POR CLÓVIS GRUNER
Na mesma semana em que as imagens da
polícia carioca reprimindo violentamente professores em greve correram o país, confirma-se
que Amarildo foi torturado e assassinado por policiais da
UPP da Rocinha, onde morava. Ambas as notícias reforçam a sensação de desacerto entre uma polícia
militarizada e violenta e uma sociedade que se pretende democrática. Como já
disse em outro texto, as
instituições prisionais e policiais funcionam como imensos reservatórios da arbitrariedade
e da violência cultivadas durante a ditadura civil militar. O
gradual desmonte do aparato repressivo não alcançou o interior das
penitenciárias, presídios, delegacias e quarteis de polícia, sinalizando
o antagonismo entre as políticas de segurança pública e os esforços pela
consolidação da democracia
iniciado
há quase três décadas.
Tal contradição
é estrutural e consagrada pela Constituição de 1988, que prevê em seu artigo 144
a divisão de tarefas entre as polícias Militar (a quem cabe realizar o
policiamento ostensivo) e Civil (responsável pela investigação policial). Trata-se
de uma verdadeira distorção dos modelos que, supostamente, inspiraram a
organização da polícia brasileira. Ainda que muitos países europeus
possuam forças militares com funções de polícia – como são os casos da
Gendarmerie Nationale, na França; dos Carabinieri, na Itália; da Guardia Civil,
na Espanha; ou da Guarda Nacional Republicana, em Portugal –, sua estrutura e
funcionamento são diferentes da nossa Polícia Militar, a começar pelo fato de
serem nacionais, e não estaduais. Além disso, as atribuições de policiamento destas
forças se restringem prioritariamente às áreas rurais; os policiamentos ostensivos e
investigativos nas áreas urbanas são de responsabilidade das polícias civis. As
gendarmarias europeias são, ainda, de ciclo completo, no que se assemelham às
polícias americanas e inglesas. Nestes dois países, aliás, as polícias são exclusivamente
civis.
REPENSAR E REESTRUTURAR A POLÍCIA – No Brasil, o treinamento
militarizado é um dos responsáveis pela criação de uma das mais violentas
polícias do mundo. Os números são assustadores. Em São Paulo, cerca de 2.200 pessoas foram mortas em supostos confrontos com a PM entre 2006 e 2010. No Rio de
Janeiro, foram mais de 10 mil mortes entre 2001 e 2011. A atuação dos policiais
nas manifestações iniciadas em junho evidencia uma cultura de confronto que
está arraigada na PM e é velha conhecida dos moradores das
periferias, historicamente os mais sujeitados à violência policial – e é sintomática
a declaração do ex-membro do BOPE, Rodrigo Pimentel, ao ver um policial
descarregar uma metralhadora para o alto durante um dos confrontos: “Isso é
desastroso, uma arma de guerra, uma
arma de operação policial em favelas, não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano…” [os grifos são meus].
O recrudescimento da violência e o aumento de sua percepção
(coisas próximas, mas ainda assim distintas) por um público mais amplo – o que se
deve em parte à mobilização virtual nas redes sociais –, tirou das margens da
agenda política o debate sobre a desmilitarização da polícia. No âmbito mais
estritamente institucional, no começo desta semana um passo importante foi
finalmente dado, com a apresentação da PEC 51, já batizada de
PEC da Desmilitarização (clique no ícone "Texto inicial"). O projeto é extenso e não cabe aqui comentá-lo
step by step. Mas há alguns pontos
centrais que merecem ser destacados.
GARANTIR DIREITOS – O primeiro é a definição e a função
da polícia como instituição cujo propósito não é
garantir a segurança do Estado, nem fazer a guerra contra suspeitos ou
criminalizar movimentos sociais, mas promover e garantir os direitos dos
cidadãos. Com a desmilitarização, a PM (hoje, força de reserva do
Exército, “formada, treinada e organizada para combater o inimigo”) deixa de
existir e cria-se uma polícia unificada e com carreira única. Além disso, toda
polícia deve realizar o ciclo completo, exercendo o trabalho preventivo, ostensivo e
investigativo e colocando fim ao fracionamento hoje característico da
atividade policial. São os estados que definem o formato a ser adotado por suas polícias, bem como o grau de
responsabilidade dos municípios na manutenção da segurança pública. Na prática,
rompe-se com o modelo centralizado hoje previsto na Constituição e confere-se
maior autoridade e autonomia aos estados e municípios na implementação de políticas de
segurança pública. Não menos importante, aumentam os mecanismos de controle social,
com a extinção, por exemplo, da Justiça Militar, e a criação de Ouvidorias
externas.
Não apenas o trâmite da PEC será
certamente demorado como, provavelmente, ela enfrentará a oposição de setores
corporativos e de conservadores em geral,
para quem pouco importa uma polícia democratizada e menos violenta e uma
política de segurança realmente pública. Ciente desta e de outras dificuldades,
o próprio texto prevê uma “implementação cuidadosa”, caso aprovado. Sua
efetivação depende agora da mobilização daqueles realmente interessados em
romper o ciclo de violência de nosso passado autoritário tão recente e hoje
ainda presente nas instituições militares. Pessoalmente, acredito que poucas
causas merecem tanto nosso engajamento.