domingo, 22 de maio de 2016
Um Ministério da Cultura é necessário
POR LIBER PAZ
Quando trabalhei com ilustração,
muitos anos atrás, a coisa que mais ouvia era: “faz um desenho bem simples, faz
bem rapidinho”, que era um jeito de dizer “faça barato”. Na época, em 2001, eu
era sócio de um estúdio e a gente tinha basicamente dois tipos de clientes:
agências de publicidade e editoras de livros didáticos.
O trabalho de ilustrar livros
didáticos era muito exaustivo e mecânico. Uma vez, fizemos uma ilustração de
crianças brincando num pátio para uma grande editora. Recebemos um pedido para
corrigir a ilustração: “clareiem essas crianças”. Ficamos chocados, mas você
não discute com patrão, porque ele tem o poder na negociação. Então,
transformamos as crianças negras em loirinhas.
Muitos trabalhos de publicidade
pediam para copiarmos estilos de ilustração de sujeitos que cobravam caro
demais. O “diretor de arte” chegava com a amostra e dizia: “ó, faz assim, só
que diferente”. Diferente o suficiente pra não ser processado. Claro que teve vezes
em que conseguimos emplacar nosso próprio estilo, mas no geral apenas obedecíamos
a ordens e orientações do contratante.
Vale citar aqui a conversa que
tive com um publicitário que me falou que não via diferença nenhuma entre um
ilustrador e um vendedor de detergente: éramos todos fornecedores e facilmente
substituíveis. Vale lembrar também o hábito das concorrências, no qual
basicamente temos um cliente que chama cinco ou seis estúdios pra resolver um
trabalho e paga apenas ao que escolher. Isto é, você faz todo o trabalho e se o
cliente gostar mais do trabalho do seu concorrente, ele não lhe paga. Nesse
sistema, de cinco estúdios, quatro trabalhavam absolutamente de graça. As
justificativas eram: 1) é assim que as coisas funcionam; 2) ninguém obriga a
participar; 3) se reclamar, nunca mais lhe damos serviço.
Esse é um resumo da minha
percepção da atividade de ilustrador. Em todas as conversas com editoras de
livros didáticos, publicitários e marqueteiros, o trabalho de ilustração era
desmerecido e desvalorizado ao máximo. Orçamentos feitos em cima do tempo
necessário, dos custos operacionais, do esforço e da nossa habilidade eram
considerados absurdos. Pessoas que não sabiam segurar um lápis vinham nos dizer
que cobrávamos caro demais, e propunham valores ridiculamente baixos seguidos
de um “se quer, quer. Se não, tá cheio de gente que sabe desenhar por aí”.
Essa descrição toda que estou
dando aqui é a de “trabalho”. O ato de desenhar entendido não como “arte”, mas
como uma habilidade disponível pra ser vendida e cumprir uma função específica
e objetiva. “O mundo é assim”. Essa é a justificativa.
Quando eu escuto pessoas falando
que, agora que o Ministério da Cultura acabou, “vagabundos vão parar de mamar
nas tetas do governo e começar a trabalhar”, eu penso que são as mesmas pessoas
com quem eu tinha que tratar na época do estúdio. Gente que não enxerga nada
além do seu próprio interesse, gente que não tem nenhum objetivo além do
próprio lucro e, pior, gente que tem a certeza absoluta de que o mundo é
exatamente do jeito que ela pensa e limitado ao que ela conhece. Nesse caso, o
valor de todas as coisas está também limitado ao valor de dinheiro que elas
podem oferecer e nada mais.
AS RAZÕES DE UM MINISTÉRIO DA CULTURA - Um ministério é um setor do governo que ajuda a
administrar um país, e a administração de um país é algo muito complexo, que
exige mais reflexão e informação do que o “negociador” padrão possui. Ainda
mais um país continental como o Brasil. O entendimento do Ministério da Cultura
como um canal pra “dar” dinheiro público a artistas “vagabundos” é tão
equivocado, tão ignóbil, que me dá um nó no estômago.
Sim, é verdade que há absurdos.
