POR ET BARTHES
E a cerimônia de abertura teve os seus momentos. Um resumo...quinta-feira, 14 de junho de 2018
quarta-feira, 13 de junho de 2018
Os homens que não amam as mulheres
POR CLÓVIS GRUNER
Um juiz de Mococa, interior de São Paulo, ordenou judicialmente a esterilização de uma mulher, Janaína Aparecida Quirino, depois que o promotor público Frederico Liserre Barruffini instaurou ação judicial com o intento de constrangê-la a realizar o procedimento compulsoriamente. A alegação da promotoria foi que, moradora de rua, mãe de seis filhos e grávida de um sétimo, ela se recusou a fazer a laqueadura voluntariamente. A história veio à luz sábado último (09), na coluna do professor de Direito Constitucional, Oscar Vilhena, na Folha de São Paulo.Desde então, o episódio repercutiu em outros veículos que ampliaram a cobertura e revelaram mais detalhes do caso, além de manifestações nas redes sociais, incluindo o apoio inconteste e irrestrito à medida da outrora estelar Janaina Paschoal, e um desmentido do juiz responsável pelo caso, Djalma Moreira Gomes Junior. Segundo ele, o procedimento foi realizado com o consentimento de Janaína Quirino, atualmente cumprindo pena por tráfico de drogas.
A trajetória de Janaína não é única em um país atravessado, historicamente, por contradições e desigualdades aparentemente insolúveis. A decisão do juiz, por outro lado e até onde sei, é inédita. Mas sua novidade, no entanto, está circunscrita ao ato – aliás, inconstitucional, o que tampouco parece fazer diferença em um país onde juízes driblam a legislação para contabilizar ganhos acima do teto constitucional.
No Brasil, a guerra contra os pobres vem de longa data. Mesmo antes de nos tornarmos nação, após nossa independência e durante o século XX, já no período republicano, nossas elites (econômicas, políticas ou intelectuais) não se furtaram a defender medidas drásticas, às vezes com o lastro da ciência, quando se tratou de sujeitar grupos vulneráveis. A decisão do juiz de Mococa é inédita, mas não é nova, porque retoma e atualiza uma ideia que foi lugar comum nas democracias ocidentais há até pouco menos de um século.
Eugenia e políticas de esterilização – Impulsionadas pelas teses naturalistas surgidas ainda nas primeiras décadas do século XIX, as teorias eugênicas se desenvolveram ao longo da segunda metade do oitocentos. Em seu cerne, a concepção da evolução humana como resultado imediato de leis biológicas e naturais que determinam o comportamento humano, sendo as raças constitutivas de um processo evolutivo no interior do qual se configuraram e cristalizaram as desigualdades.
A naturalização das diferenças legitimou um conjunto de proposições com desdobramentos políticos significativos: se as desigualdades são racialmente determinadas e estruturadas na natureza das populações, é possível asseverar a superioridade de uma raça sobre outras, mesmo a um nível mais cotidiano, afirmando a continuidade entre os caracteres racialmente determinados e a conduta moral dos indivíduos, por exemplo. A expansão colonialista levada a cabo pelas potências europeias se assentou, em grande medida, nesses discursos.
Amplamente aceita pela comunidade científica, a eugenia orientou igualmente ações políticas e governamentais dentro dos próprios países em que foi formulada. Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que pelo menos 70 mil americanos foram esterilizados compulsoriamente, a esmagadora maioria mulheres, nas primeiras décadas do século XX. Os esforços americanos chamaram a atenção de Hitler, que tratou de aprimorar as tecnologias de eliminação dos indesejados, elevando-as a parâmetros industriais de resultados bárbaros e trágicos amplamente conhecidos.
A política eugenista de esterilização em massa seduziu também cientistas e políticos brasileiros. Uma das bandeiras da Sociedade Eugênica de São Paulo, criada pelo médico Renato Kehl em 1918 e que nos anos subsequentes tornou-se um movimento mais nacional, era a revisão do Código Civil. Ele defendia a inclusão de um dispositivo que autorizasse o Estado a proibir o casamento entre indivíduos que apresentassem algum risco da geração de uma prole com tendência à degenerescência. Em algumas versões, a proibição do casamento foi substituída pela esterilização compulsória.
