POR FELIPE SILVEIRA
Estava lendo "O Dicionário da Corte de Paulo Francis" dias atrás e me deparei com o verbete “Gene Hackman”, que Francis usa para dar um pitaco sobre o que muda o mundo. Ele comenta a atuação do ator no filme "Mississipi em Chamas", no qual Hackman interpreta um agente do FBI que investiga o assassinato de três ativistas por direitos civis nos EUA (história baseada em fatos reais, sendo que o filme recebeu críticas por supostamente enaltecer o trabalho do FBI, diferente do que aconteceu longe das telas).
Diz Francis: “Hackman olha e ri nos falando uma enciclopédia britânica sobre a natureza humana. Não se vangloria e nem tem ilusões. São pessoas assim que avançam as causas, poucas ainda em que acreditamos, e não ideólogos e idealistas. São céticas, cínicas e eficientes. Nossa única esperança, e Gene Hackman é emblemático de nossa condição”.
Bom, eu até acho que pessoas assim “avançam as causas”, uma aqui, outra ali. Porém, seria ridículo interpretar que o próprio Francis ignorava outros fatores. Ele estava, acredito, apenas sendo Paulo Francis.
Interesses de grupos poderosos, questões religiosas, pessoas obstinadas, líderes loucos, multidões nas ruas, acaso... O mundo muda com a mistura de tudo isso, constantemente.
Ao povo, no entanto, resta a rua. Se os economicamente poderosos discutem e articulam seus interesses em algum prédio da Hermann Lepper ou da Beira-rio, o povo escancara seus desejos de maneira muito mais honesta nas ruas.
Sem perseguição política via sistema judiciário, sem capangas infiltrados para arrumar confusão, sem polícia conivente, sem mídia que fecha os olhos para o debate, sem artimanhas tão comuns aos que sempre lucram.
O povo na rua tem sua voz, seus cartazes, suas faixas e mais recentemente algumas câmeras para registrar sua poesia e, se necessário, o abuso dos outros. Como policiais que retiram suas identificações dos uniformes em pleno exercício da função.
Mas é um erro pensar que basta ir às ruas uma ou duas vezes e esperar que a partir daí as coisas se resolvam. “De que adianta?”, sempre ouvimos. Adianta que tudo faz parte de um processo e que lutas se acumulam ao longo de anos até que comecem a surgir resultados.
Os movimentos pelo passe livre, pela tarifa zero, têm aproximadamente uma década de atuação constante. Em 2013 conseguiu barrar o aumento da passagem do transporte coletivo em várias cidades, além de puxar um gigantesco movimento que envolveu toda a sociedade brasileira e que gera as mais diversas interpretações e opiniões. Sofreu e sofre forte repressão.
Mas é preciso continuar nas ruas. Acumular. Algo que nem é preciso dizer para aqueles que sempre estão lá. Eles não parecem esmorecer. Nem sob ameaças, nem com processos. Não parecem desanimar. E certamente não vão desistir.
Mas é preciso dizer a outros. Aos articuladores e leitores do Chuva Ácida, aos professores, aos estudantes, aos jornalistas, aos servidores públicos, aos profissionais da saúde. Pessoas que sabem o que acontece, como eles e outros são explorados cotidianamente, mas que parecem não se importar.
Talvez elas queiram ser como o personagem interpretado por Gene Hackman, na visão de Francis. Querem ser o sujeito que faz a sua parte da melhor forma possível.
Sabemos que não é suficiente.