Incentivos para Circos de Soleil e artistas tão bem posicionados que não
precisariam desses apoios. Por outro lado, lembro das isenções fiscais dadas às
montadoras automobilísticas aqui no Paraná. O objetivo era facilitar pra essas
empresas (que não precisavam de nenhuma facilitação) porque a presença delas
supostamente iria aquecer a economia do estado.
Pensar algo como a Cultura do
ponto de vista de investimento econômico é entendê-la de forma limitada, mas
ainda assim não é incorreto. Porque a produção cultural pode ser capitalizada,
pode gerar empregos, pode gerar riquezas. Nesse sentido, políticas públicas
como divulgação, verbas e projetos de incentivo são fundamentais para o
desenvolvimento do setor.
Consideramos como indústria a
produção de automóveis. Mas é uma produção que não tem mais como expandir. É
absurdo querer colocar mais carros nas ruas. Daí faz muito sentido deslocar a
relevância das indústrias automotivas para outras áreas, como a Cultura. Lógico
que isso não interessa às grandes montadoras, aos grandes empresários, aos
donos de TV e agências de publicidade, que faturam alto com a propaganda dos
carrinhos.
Mas pensa. É só uma questão de
valorizar, de incentivar, e podemos ter produção de cinema, jogos, livros,
quadrinhos, peças de teatro, uma porrada de produtos. O consumo pode ser
ampliado, podemos ter produção local, podemos ter mais empregos, podemos criar
uma atividade econômica estável em cima de produtos simbólicos. Podemos ter um
mundo mais feliz. Trata-se de uma mudança de percepções, de paradigmas, que
poderia implicar uma economia mais saudável, sustentável, digna e humana.
E para isso precisamos de um
Ministério da Cultura, precisamos de uma compreensão e um interesse da
Cultura como uma alternativa econômica extremamente viável e atraente. Mas não
temos isso. Temos pessoas que acham que a Cultura é mais uma bobagem, que não é
trabalho de “verdade”. Temos pessoas que realmente não veem diferença nenhuma
entre uma música, um filme, um livro ou um frasco de detergente. Aliás, elas
veem sim: para elas, o frasco de detergente serve pra alguma coisa.
São essas pessoas que acham que “nenhum
direito é absoluto”, que pensam que onerar a maioria da população com impostos
e cortes em direitos à saúde e educação é contribuir para o crescimento do
Brasil. Para essas pessoas, o enriquecimento indecente daqueles que já tem
muito mais do que merecem é a mesma coisa que o crescimento do Brasil. E esse
pensamento não é exclusivo de certos brasileiros. Há muita gente em outros
países que pensa da mesma forma. É um pensamento empedrado, perverso, egoísta,
que atende somente aos interesses dos muito ricos.
Mas também é um erro considerar
que Cultura é só uma possibilidade de novas formas de mercado e economia. Cultura
também é festa, festas populares, festivais, museus, atividades comunitárias,
bibliotecas, espaços para circular e trocar ideias e crescer como ser humano.
Nenhum interesse privado vai investir em bibliotecas ou museus a não ser para
servir de marketing ou para afagar o ego do mega empresário que se vê como um
bem-feitor da sociedade da qual toma todas as riquezas. Por isso é importante o
Ministério da Cultura. Ainda que tenha seus problemas, vale a pena corrigi-los.
Vale a pena lutar por essa Cultura.
Esse textão dificilmente vai ser
lido por muita gente. E muita gente não vai mudar de ideia, se lê-lo. Vai
continuar achando que Cultura é coisa de vagabundo e que detergente é melhor do
que livro. Essas pessoas são as que mais precisavam desse ministério. É triste.
Aos que estão aí e compreendem
tudo isso, faço o convite de resistir como puder. Resistir nas conversas,
resistir no diálogo, resistir na paciência de ser a água mole em pedra dura.
Porque essas pessoas que tem pedras no lugar dos cérebros e do coração, talvez
possam ser despertas, talvez possam entender que o mundo tem espaço pra muitos
outros jeitos de pensar além do delas.