Guerra contra os fracos – Houve um recuo dos discursos eugênicos depois da Segunda Guerra, por razões óbvias. Mas isso tampouco significou, particularmente no Brasil, um abrandamento das relações tensas e violentas entre o Estado e os grupos dominantes, cujos interesses sempre coincidiram, e as populações fragilizadas. Do golpe de 64 aos esquadrões da morte e à Candelária; dos massacres de Eldorado do Carajás ao Carandiru; de Belo Monte à Maré; da prisão de Rafael Braga ao assassinato de Marielle Franco, o Estado de exceção tem sido a regra.
Não surpreende que o recrudescimento de discursos eugênicos, incluindo a defesa da esterilização compulsória, ganhou novo fôlego com as políticas públicas de inclusão que, nas primeiras gestões petistas, impulsionaram a ascensão social de parcelas da população mais pobre. Misto de desinformação e preconceito, proliferaram desde então discursos que insistem em condenar grupos inteiros a uma espécie de subcidadania. E eles incluem assegurar ao Estado o direito de interferir nos corpos, notadamente naqueles considerados descartáveis, precários, indignos mesmo do luto, na expressão de Judith Butler.
E tem sido sobretudo os corpos femininos o objeto privilegiado desse novo front reacionário. Um exemplo: em 2014, o deputado estadual Carlos Bolsonaro, um dos herdeiros de Voldemort, defendeu que o Bolsa Família fosse concedido apenas às famílias cujas mulheres aceitassem se submeter “às cirurgias de laqueadura”. Como bom “liberal conservador”, Bolsonaro argumentava a favor da “liberdade individual” porque, mesmo garantindo ao Estado normatizar e condicionar o recebimento de um benefício à esterilização das beneficiadas, a cirurgia seria “uma escolha do cidadão”. O pai deve ter se sentido orgulhoso.
Não há nisso surpresa ou coincidência. De um lado, parte dos programas sociais, como o Bolsa Família, transfere a elas responsabilidades e lhes dá maior autonomia, “empoderando” mulheres de extratos economicamente mais desassistidos. De outro, assistimos uma ofensiva que desqualifica as políticas e discussões de gênero, vinda de parlamentares e entidades como o Escola sem Partido. A violência contra Janaína Quirino, nesse sentido, é a expressão de um desejo cada vez menos contido de estendê-la a outros e, principalmente, a outras Janaínas. A guerra contra os fracos não tem fim. Contra as mulheres, tampouco.
terça-feira, 12 de junho de 2018
Lula leu 21 livros em 57 dias. E os botocudos puseram a boca no mundo...
POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
“Lula leu 21 livros em 57 dias”.
Só num lugar dominado por gente atrasada o tema podia virar polêmica. Mas esse lugar existe. E nem sou eu a dizer. Uma pesquisa divulgada no ano passado revela que a população brasileira é a segunda, entre 38 nações investigadas, com maior dificuldade em entender a própria realidade. Sempre foi assim, mas as redes sociais tornaram essa evidência gritante.
E por falar em social media, foi justamente no Twitter que o tema dos livros lidos por Lula ganhou força. A coisa acabou mesmo no plano da aritmética. Uma moça de nome Bruna Luiza produziu a seguinte pérola: “Se cada livro tem 150 páginas (o que é pouquíssimo para um livro normal), são 3150 páginas. Lula teria que ler 55 páginas por dia. Qualquer pessoa que costuma ler sabe que isso é irrealista, especialmente para um semi-analfabeto”. Viu?
Ora, é apenas ranço, preconceito e aquilo que podemos chamar ignorância petulante. O Brasil é um país onde persiste a lógica do apartheid social (ricos de um lado e pobres do outro) e ter um curso superior faz muita gente acreditar que é superior. Essa falta de noção faz com que muitos se sintam com autoridade para chamar o ex-presidente de analfabeto – ou semi-analfabeto, como no caso da moçoila.
É fato. Num país como o Brasil, onde a educação sempre foi privilégio, o diploma ainda funciona como elemento de distinção. Mas a verdade é que o país está cheio de obtusos com diplomas. Todos sabemos que, na prática, há pessoas que obtêm um canudo sem terem lido pelo menos dois míseros livros inteiros (se duvida, fale com algum professor). Tudo o que essas pessoas têm são noções epidérmicas sobre os fatos.
