POR FELIPE CARDOSO
Após entrar em um longo e produtivo debate no meu Facebook sobre a “ação solidária” para com Adriano, morador de rua de Joinville, pude perceber que as ideologias colonizadoras de branqueamento, higienização e etnocentrismo não só fazem parte da nossa sociedade, como já estão naturalizadas, o que as tornam mais difíceis de serem desconstruídas e contribuem para a propagação do racismo. Logo, e infelizmente, o racismo já se naturalizou na nossa sociedade.
Nem todo o material teórico parecia ser capaz de explicitar e exemplificar a minha análise crítica sobre o caso. Então, recorri a minha monografia para tentar explicar um pouco mais do que acontece diariamente com os corpos negros, mutilados em busca do padrão de beleza que, em sua maioria, é europeu.
Branqueamento e higienização nada mais são do que ferramentas do racismo, que é causado pelo etnocentrismo, por onde pretendo iniciar a minha explicação.
Nas expedições em busca de novos territórios, o europeu ao se deparar com um novo povo, teve a experiência do choque cultural. Esse choque se dá pelo encontro com a diferença que representa uma ameaça, pois fere a própria identidade cultural.
Isso explica o motivo dos europeus inventarem diversas teorias que comprovavam que os africanos eram inferiores. Tal pensamento europeu é reconhecido como etnocentrismo, o que Everardo P. Guimarães Rocha, em seu livro “O que é etnocentrismo”, define como:
“... uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.”.
Então, após tomarmos o choque ao vermos Adriano, automaticamente tentamos colonizá-lo com a nossa visão de mundo, com os nossos valores e pontos de vistas que fomos ensinados a ter e propagar. O incômodo que um morador de rua nos causa é justamente por ele representar o “diferente” no nosso mundo. Não procuramos entende-lo, respeitá-lo e preservá-lo. Tentamos de todas as formas traze-lo para a nossa realidade, para o nosso cotidiano, pois o “eu” está certo, o centro somos “nós”, com empregos, carros, rotina. Ele está à margem, é o desempregado, o inferior, representa o insucesso.
Além de ser morador de rua, Adriano é negro, e optou por deixar seu cabelo crescer.
Com a educação brasileira pautada na Europa e a construção e preservação da cultura escravista desde o período colonial, sempre nos foi apresentado e ensinado que o que era do branco era bom e, tudo o que tinha de ruim, pertencia ao negro. Assim, a partir da representação do negro enquanto um ser não civilizado, o branco forjou a sua própria imagem como civilizado e distinta por sua superioridade. Dessa maneira, o negro começou a desprezar a si próprio e tomar como verdade a imposição do branco.
“O processo escravista de colonização, associado a uma catequese opressora, conseguiu engendrar mudanças fundamentais na auto visão do negro. Após gerações de perda absoluta de direitos e dos valores, a visão do negro sobre si mesmo absorveu influências da concepção escravista da época” (AZEVEDO, Eliane –Raça - Preconceito e conceito, p. 48).
Tudo isso somado a tentativa de branquear o país, principalmente a região sul, trouxe ainda mais consequências ruins para a população negra.
Para tentar permanecer e sobreviver no Brasil industrializado, os negros tiveram que se adaptar ao modelo imposto pela elite branca da época. Com intuito de lucrar, a indústria de cosméticos passou a produzir produtos exclusivos para os negros recém-libertos, fazendo-os pensar que, utilizando tais produtos, ficariam brancos e seriam, assim, incluídos na sociedade. Alisar o cabelo, passar pó de arroz, afinar o nariz, a boca... Gerando, assim, uma crise na identidade étnica negra.
(Uma das exigências dos brancos para com os negros era que eles negassem seus traços, suas culturas, suas raízes e podemos perceber que tais exigências permanecem até hoje).
Mas a partir da década de 1960, com o início da luta por direitos civis dos negros norte-americanos, houve uma grande mobilização para a preservação e o respeito da cultura e do povo africano, que acabou influenciando muitos países, inclusive o Brasil. Muitos movimentos começaram a surgir aqui e o cabelo afro tornou-se símbolo dessa época. O black power representava a resistência negra.
Mais uma vez, sentindo uma eminente ameaça, a elite branca decidiu enfraquecer tais movimentos, investindo duramente contra as comunidades negras.
No início da década de 1990, os black powers perderam a força, depois de muitos investimento para manchar a imagem de quem apreciava e preservava a cultura afro. O black power perdeu espaço para os cabelos raspados e, principalmente, alisados. E foi aproveitado dessa situação para construir, novamente, no imaginário popular, que o cabelo grande representava a falta de higiene e que o melhor padrão a ser utilizado pelos homens negros era o cabelo raspado e, para as mulheres, alisado. Essa ideologia foi passada por meio de piadas, publicidade, novelas, com comentários semelhantes ao do tempo da escravidão.
Depois da virada de século é quase raro você encontrar pessoas negras usando black power. Adriano fazia parte dessa raridade. Mesmo em uma cidade provinciana, racista, que cultua uma única cultura, Adriano representava a resistência negra. Destacava-se ainda mais por ter um estilo diferente de todos os outros moradores de rua. Todas as roupas que ele ganhava, ele vestia, e assim, seguia. Mas o que dava todo o estilo e toda a sua identidade era o seu cabelo. E, pelo visto, era o que mais incomodava também... Os outros, é claro.
Durante três anos tentaram convencê-lo a cortar. Ele resistiu o quanto pode, até aceitar.
Mas o fato de ele passar por uma mudança “ESTÉTICA” ganhou destaque. Adriano, que era tratado como qualquer outro morador de rua (à margem da sociedade, invisível) recebeu muita atenção por ter deixado seus traços para trás. Mais uma vez houve festa na Casa Grande. Mais um negro negou a sua raiz. Mais um negro entrou para o padrão de beleza branco. Ficou “IRRECONHECÍVEL”, ou seja, quase um branco.
“Dissemos quase, agora pode voltar pra rua, pra marginalidade”.
“Agora ele está agradável aos “nossos” olhos. Agora não terei mais aquele choque cultural quando estiver indo para a casa ou para o trabalho. Agora ele está do jeito que “eu” queria e gostaria que ele sempre estivesse. Que conforto. Que alívio.”.
Esse ato praticado com Adriano representa sim o racismo, a falta de entendimento e aceitação da cultura negra. E achar que é um simples caso de solidariedade, sem tentar analisar tudo isso que foi citado, toda a história por trás da nossa vivência ou é maldade, ou inocência, ou falta de conhecimento. O que está sendo criticado aqui é a perpetuação dessa cultura racista, colonizadora, recheada de padrões, rótulos e ignorância.
Se Adriano fosse branco, de olhos azuis, com traços finos, talvez tivesse a oportunidade de virar modelo, sair das ruas. Pois segundo a nossa sociedade que “não é mais racista”, a rua não é lugar para branco estar.
Se os erros do passado continuam acontecendo hoje, se ainda tudo o que é/vem do negro ainda é visto como ruim e tudo o que é/vem do branco ainda é visto como bom e como superior, ainda existe racismo. E nesse caso, após essa análise, espero que tenha ficado evidente.
No mais, fiquem avisados: vai ter crítica sim e vai ter militância também. Se ficar reclamando, ou com raiva, ou até mesmo em silêncio, vai ter do mesmo jeito. Não nos calaremos!
Nosso cabelo não é moda, não é tendência. Nosso cabelo é nossa identidade. Nosso cabelo é resistência!