E porque nós simplesmente não
podemos desistir nunca de tentar tornar esse mundo um lugar um pouco menos
miserável.
* Liber Paz é professor da Universidade Federal Tecnológica do
Paraná (UTFPR) e autor de quadrinhos. Além de participações em obras coletivas,
publicou “As coisas que Cecília fez” (2013) e “Dias interessantes” (2015)
sábado, 21 de maio de 2016
Políticos e politiquices #3
POR ET BARTHES
É um pássaro? É um avião? É um lutador de wrestling? Não. É o super-vereador Maurício Peixer pronto para para voar... ou distribuir voadeiras.
sexta-feira, 20 de maio de 2016
Para falar de saúde, gestão, vereadores e papa
POR SALVADOR NETO
O tema golpe contra o governo Dilma Rousseff eleito pelo voto popular, e apeado do poder pelo grupo de Ali Babá uns 370 meliantes e um vice de lambuja, tem sido objeto de textos meus e de meus colegas do Chuva Ácida. Por isso decidi falar de política, mas ligando o planalto central à planície joinvilense. E vamos de saúde novamente. Afinal, por enquanto está fácil ao governo Udo Döhler do PMDB escapar do grito do povão. Ainda estão todos de olho na mudança feita em Brasília, para nada mudar. Ou melhor, mudar para pior.
Em 2012 Udo Döhler dizia: “De saúde eu entendo” ou ainda sobre o setor, “não falta dinheiro, falta gestão”. Da primeira frase até dá para aceitar o que afirmava o empresário da saúde e das fiações, porque de lucros na saúde ele entende mesmo. Mas de gestão da saúde pública, definitivamente não entende nada. A lista de falta de medicamentos essenciais continua, as filas de especialidades também, falta de leitos nem precisa falar pois o noticiário conta. Assim como em Brasília onde colocaram outro do PMDB, Michel Temer, para tudo mudar, e piorou, aqui também nada mudou.
Esta semana participei da Semana de Luta Antimanicomial em Joinville (SC). Esta batalha travada há quase 30 anos, e com marco oficial da Reforma Psiquiátrica Brasileira no ano 2000 com a promulgação da Lei 10.216. Assisti, e ouvi, as denúncias e lamentações dos servidores da saúde ligados à saúde mental. No plenário da Câmara de Vereadores sem nenhum dos nobres vereadores presentes para prestigiar, ouvir o grito dos bravos servidores, o luto pela luta foi representado por camisetas pretas, e por discurso de líder da associação dos pacientes do sistema.
Este serviço de saúde mental em Joinville já foi modelo de assistência em saúde mental para SC, e as ações ainda hoje possuem destaque junto às articulações no Ministério da Saúde. Hoje há um claro movimento de abandono do serviço, lento e gradual. Servidores que se aposentam não são repostos nos cargos vagos. Os locais de atendimento estão sem manutenções básicas, os recursos estão reduzidos ano após ano especialmente nesta gestão, e até, pasmem, passes de ônibus para os pacientes carentes se deslocarem de casa e que eram garantidos, estão cortados. Isso tudo prova que a saúde da população não é prioridade. Apenas números da saúde são prioritários.
Duas coisas impressionaram positivamente: a presença e a garra dos servidores na organização e realização da Semana de Luta Antimanicomial em vários locais, inclusive nas praças centrais da cidade, mostrando o carinho e amor que tem pelo serviço que prestam à essa população estigmatizada, e a coragem de denunciar o processo de sucateamento de mais uma área da saúde na maior cidade catarinense. Talvez na ótica do governo atual, essas pessoas não importem mais para os “números” que precisam ser mostrados logo ali em outubro.
E mais uma vez, além da certeza que o governo Udo Döhler é um vexame também na saúde, os nobres vereadores mostram a quem servem, e a quem não servem, na atual legislatura. Um dia depois em sessão de homenagem a proeminente empresário ligado à uma grande empresa de auditoria e do direito e ex-dirigente do Jec, estavam todos lá, perfilados para fotos e abraços ao executivo. Para os trabalhadores e familiares da saúde mental, nenhum deles esteve lá para dar seu apoio. Sintomático.