A ignorância petulante é resultado desse mal calculado complexo de superioridade. É uma auto-ilusão que leva as pessoas a se imaginarem num patamar intelectual elevado, quando, muitas vezes, estão abaixo disso. Muito abaixo. É o que mostra o caso da moça do Twitter, que considera irrealista ler 55 páginas num dia. Ah, minha cara Bruna Luiza, nem sempre é fácil entender que as nossas limitações são apenas nossas.
O preconceito impede de ver as coisas mais óbvias. Se uma pessoa se julga melhor que as outras apenas porque lê (e aqui há muito a questionar) ou porque tem um diploma, então ela é parte do problema. Aliás, é um saco ver analfabetos funcionais - que às vezes sequer funcionam – arrotando superioridade apenas porque têm um canudo. Eita papo botocudo.
Enfim, parece muito provável que o ex-presidente tenha lido os tais 21 livros em 57 dias, até porque tem tempo de sobra. E, para finalizar, fica a dica: não tenho receio de afirmar que Lula entende mais de economia do que muito economista, de sociologia do que muito sociólogo, de administração que muito administrador. Entendedores entendem...
É a dança da chuva.
“Lula leu 21 livros em 57 dias”.
Só num lugar dominado por gente atrasada o tema podia virar polêmica. Mas esse lugar existe. E nem sou eu a dizer. Uma pesquisa divulgada no ano passado revela que a população brasileira é a segunda, entre 38 nações investigadas, com maior dificuldade em entender a própria realidade. Sempre foi assim, mas as redes sociais tornaram essa evidência gritante.
E por falar em social media, foi justamente no Twitter que o tema dos livros lidos por Lula ganhou força. A coisa acabou mesmo no plano da aritmética. Uma moça de nome Bruna Luiza produziu a seguinte pérola: “Se cada livro tem 150 páginas (o que é pouquíssimo para um livro normal), são 3150 páginas. Lula teria que ler 55 páginas por dia. Qualquer pessoa que costuma ler sabe que isso é irrealista, especialmente para um semi-analfabeto”. Viu?
Ora, é apenas ranço, preconceito e aquilo que podemos chamar ignorância petulante. O Brasil é um país onde persiste a lógica do apartheid social (ricos de um lado e pobres do outro) e ter um curso superior faz muita gente acreditar que é superior. Essa falta de noção faz com que muitos se sintam com autoridade para chamar o ex-presidente de analfabeto – ou semi-analfabeto, como no caso da moçoila.
É fato. Num país como o Brasil, onde a educação sempre foi privilégio, o diploma ainda funciona como elemento de distinção. Mas a verdade é que o país está cheio de obtusos com diplomas. Todos sabemos que, na prática, há pessoas que obtêm um canudo sem terem lido pelo menos dois míseros livros inteiros (se duvida, fale com algum professor). Tudo o que essas pessoas têm são noções epidérmicas sobre os fatos.
A ignorância petulante é resultado desse mal calculado complexo de superioridade. É uma auto-ilusão que leva as pessoas a se imaginarem num patamar intelectual elevado, quando, muitas vezes, estão abaixo disso. Muito abaixo. É o que mostra o caso da moça do Twitter, que considera irrealista ler 55 páginas num dia. Ah, minha cara Bruna Luiza, nem sempre é fácil entender que as nossas limitações são apenas nossas.
O preconceito impede de ver as coisas mais óbvias. Se uma pessoa se julga melhor que as outras apenas porque lê (e aqui há muito a questionar) ou porque tem um diploma, então ela é parte do problema. Aliás, é um saco ver analfabetos funcionais - que às vezes sequer funcionam – arrotando superioridade apenas porque têm um canudo. Eita papo botocudo.
Enfim, parece muito provável que o ex-presidente tenha lido os tais 21 livros em 57 dias, até porque tem tempo de sobra. E, para finalizar, fica a dica: não tenho receio de afirmar que Lula entende mais de economia do que muito economista, de sociologia do que muito sociólogo, de administração que muito administrador. Entendedores entendem...
