigo de opinião. Na época era um secundarista com vontade de me graduar em Letras. Desisti e achei as Ciências Sociais por um acaso, graças àquela publicação no jornal. Falar sobre a cidade, escrever e debater era o que eu mais gostava na adolescência. Nada contra, mas bem menos chato que as possíveis aulas no curso de Letras. De lá para cá, muita experiência e a presente decisão de parar por uns tempos.

A tarefa de expressar a sua opinião publicamente é árdua e desgastante. Faz você perder amigos, empregos, e o seu círculo social fica cada vez mais restrito às pessoas que pensam parecido com você, graças a tal homofilia. Comportamento que partiu de todos os círculos sociais em que eu estava inserido. Também me ensinou a lidar melhor com as críticas, algo que raramente você consegue quando é jovem. E ah, aceitar os erros, que foram muitos.

Neste período também mudei muito meu posicionamento político sobre várias questões, felizmente. Essa mudança talvez não tenha sido bem aceita por alguns, mas foi por outros. Enquanto uma ligação termina, outra começa. Expressar a opinião é mergulhar neste telefone sem fio interminável, sob tutela da opinião alheia.

Sinto-me na obrigação de dar um tempo, até porque expressar abertamente aquilo que penso me cansa demais, principalmente perante o cenário caricato que nossa cidade vem ganhando nos últimos anos (parece que nada melhora ou se desenvolve), e também a abertura para novos lugares e novas possibilidades profissionais e pessoais. O blog Chuva Ácida foi muito importante neste processo pois consolidou algo diferente para a cidade, e deu a todos os leitores opiniões diárias sobre os acontecimentos e que geralmente não eram vistas nos jornais. Quase 1 milhão de acessos em três anos. Pode parecer pouco, mas são 500 pessoas que, todos os dias, leem algum texto por aqui publicado. Só tenho a agradecer ao Jordi, Baço e Felipe que me convidaram para esta aventura, aos demais colegas de blog e a todos os leitores, gostando ou não do que eu escrevi.

Se não fosse este espaço, dificilmente teria condições de escrever abertamente sobre a UFSC em Joinville, sobre os assuntos de planejamento urbano da cidade (mobilidade urbana, LOT, gestão democrática da cidade, Praças da Cidade, IPPUJ, etc.), sobre as diárias dos deputados (que mudaram o sistema após nossa denúncia) e tantos outros temas em que "dei a cara" mais de 150 vezes. Fico feliz por estarem surgindo outros nomes e se consolidando outros, sinal de que algo novo está em uma necessária gestação.

E de novidades é que se faz a vida. Foram 10 ótimos anos neste ciclo entre blogs, TV, rádio e jornais. Não me arrependo de nenhuma linha escrita, ou de posicionamento político tomado. Talvez só de algumas mudanças que não consegui fazer, principalmente nas minhas passagens pela gestão pública. Mas como nem tudo dependia de mim...

Por mais irracionais que algumas escolhas possam parecer, elas fazem parte do nosso amadurecimento, nesta busca incessante por medalhas de reconhecimento para tudo o que ocorre em nossas vidas. Todos temos uma história, cheia de confusões e certezas, mas tudo o que queremos é fazer algo de diferente, que seja a nossa imagem. Ao fim, todos temos as nossas medalhas, advindas simplesmente da vontade de mudança. E, em Joinville, diante das dificuldades, o que pode parecer simples, banal e frívolo para uns vira grandes conquistas pessoais para outros. Alteridade.

Como já dizia o ditado, "ninguém é profeta em sua terra". Tá na hora da minha terra aprender com seus próprios erros, sem precisar do chato aqui para "encher o saco".

A vibe agora é outra.

PS: cadê a Leroy Merlin?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O racismo naturalizado


POR FELIPE CARDOSO

Após entrar em um longo e produtivo debate no meu Facebook sobre a “ação solidária” para com Adriano, morador de rua de Joinville, pude perceber que as ideologias colonizadoras de branqueamento, higienização e etnocentrismo não só fazem parte da nossa sociedade, como já estão naturalizadas, o que as tornam mais difíceis de serem desconstruídas e contribuem para a propagação do racismo. Logo, e infelizmente, o racismo já se naturalizou na nossa sociedade.

Nem todo o material teórico parecia ser capaz de explicitar e exemplificar a minha análise crítica sobre o caso. Então, recorri a minha monografia para tentar explicar um pouco mais do que acontece diariamente com os corpos negros, mutilados em busca do padrão de beleza que, em sua maioria, é europeu.