Em programa televisivo nesta mesma semana, um nobre vereador se comparou ao Papa Francisco como “autoridade”, e como tal, com todo o direito de viajar ao exterior com polpudas diárias pagas com nosso dinheiro. E outro, veteraníssimo, ao ser questionado sobre o clamor das ruas pela renovação total da Câmara nas eleições deste ano, saiu com a pérola que não concordava, pois sem gente “experiente” por lá, os servidores do Poder ficariam com poder suficiente para “levar” os novos vereadores para um “lado” não interessante.
Assim segue Joinville, um governo pífio, atrasado, e um legislativo subserviente, caro e improdutivo. O remédio é o voto este ano, para deixar a cidade mais saudável na área pública.
É assim, nas teias do poder...
Em 2012 Udo Döhler dizia: “De saúde eu entendo” ou ainda sobre o setor, “não falta dinheiro, falta gestão”. Da primeira frase até dá para aceitar o que afirmava o empresário da saúde e das fiações, porque de lucros na saúde ele entende mesmo. Mas de gestão da saúde pública, definitivamente não entende nada. A lista de falta de medicamentos essenciais continua, as filas de especialidades também, falta de leitos nem precisa falar pois o noticiário conta. Assim como em Brasília onde colocaram outro do PMDB, Michel Temer, para tudo mudar, e piorou, aqui também nada mudou.
Esta semana participei da Semana de Luta Antimanicomial em Joinville (SC). Esta batalha travada há quase 30 anos, e com marco oficial da Reforma Psiquiátrica Brasileira no ano 2000 com a promulgação da Lei 10.216. Assisti, e ouvi, as denúncias e lamentações dos servidores da saúde ligados à saúde mental. No plenário da Câmara de Vereadores sem nenhum dos nobres vereadores presentes para prestigiar, ouvir o grito dos bravos servidores, o luto pela luta foi representado por camisetas pretas, e por discurso de líder da associação dos pacientes do sistema.
Este serviço de saúde mental em Joinville já foi modelo de assistência em saúde mental para SC, e as ações ainda hoje possuem destaque junto às articulações no Ministério da Saúde. Hoje há um claro movimento de abandono do serviço, lento e gradual. Servidores que se aposentam não são repostos nos cargos vagos. Os locais de atendimento estão sem manutenções básicas, os recursos estão reduzidos ano após ano especialmente nesta gestão, e até, pasmem, passes de ônibus para os pacientes carentes se deslocarem de casa e que eram garantidos, estão cortados. Isso tudo prova que a saúde da população não é prioridade. Apenas números da saúde são prioritários.
Duas coisas impressionaram positivamente: a presença e a garra dos servidores na organização e realização da Semana de Luta Antimanicomial em vários locais, inclusive nas praças centrais da cidade, mostrando o carinho e amor que tem pelo serviço que prestam à essa população estigmatizada, e a coragem de denunciar o processo de sucateamento de mais uma área da saúde na maior cidade catarinense. Talvez na ótica do governo atual, essas pessoas não importem mais para os “números” que precisam ser mostrados logo ali em outubro.
E mais uma vez, além da certeza que o governo Udo Döhler é um vexame também na saúde, os nobres vereadores mostram a quem servem, e a quem não servem, na atual legislatura. Um dia depois em sessão de homenagem a proeminente empresário ligado à uma grande empresa de auditoria e do direito e ex-dirigente do Jec, estavam todos lá, perfilados para fotos e abraços ao executivo. Para os trabalhadores e familiares da saúde mental, nenhum deles esteve lá para dar seu apoio. Sintomático.
Em programa televisivo nesta mesma semana, um nobre vereador se comparou ao Papa Francisco como “autoridade”, e como tal, com todo o direito de viajar ao exterior com polpudas diárias pagas com nosso dinheiro. E outro, veteraníssimo, ao ser questionado sobre o clamor das ruas pela renovação total da Câmara nas eleições deste ano, saiu com a pérola que não concordava, pois sem gente “experiente” por lá, os servidores do Poder ficariam com poder suficiente para “levar” os novos vereadores para um “lado” não interessante.