É a dança da chuva.
segunda-feira, 11 de junho de 2018
Uma geston eficientizaçada #sqn
POR JORDI CASTAN
Não posso evitar o sentimento de otário quando cruzo na rua com um desses sinaleiros “eficientizados” que geram uma economia de R$ 720.000 ao ano. Primeiro, porque uma administração pífia e inepta pode fazer qualquer coisa menos eficientizar alguma coisa. Nem o verbo “eficientizar” aparece no Aurélio. Deve ser desses neologismos que burocratas ficam inventando nas suas horas diárias dedicadas a praticar o onanismo mental.
Em outras palavras, esta gestón ineficiente, que vituperou a inteligência coletiva do joinvilense afirmando que não faltava dinheiro, mas gestão, mostrou depois de poucos dias que não tinha nem dinheiro, nem gestão. A resposta à eficientização dos sinaleiros veio na forma de um aumento brutal da COSIP. Assim, o joinvilense paga mais caro pela eficientização dos sinaleiros. Bingo! Alguma dúvida que o resultado seria esse?
Depois de trocar todas as luminárias vermelhas do Carlito pelas novas de LED, que são mais eficientes e, portanto, consomem menos energia, a lógica diria que a economia deveria ser transferida para o cidadão. E o valor extorsivo da COSIP seria reduzido. Nem preciso avisar que isso não vai acontecer. Seguiremos pagando mais caro pela eficientização da iluminação pública. E ganharemos o pomposo titulo de otário do ano, na categoria ouro, com menção honrosa. Porque trouxa que é trouxa merece ser homenageado e sua bovina mansidão reconhecida publicamente.
Em tempo, nenhum vereador tem se manifestado pelo desperdício de recursos públicos que representa converter em sucata as luminárias substituídas com menos de um terço da sua vida útil. Porque cidade rica se faz assim, jogando fora o que ainda serve, aumentando os valores das contribuições e taxas e administrando cada dia pior.
Para não ficar restrito à eficientização da iluminação pública, podemos incluir a da sinalização horizontal, as mudanças de trânsito, intempestivas e sem estudos técnicos que as sustentem, ou a administração por tentativa e erro. Com mais erros que tentativas, o que, convenhamos, tem muito mérito porque não é fácil cometer mais de um erro em cada nova mudança.
sexta-feira, 8 de junho de 2018
O ativismo identitário e a segunda morte de Dona Ivone Lara
POR CLÓVIS GRUNER
Seu nome contava com o aval dos familiares de Ivone Lara e da própria biografada – falecida em abril último, aos 96 anos –, pois o projeto começou a ser concebido na década passada. A justificativa para a investida contra Fabiana foi que, filha de pai negro (e sambista) e mãe branca, ela não é uma “preta retinta”. Ao aceitar interpretar Dona Ivone Lara nos palcos, Cozza estaria usufruindo do privilégio de ter a pele mais clara e contribuindo para a invisibilidade de artistas negros de pele mais escura.
Não vou discutir a cor da pela e a negritude de Fabiana Cozza. Gente mais capacitada e com legitimidade de sobra já o fez, em apoio a ela – Leci Brandão, Chico César, Emicida, além dos familiares e da própria Ivone Lara. Meu objetivo é discutir a violência que tem sido a tônica da atuação de parte da militância, particularmente nas redes sociais, capitaneada por influenciadores e influenciadoras digitais ávidos por likes e novos seguidores.
A quem acompanha a terra quase sem lei que é a internet, não é novidade que parcela da esquerda brasileira que a frequenta, os chamados “movimentos identitários”, se caracteriza pela prática de um policiamento moralista, arrogante e autoritário. Hostis ao diálogo com quem consideram diferentes – e a diferença se tornou evidência e prova de culpa –, são pródigos em apontar inimigos por toda parte, nem que isso signifique produzi-los.
O comportamento é mais abertamente visível nos "influenciadores de opinião”. Com milhares de seguidores alguns deles, eles parecem menos preocupados em abrir espaços de discussão, qualificar o debate público, em suma, desmantelar as muitas estruturas de poder e preconceito que os oprimem, e mais em uma busca incessante por curtidas e comentários elogiosos, pela sensação de que exercem uma influência sobre um número cada vez maior de seguidores.
Há muita preguiça em uma rede de circulação de textos e ideias que, basicamente, se alimenta e retroalimenta de uma maneira autorreferente e autossuficiente. Em um bom número de blogs e perfis de ativistas, não apenas o esforço de leitura começa e termina dentro da própria rede, como se compartilha um tipo de convicção ingênua de que os movimentos negros, feminista e LGBT nasceram com eles. O passado, quando aparece, surge de forma anacrônica, quando não meramente ilustrativa.