Branqueamento e higienização nada mais são do que ferramentas do racismo, que é causado pelo etnocentrismo, por onde pretendo iniciar a minha explicação.

Nas expedições em busca de novos territórios, o europeu ao se deparar com um novo povo, teve a experiência do choque cultural. Esse choque se dá pelo encontro com a diferença que representa uma ameaça, pois fere a própria identidade cultural.

Isso explica o motivo dos europeus inventarem diversas teorias que comprovavam que os africanos eram inferiores. Tal pensamento europeu é reconhecido como etnocentrismo, o que Everardo P. Guimarães Rocha, em seu livro “O que é etnocentrismo”, define como:

“... uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.”.

Então, após tomarmos o choque ao vermos Adriano, automaticamente tentamos colonizá-lo com a nossa visão de mundo, com os nossos valores e pontos de vistas que fomos ensinados a ter e propagar. O incômodo que um morador de rua nos causa é justamente por ele representar o “diferente” no nosso mundo. Não procuramos entende-lo, respeitá-lo e preservá-lo. Tentamos de todas as formas traze-lo para a nossa realidade, para o nosso cotidiano, pois o “eu” está certo, o centro somos “nós”, com empregos, carros, rotina. Ele está à margem, é o desempregado, o inferior, representa o insucesso.

Além de ser morador de rua, Adriano é negro, e optou por deixar seu cabelo crescer.

Com a educação brasileira pautada na Europa e a construção e preservação da cultura escravista desde o período colonial, sempre nos foi apresentado e ensinado que o que era do branco era bom e, tudo o que tinha de ruim, pertencia ao negro. Assim, a partir da representação do negro enquanto um ser não civilizado, o branco forjou a sua própria imagem como civilizado e distinta por sua superioridade. Dessa maneira, o negro começou a desprezar a si próprio e tomar como verdade a imposição do branco.

“O processo escravista de colonização, associado a uma catequese opressora, conseguiu engendrar mudanças fundamentais na auto visão do negro. Após gerações de perda absoluta de direitos e dos valores, a visão do negro sobre si mesmo absorveu influências da concepção escravista da época” (AZEVEDO, Eliane –Raça - Preconceito e conceito, p. 48).

Tudo isso somado a tentativa de branquear o país, principalmente a região sul, trouxe ainda mais consequências ruins para a população negra.

Para tentar permanecer e sobreviver no Brasil industrializado, os negros tiveram que se adaptar ao modelo imposto pela elite branca da época. Com intuito de lucrar, a indústria de cosméticos passou a produzir produtos exclusivos para os negros recém-libertos, fazendo-os pensar que, utilizando tais produtos, ficariam brancos e seriam, assim, incluídos na sociedade. Alisar o cabelo, passar pó de arroz, afinar o nariz, a boca... Gerando, assim, uma crise na identidade étnica negra.

(Uma das exigências dos brancos para com os negros era que eles negassem seus traços, suas culturas, suas raízes e podemos perceber que tais exigências permanecem até hoje).

 Mas a partir da década de 1960, com o início da luta por direitos civis dos negros norte-americanos, houve uma grande mobilização para a preservação e o respeito da cultura e do povo africano, que acabou influenciando muitos países, inclusive o Brasil. Muitos movimentos começaram a surgir aqui e o cabelo afro tornou-se símbolo dessa época. O black power representava a resistência negra.

Mais uma vez, sentindo uma eminente ameaça, a elite branca decidiu enfraquecer tais movimentos, investindo duramente contra as comunidades negras.

No início da década de 1990, os black powers perderam a força, depois de muitos investimento para manchar a imagem de quem apreciava e preservava a cultura afro. O black power perdeu espaço para os cabelos raspados e, principalmente, alisados. E foi aproveitado dessa situação para construir, novamente, no imaginário popular, que o cabelo grande representava a falta de higiene e que o melhor padrão a ser utilizado pelos homens negros era o cabelo raspado e, para as mulheres, alisado. Essa ideologia foi passada por meio de piadas, publicidade, novelas, com comentários semelhantes ao do tempo da escravidão.

Depois da virada de século é quase raro você encontrar pessoas negras usando black power. Adriano fazia parte dessa raridade. Mesmo em uma cidade provinciana, racista, que cultua uma única cultura, Adriano representava a resistência negra. Destacava-se ainda mais por ter um estilo diferente de todos os outros moradores de rua. Todas as roupas que ele ganhava, ele vestia, e assim, seguia. Mas o que dava todo o estilo e toda a sua identidade era o seu cabelo. E, pelo visto, era o que mais incomodava também... Os outros, é claro.