Assim segue Joinville, um governo pífio, atrasado, e um legislativo subserviente, caro e improdutivo. O remédio é o voto este ano, para deixar a cidade mais saudável na área pública.
É assim, nas teias do poder...
quinta-feira, 19 de maio de 2016
Três argumentos sobre a crise e o governo Temer
Por Clóvis Gruner
É ilegítimo, mas não é golpe – O
governo Temer não nasceu de um golpe. Ainda que o impeachment de Dilma Roussef
seja uma verdadeira chicana conduzida para atender os interesses escusos
justamente daqueles que a julgam – e que, não por coincidência, compõem o novo
governo –, nem por isso o termo “golpe” serve para definir o processo movido contra a presidenta, e que culminou com seu afastamento no último dia 12. Não
serve do ponto de vista estrito, como algo desferido de fora e cuja força é externa, já que a articulação para derrubar Dilma foi urdida principalmente desde dentro do governo e de sua base
aliada. Mesmo depois da decisão de romper com um governo
do qual fez parte por mais de uma década, tomada em míseros três minutos, o
PMDB manteve, além do vice, um bom punhado de ministérios. Já que estava em
curso um golpe, seria coerente a demissão dos ministros dissidentes pela
presidenta, o que não aconteceu.
Mas mesmo se a tomarmos em um sentido mais amplo, a ideia de golpe também é problemática. E não porque o rito seguiu a Constituição, garantindo ao menos formalmente ampla defesa do governo; nem tampouco porque a decisão pela abertura do processo foi votada por ampla maioria na Câmara dos Deputados: quem acompanhou o processo sabe que sua base jurídica, no mínimo frágil, foi ofuscada pelos arranjos e interesses políticos em jogo. Arranjos e interesses de que o governo participou, ao passar meses tentando construir alternativas à sua queda, incluindo negociações com os mesmos agentes políticos que hoje chama de “golpistas”. E continuariam a governar com eles se tivessem algo vantajoso a oferecer em troca do voto.
Mas mesmo se a tomarmos em um sentido mais amplo, a ideia de golpe também é problemática. E não porque o rito seguiu a Constituição, garantindo ao menos formalmente ampla defesa do governo; nem tampouco porque a decisão pela abertura do processo foi votada por ampla maioria na Câmara dos Deputados: quem acompanhou o processo sabe que sua base jurídica, no mínimo frágil, foi ofuscada pelos arranjos e interesses políticos em jogo. Arranjos e interesses de que o governo participou, ao passar meses tentando construir alternativas à sua queda, incluindo negociações com os mesmos agentes políticos que hoje chama de “golpistas”. E continuariam a governar com eles se tivessem algo vantajoso a oferecer em troca do voto.
Por outro lado, a narrativa do
golpe traz inúmeras vantagens, a começar pelo fato de que não é necessário um
exame crítico das próprias condutas: um governo e um partido vítimas de um
golpe, afinal, não precisam prestar contas de seus erros. E eles são muitos, a
começar pela forma como o PT não apenas manteve, mas reproduziu as mesmas
práticas fisiologistas de coalizão, incluindo a aliança com o PMDB e o PP (que
já foi PPB, PPR, PDS e, em um passado nem tão longínquo, Arena). Ao mesmo
tempo, foi em
parte para minar o poder peemedebista que PT e governo incentivaram Gilberto
Kassab a fundar o PSD, hoje também um dos principais articuladores do
impeachment. E se hoje há quem se horrorize com os encontros de Temer com
Malafaia, é recomendável não olvidar que a IURD já ocupou acento nas reuniões
ministeriais do governo Dilma, e que a aproximação do PT com as igrejas
evangélicas começou com Lula, que chamou José Alencar para seu vice.