Como resultado, se ignora o esforço de construção desses movimentos e as muitas e complexas redes que os ligam a diferentes temporalidades. Dito de outro modo, falta historicidade a uma boa parte dos movimentos e ativistas, que parecem viver em um contínuo presente porque julgam desnecessário inserir sua militância em um tempo mais amplo, que contemple o passado e suas descontinuidades, seus avanços e recuos.
A fixação no presente explica também a arrogância que se expressa em uma espécie de estoicismo vulgar e virtual: na conduta do militante, sempre moralmente certa e reta, não há espaço para a incoerência e a contradição. Esse novo estoicismo, de verniz moralizante, justifica a exposição pública, a desqualificação, o linchamento de quem escapa a ele e a identidade que o define. Lombrosianos redivivos, os militantes identitários atribuem ao seu inimigo um olhar determinista que naturaliza sua diferença, transformada em uma desigualdade irredutível.
Há algumas explicações possíveis para essas condutas. Uma delas é de que, sem vitórias significativas, apesar de algumas conquistas mais ou menos pontuais, e depois de verem suas reivindicações incorporadas, diluídas e, algumas delas, nunca atendidas, por governos de esquerda – a descriminalização do aborto, por exemplo, nunca avançou –, sobrou a esses movimentos a truculência e o extremismo alimentados, ambos, pelo ressentimento.
Tornado afeto central da militância identitária, o ressentimento é potencializado nas redes sociais. Elas permitem que sentenças sejam rapidamente promulgadas e executadas pelos tribunais populares midiáticos, sem o filtro da reflexão mais ponderada, do debate, do enfrentamento de posições, resumindo tudo a acusações que cabem em uma ou duas frases, com algum esforço, em um post. Grosso modo, os movimentos identitários retiveram o pior da justiça tradicional – seu caráter excludente, por exemplo –, sem preservar, no entanto, seus poucos méritos.
Isso não significa renunciar a características que definem, simbolicamente, nosso “lugar” no mundo, nem desconhecer as desigualdades hierárquicas que atravessam as relações entre diferentes culturas. Mas reduzir a identidade a algo absoluto, uno e coeso é perigoso porque, entre outras coisas, incentiva a construção e a percepção do outro como inimigo, tomando-o a partir de uma essência (étnica, religiosa, de gênero, etc.) ela própria artificial – não desempenhamos, socialmente, um papel único, mas múltiplos, plurais e não raro contraditórios papéis.
Um dos custos dessa busca por uma identidade singular e essencialista é o reconhecimento sempre limitado do outro, dificultando as possibilidades do encontro e da troca dialógica a partir de características mais ou menos comuns. E se Sen associa esse movimento em especial aos grupos e ideias nacionalistas de cunho mais conservador, no Brasil tem sido principalmente parte da esquerda a desempenhá-lo.
Os ataques contra Fabiana Cozza são apenas o mais recente, mas não o primeiro e, desconfio, nem o último caso de violência simbólica, protagonizado pelas redes de militância em nome da identidade e reivindicando, como justificativa, o combate à discriminação e suas consequências. Não há dúvidas que denunciar e combater as diferentes formas de preconceito e suas muitas violências é uma tarefa ética e política das mais urgentes.
Mas se a intenção é realmente desmantelar as estruturas profundas que os produzem e reproduzem, a militância identitária poderia tentar substituir a estratégia do linchamento e da desqualificação pelo confronto e a crítica capazes de forjar alianças, por exemplo, ao invés de se fecharem e cerrarem possibilidades de diálogo. Afinal, o ativismo identitário, suponho, sabe quem são seus verdadeiros inimigos.
Mas a enfrentá-los, inventa novas monstruosidades e produz novos inimigos a serem combatidos e linchados publicamente, em uma sanha persecutória e punitivista que condenamos quando vem da direita ou do Estado. E supõe, ou simplesmente finge supor que, com essa prática lamentável em que se cruzam egos, ressentimentos e disputas mesquinhas por nacos de poder, está de fato tornando esse mundo um lugar mais suportável. Mas não está.
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