Durante três anos tentaram convencê-lo a cortar. Ele resistiu o quanto pode, até aceitar.

Mas o fato de ele passar por uma mudança “ESTÉTICA” ganhou destaque.  Adriano, que era tratado como qualquer outro morador de rua (à margem da sociedade, invisível) recebeu muita atenção por ter deixado seus traços para trás. Mais uma vez houve festa na Casa Grande. Mais um negro negou a sua raiz. Mais um negro entrou para o padrão de beleza branco. Ficou “IRRECONHECÍVEL”, ou seja, quase um branco.

“Dissemos quase, agora pode voltar pra rua, pra marginalidade”.

“Agora ele está agradável aos “nossos” olhos. Agora não terei mais aquele choque cultural quando estiver indo para a casa ou para o trabalho. Agora ele está do jeito que “eu” queria e gostaria que ele sempre estivesse. Que conforto. Que alívio.”.

Esse ato praticado com Adriano representa sim o racismo, a falta de entendimento e aceitação da cultura negra. E achar que é um simples caso de solidariedade, sem tentar analisar tudo isso que foi citado, toda a história por trás da nossa vivência ou é maldade, ou inocência, ou falta de conhecimento. O que está sendo criticado aqui é a perpetuação dessa cultura racista, colonizadora, recheada de padrões, rótulos e ignorância.

Se Adriano fosse branco, de olhos azuis, com traços finos, talvez tivesse a oportunidade de virar modelo, sair das ruas. Pois segundo a nossa sociedade que “não é mais racista”, a rua não é lugar para branco estar.

Se os erros do passado continuam acontecendo hoje, se ainda tudo o que é/vem do negro ainda é visto como ruim e tudo o que é/vem do branco ainda é visto como bom e como superior, ainda existe racismo. E nesse caso, após essa análise, espero que tenha ficado evidente.

No mais, fiquem avisados: vai ter crítica sim e vai ter militância também. Se ficar reclamando, ou com raiva, ou até mesmo em silêncio, vai ter do mesmo jeito. Não nos calaremos!

Nosso cabelo não é moda, não é tendência. Nosso cabelo é nossa identidade. Nosso cabelo é resistência!

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O princípio de Peter

POR JORDI CASTAN



O conceito Princípio de Peter foi desenvolvido por Laurence J. Peter e Raymond Hull, no livro "O Principio de Peter", em 1969. É bem conhecido entre os administradores e empresários e preconiza que, nas organizações, as pessoas mais cedo ou mais tarde são promovidas a cargos acima do seu nível de competência e neles permanecem. O resultado é que a empresa ou a organização é liderada por pessoas que não têm a competência para a função que ocupam.

A política não é alheia a este princípio de administração, que se cumpre a perfeição. Em alguns casos, a perfeição vem adereçada com a distribuição de cargos entre aliados. Assim, como resultado de priorizar a fidelidade partidária acima da competência, teremos o pior dos dois mundos.  Com frequência, nos perguntamos por que são sempre promovidos aqueles que têm se especializado em participar de reuniões, mestrado em obviedades ou doutorado em puxar saco.

Os mais perigosos são os que desenvolveram a capacidade de nunca tomar decisões. Estes chegam a ser mais nefastos do que os que tomam decisões erradas, porque estes são mais facilmente identificados como incompetentes e poderiam até ser extirpados do sistema. Na maioria dos casos, esse é o perfil dos que são promovidos aos cargos mais altos da gestão pública. Uma vez, ao perguntar por que numa determinada fundação tinha sido promovido a presidência alguém tão manifestamente incompetente, a resposta foi que como nas bibliotecas os livros menos interessantes e os que são menos lidos estão nas prateleiras mais altas.

Merece especial estudo o caso das empresas e organizações que, quando querem se desfazer de algum funcionário mais graduado - e frente à necessidade de buscar uma saída honrosa para anos de laboriosa incompetência- se busca o que comumente se denomina “cair para cima”, promovendo-o para um cargo em que possa representar menos perigo para os interesses da empresa.

