POR CLÓVIS GRUNER
O convite para escrever
no Chuva Ácida, agora como colaborador fixo, não apenas reforça o vínculo com
uma cidade que, talvez, nunca venha a ser apenas um retrato na parede. Ele me
coloca uma vez mais diante da tarefa de pensar sobre o lugar de Joinville em
minha trajetória. Já me ocupei disto em outras ocasiões. Aqui mesmo, em minha
primeira colaboração com o blog, indagava em outra ocasião sobre uma incômoda
tendência ao provincianismo, a reafirmar alguns lugares comuns sobre a cidade.
Considerava-a, então, modelar da “modernização conservadora” que, reconheça-se,
é característica intrínseca a muitas das cidades brasileiras que viram sua
economia e população crescerem principalmente a partir dos anos 50 do último século.
Na época, apesar da
visão pouco otimista sobre a cidade, a maioria dos comentários preferiu
questionar minha crítica a certa interpretação da história local, o que pareceu
soar para muitos como uma verdadeira heresia. Afinal, me achava no direito de
colocar em questão alguns dos cânones historiográficos locais, como se o
passado fosse coisa com a qual se pudesse mexer. Justo eu, que não possuo
outras credenciais além de ser... joinvilense e historiador. Quase um ano e meio depois, não vejo razão para desdizer nada do que escrevi.
OLHAR O PASSADO – Há
poucos dias, o Jordi Castan ironizava aqui as promessas de futuro para
Joinville. Contrastado o seu texto com a pequena série assinada pelo Charles
Henrique, a propor do presente um diagnóstico nada complacente, a conclusão é
desanimadora. Nestas horas, quando presente e futuro parecem não oferecer
maiores ou melhores alternativas, olhar pelo retrovisor poderia ser uma
estratégia: auscultar o passado pode nos ajudar a entender não apenas o que
somos, mas principalmente como nos tornamos o que somos.
O problema é que
Joinville é refém do seu passado. A cidade possui um Arquivo Histórico que já
foi referência nacional e conta com um acervo documental invejável, além de um
curso de graduação em História que completa 45 anos de atividades. Nas últimas
duas décadas inúmeras dissertações e teses têm escrito a contrapelo sua
trajetória, inclusive derrubando alguns de seus muitos mitos historiográficos –
e cito, a título de exemplo, a excelente e inovadora pesquisa de Denize da
Silva, defendida em 2004 no Programa de Pós-Graduação da UFPR, que colocou
abaixo a versão de que não houve trabalho escravo na Colônia Dona Francisca.
Apesar disso, sempre
que se fala sobre a história local prevalece quase sempre uma única versão, emblematicamente
sintetizada na frase do historiador Apolinário Ternes em artigo publicado no
dia 9 de março deste ano em caderno especial de A Notícia: “A vocação de
Joinville é a de cidade industrial. O que disseram a mais tem a força apenas da
retórica.” Dito de outro modo: nada do que se disse, diz ou dirá que contradiga
esta alegada “vocação”, tem legitimidade histórica. O destino da cidade, a
pautar-se pela afirmação de seu historiador oficial, já estava escrito desde
sua fundação em 1851. Contradizer esta visão teleológica é nada
mais que um esforço meramente retórico.
ESCREVER UMA OUTRA HISTÓRIA – Mas o passado, apesar de
Apolinário Ternes, é sempre conflituoso. E no caso de Joinville, o que falta é
assumir no presente este conflito. Seria simples e cômodo afirmar como natural
a aceitação de uma leitura sempre a mesma da história. Simples, cômodo e
enganoso. Porque se por um lado é verdade que o respaldo, inclusive midiático,
desta versão oficial contribui para reproduzi-la e perpetuá-la até a
banalização, também o é que os esforços para a desconstruir têm sido limitados.
Até mesmo iniciativas interessantes e que renderam, algumas delas, bons frutos,
foram sepultadas.