Em 13 anos os governos petistas não avançaram o suficiente, ou
simplesmente não avançaram, em temas fundamentais: o imposto sobre grandes
fortunas; o marco regulatório dos meios de comunicação; a descriminalização do
aborto, a criminalização da homofobia e a legalização das drogas são apenas
alguns deles. A política desenvolvimentista (não confundir com
desenvolvimento), de que Belo Monte tornou-se símbolo, foi priorizada a um
custo social altíssimo, especialmente para aquelas comunidades que vivem à
margem dela. E há as inúmeras
denúncias de corrupção. Se, por um lado, pode-se dizer que as investigações foram
politizadas e espetacularizadas ao extremo, por outro é difícil apostar na
inocência do PT e de algumas de suas lideranças, e acreditar que tudo não passa
de uma grande conspiração da justiça, da mídia e da oposição, quiçá com apoio e
participação internacionais, para perpetrar um “golpe” e voltar a ser governo.
A
meta é não ir pra cadeia – O Ministério de Temer é constituído, à exceção de alguns quadros
do PSDB e DEM, pelos mesmos partidos e políticos que em algum momento dos
últimos trezes anos estiveram no governo ou próximo a ele. Em uma entrevista
concedida quando a palavra impeachment saiu das ruas e adentrou os gabinetes e
articulações políticas da base aliada e da oposição, o agora chanceler José
Serra disse que Temer precisaria montar uma “equipe surpreendente”. O problema
é que, fora Henrique Meirelles (aliás, um dos “homens fortes” da economia na
gestão de Lula), um nome técnico, todos os demais são escolhas políticas, verdadeiras
nulidades nas áreas que irão comandar e, não poucos, estão envolvidos em
escândalos de corrupção, incluindo a Lava Jato.
Não há nada de surpreendente nisso: o governo Temer surgiu para
frear as investigações de corrupção e assegurar a impunidade aos que sempre se
souberam impunes. É um governo feito para livrar criminosos da cadeia e, nesse
sentido, o impeachment foi, fundamentalmente, uma garantia de sobrevivência
política. Os
arranjos começaram a aparecer cedo. Na segunda seguinte (18/4) à vergonhosa
votação na Câmara dos Deputados, o ministro do STF Gilmar Mendes sugeriu, em
entrevista concedida ao programa “Roda Viva”, que Michel Temer poderá ser
absolvido no TSE agora que Dilma, a cabeça de chapa, estava virtualmente
deposta. Trata-se do mesmo ministro que na semana passada, em 24 horas,
autorizou e depois suspendeu o pedido de abertura de inquérito contra Aécio
Neves, do PSDB, pela Procuradoria Geral da República. Há alguns dias a Folha de
São Paulo alertou para o fato de que a meta do PMDB é neutralizar e reduzir os
danos da Lava Jato. Do PMDB e dos tucanos, eu acrescentaria.
A estratégia tem
tudo para dar certo. Além de se apoderar dos mecanismos do Estado, o novo
governo contará com a conivência cínica dos indignados que amassaram suas
panelas e envergaram o uniforme verde amarelo da CBF não contra a corrupção,
mas contra o PT. Além da disposição dos principais setores da mídia a cooperar
com Temer e a nova situação em nome de uma intolerável “conciliação”. Restará,
no parlamento, uma oposição à esquerda minoritária e fragilizada pela derrota,
sem força para fazer frente a um esquema minuciosa e profissionalmente
arquitetado para que tudo volte ao que sempre foi.
Além disso, o novo ministério revela
um governo desconectado não apenas do país, mas do século em que vive. Temer
e seus ministros não se veem à frente nem estão dispostos a governar um país
moderno: plural, multicultural, multiétnico e recortado por diferentes
clivagens (gênero, idade, orientação sexual, etc...). O Brasil do presidente
interino é, fundamentalmente, masculino, branco e hetero, e sua composição diz
muito sobre a sensibilidade social do governo (ou a ausência dela), bem como sua compreensão limitada
do que significa, hoje, democracia. O mais irônico é que, com esse desenho,
estamos mais próximos dos governos ditos bolivarianos, do que dos países norte
americanos e europeus de democracia liberal já consolidada. Mas isso tampouco
importa porque, no fim das contas, a meta não é unificar ou refundar o país: é
simplesmente escapar da cadeia.