Isso pode explicar porque aparecem periodicamente grandes gestores assumindo assentos em prestigiosos conselhos e diretorias ou em importantes cargos públicos. O interessante do Princípio de Peter é quando uma pessoa assume um cargo acima do seu nível de competência e não há como dissimular mais a sua “capacidade” é quando até as crianças percebem que o rei está nu. 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O país do atraso


POR VALDETE DAUFEMBACK NIEHUES

Enquanto preparava o almoço de domingo passei por alguns canais de TV à procura de reportagem que trouxesse conteúdo informativo. Nesse movimento, visualizei cenas de uma comunidade que imediatamente identifiquei tratar-se de Noiva do Cordeiro, localizada em Belo Vale, Minas Gerais, pois já havia assistido um documentário narrado por Lya Luft sobre este lugar que guarda uma história carregada de sentidos, de persistência, de experiência de vida de mulheres que, por gerações, foram amaldiçoadas e estigmatizadas pela igreja e pelas comunidades vizinhas, obrigando-as ao isolamento. 

Logo percebi que as cenas exibidas eram tão somente para contextualizar uma apresentação coreográfica de Keila Fernandes, moradora de Noiva do Cordeiro. Como não estava interessada em programa de entretenimento fui logo mudando de canal, porém, antes que assim fizesse, o senso comum da narrativa do apresentador sobre a capacidade intelectual e artística de quem mora no campo, se constituiu em um convite para continuar assistindo. Em tom sensacionalista o sujeito desfiava repetidamente frases como se mantra fosse: “Da roça para o palco [...] uma mulher da roça, que planta [...] que pilota trator [...] artista que interpreta Lady Gaga...” Como se quem vivesse da agricultura não fosse capaz de ingressar no mundo artístico, ou não possuísse autonomia intelectual para vencer os obstáculos sociais. 

Na hora, lembrei da colonização européia quando negros e índios, considerados intelectualmente incapazes, eram levados para a Europa e, em pequenos cercados, como animais, ficavam à mostra sob observação de expectadores. 

Não estou à risca fazendo associação dos fatos, nem mesmo comparando os dois episódios, mas doeu na alma a falta de discernimento do apresentador do programa televisivo, que conceitualmente vive o período em que as primeiras noções do pensamento desenvolvimentista relacionavam a cidade com desenvolvimento e o campo com atraso. Desse equívoco, para representar o mundo rural, saiu das páginas de Monteiro Lobato, o Jeca Tatu, um sujeito desprovido de vontade, desanimado e intelectualmente incapaz de sair da situação em que se encontrava e, em poder dos urbanos, esse personagem ganhou contornos simbólicos de discriminação e preconceitos que atingiram milhares de pessoas que trabalhavam na lavoura. 

Na pesquisa que desenvolvi sobre o “ajustamento” do trabalhador rural nas fábricas de Joinville, em entrevista, operários afirmaram que se sentiam diminuídos como agricultores pela desvalorização de seu trabalho. Vistos como “colonos”, conceito pejorativo usado pelos urbanos, eles preferiram abandonar a lavoura e se tornar operários porque parecia ser mais nobre trabalhar no chão da fábrica, preso a uma rotina de atividades fabris, do que a produzir alimentos. 

Os trabalhadores de chão de fábrica, desde a revolução industrial, sempre foram reconhecidos por operários, enquanto aqueles que trabalham na lavoura passaram por várias denominações, entre as quais, camponeses, lavradores, agricultores, produtores rurais ou empreendedores rurais, sendo que as atividades são as mesmas, apenas mudam de acordo com as necessidades do mercado. 

O êxodo rural acentuado a partir da política desenvolvimentista, a qual foi responsável pela formação do desastroso e insustentável modelo de aglomerado urbano, só parou de expandir com a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que formulou políticas públicas e programas de apoio à agricultura familiar. Comunidades com maior potencial de organização comunitária conseguem captar recursos financeiros para desenvolver atividades econômicas associadas ou não à agricultura e, assim, garantir a permanência de jovens no campo, como o caso de Noiva do Cordeiro. Geralmente são as atividades não agrícolas que dão visibilidade midiática às famílias rurais. Isso porque em nosso país, por razões históricas e culturais, ainda se cultiva a ideia de atribuir atraso intelectual aqueles que trabalham no campo. 

Os cursos que preparam profissionais para atuarem nos meios de comunicação precisam se esmerar em saberes propostos por Paulo Freire, a fim de garantir a autonomia de uma elegante fluidez em várias áreas do conhecimento, sem haver a necessidade de comunicar por meio de expressões sensacionalistas que além de reforçar estereótipos e preconceitos, em nada contribuem para democratizar informações.