Há alguns anos a professora Sandra Guedes foi responsável por organizar, no âmbito do curso de História da Univille, encontros onde pesquisadores de graduação e pós-graduação apresentavam resultados de suas pesquisas – eu mesmo, à época mestrando, participei duas ou três vezes do evento, apresentado fragmentos do que viria a ser minha dissertação. A coisa toda ficou no caminho lá pela quinta ou sexta edição, salvo engano. Em 2007, o Arquivo Histórico lançou o primeiro volume da Revista do Arquivo Histórico de Joinville. Primeiro, único e último, porque há seis anos espera-se pelo segundo. E não se pode nem mesmo culpar os altos custos de impressão, porque não são poucas as revistas acadêmicas, algumas muitíssimo bem conceituadas, que optaram por publicar apenas versões on-line, mantendo assim sua periodicidade e mesmo aumentando seu poder de inserção junto ao público leitor. Dos trabalhos acadêmicos, poucos são os que perfizeram a trajetória das bancas de defesa às prateleiras das livrarias e, mesmo estes, caem em relativo ostracismo, vítimas de uma política pouco agressiva de divulgação e distribuição da editora da Univille, responsável pela publicação da maioria deles.
Há alguns anos a professora Sandra Guedes foi responsável por organizar, no âmbito do curso de História da Univille, encontros onde pesquisadores de graduação e pós-graduação apresentavam resultados de suas pesquisas – eu mesmo, à época mestrando, participei duas ou três vezes do evento, apresentado fragmentos do que viria a ser minha dissertação. A coisa toda ficou no caminho lá pela quinta ou sexta edição, salvo engano. Em 2007, o Arquivo Histórico lançou o primeiro volume da Revista do Arquivo Histórico de Joinville. Primeiro, único e último, porque há seis anos espera-se pelo segundo. E não se pode nem mesmo culpar os altos custos de impressão, porque não são poucas as revistas acadêmicas, algumas muitíssimo bem conceituadas, que optaram por publicar apenas versões on-line, mantendo assim sua periodicidade e mesmo aumentando seu poder de inserção junto ao público leitor. Dos trabalhos acadêmicos, poucos são os que perfizeram a trajetória das bancas de defesa às prateleiras das livrarias e, mesmo estes, caem em relativo ostracismo, vítimas de uma política pouco agressiva de divulgação e distribuição da editora da Univille, responsável pela publicação da maioria deles.
Sim, sei que a tal cultural local, provinciana e
conservadora, é uma das responsáveis pelo relativo marasmo histórico e historiográfico.
Mas, como disse, tal constatação é, além de simples e cômoda, enganosa. Porque
há outros meios – e se não há, trata-se também de inventá-los – além dos
formais para se intervir no espaço público, que é onde efetivamente interessa
que a história e os historiadores estejam presentes e atuantes. O problema não é
apenas uma cidade centenária e seus mais de 500 mil habitantes terem com seu
passado uma relação conformista, aceitando como verdade o que é apenas uma
versão – e como toda versão, de força também retórica. O problema maior reside,
a meu ver, na incapacidade crônica de contradizê-la, de desconstruir a verdade
que ela não apenas insinua, mas pretende afirmar e impor; de mostrar, enfim,
sua fragilidade, opondo a ela outras interpretações possíveis dos muitos
passados que habitam a história joinvilense.
Como historiador, acredito que uma das funções do ofício que
escolhi é nos educar para a descontinuidade. Historiadores prestam um
desserviço ao presente quando insistem em escrever uma narrativa que estabelece
um continuum entre o hoje e o ontem, entre
o que somos e o que um dia já fomos. Indagado certa vez sobre a quem interessa a
história, o filósofo francês Michel Foucault respondeu que ela interessa, sobretudo, ao poder. Apenas uma história capaz de nos libertar do fardo do passado
cumpre uma função ética e política fundamental: mostrar que o que somos no
presente não é natural, não é algo dado, mas uma construção. E se nosso
presente não é a realização de uma vocação, o futuro pode ser indisciplinado na
medida em que nossos desejos e nossa vontade o quiserem. Não é buscando no
passado uma origem e uma identidade fixas e únicas, mas nos afastando dele,
estabelecendo nossa distância e diferença, que Joinville talvez encontre um
caminho para construir um futuro capaz de arrancá-la de sua incômoda zona de
conforto. E a história terá valido a pena, porque não serviu apenas ao poder e
aos poderosos.