A culpa é do PT
e dos “petistas” – A mais nova onda é usar o voto na chapa Dilma
Rousseff-Michel Temer para desqualificar toda e qualquer crítica ao presidente
interino. A lógica do “eu não votei no Temer, vocês sim” não é nova. Ela
atualiza a máxima “A culpa não é minha. Eu votei no Aécio”, corrente antes do próprio
Aécio afundar na lama e os indignados arrancarem os adesivos dos carros e se
justificarem com o bordão segundo o qual eles “não tem bandido de estimação”. Eu
votei em Dilma no segundo turno, e é verdade que
junto com ela ajudei a eleger Michel Temer, candidato a vice em um programa de
governo que a 54 milhões de eleitores pareceu a melhor opção ou, como foi o meu
caso, a menos pior.
Mas
há nessa acusação de “culpa” alguns problemas. Dois mais imediatos. Primeiro, confunde
propositalmente os eleitores de Dilma com “petistas”, como se voto e militância
fossem equivalentes. O segundo: Temer, como acabei de dizer, era o candidato a
vice em um programa de governo com o qual, supostamente, estava comprometido. Caso
assumisse o governo, esperava-se que ele continuasse a implementá-lo. Que ele não
o esteja, reforça o caráter oportunista, desonesto e ilegítimo de seu governo,
além de dar munição a quem defende que o impeachment é, na verdade, um golpe de
Estado encoberto com o manto da Constitucionalidade.
Mas
não é só. Não foram, basicamente, os eleitores de Dilma que tensionaram para um
impeachment que, embora legal, é ilegítimo. Não
foram os eleitores de Dilma, basicamente, os que foram às ruas gritando que
eram “milhões de Cunha” e que permaneceram indiferentes, às vezes
agressivamente indiferentes, sempre que alguém alertava para os riscos de uma
transição abrupta e, insisto, ilegítima como a que está a ocorrer. Então, vamos
deixar claro: nós elegemos Temer. Mas não o fizemos presidente de um governo
que fragilizou ainda mais nossa democracia para, unicamente, proteger e
garantir a sobrevivência política da velha elite.
A falsa polêmica, entretanto, expõe problemas crônicos de nosso sistema político e, mais
particularmente, de nosso modelo eleitoral que, entre outras coisas, promove
uma política de alianças espúria que faz do fisiologismo a regra. Uma das
consequências diretas é, justamente, a ausência de critérios partidários e
programáticos na escolha dos candidatos a vice. Agrava esse quadro o fato de
que no Brasil o voto não é baseado em critérios públicos, mas privados –
vota-se na pessoa, não no partido ou no programa –, o que colabora ainda mais
para não se discutir o lugar e o papel do vice na candidatura e em um eventual
governo.
Em um editorial bastante duro – daqueles que não se costuma ler na imprensa brasileira –, publicado na última sexta (13), o inglês “The Guardian” afirma, sobre o impeachment, que o “que deveria estar em julgamento acima de tudo é o modelo político brasileiro que falhou”, e não Dilma Rousseff que, de acordo com outro jornal estrangeiro, o “New York Times”, paga um preço desproporcionalmente alto pelos seus erros administrativos. Para o “The Guardian”, uma reforma política é não apenas necessária, mas urgente. E lamenta que o governo Temer seja “muito duvidoso” para dar esse salto. Eu também.
Em um editorial bastante duro – daqueles que não se costuma ler na imprensa brasileira –, publicado na última sexta (13), o inglês “The Guardian” afirma, sobre o impeachment, que o “que deveria estar em julgamento acima de tudo é o modelo político brasileiro que falhou”, e não Dilma Rousseff que, de acordo com outro jornal estrangeiro, o “New York Times”, paga um preço desproporcionalmente alto pelos seus erros administrativos. Para o “The Guardian”, uma reforma política é não apenas necessária, mas urgente. E lamenta que o governo Temer seja “muito duvidoso” para dar esse salto. Eu também.
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