quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Câmara Ostentação de Joinville


A festa do Diabo

POR VALDETE DAUFEMBACK NIEHUES

Fonte: Arquivo Histórico de Joinville
Fazia tempo que não me sentia motivada a escrever sobre Carnaval. O último texto foi na época em que semanalmente publicava artigo em um jornal local. Na ocasião fui desafiada por um pensamento que circulava em abundância sobre a preferência cultural dos joinvilenses com foco nas atividades germânicas e, por isso, o carnaval não passava de um capricho de minorias que não tinham o que fazer. Então, fazer o contra ponto a esse pensamento equivocado revisitei alfarrábios de uma pesquisa realizada nos tempo da faculdade sobre o carnaval em Joinville. 

A disposição para pesquisar sobre o carnaval, talvez estivesse na raiz da minha própria história, quem sabe, para expurgar alguns demônios encaracolados na mente de uma menina católica.  No lugar em que nasci e me criei, uma cidadezinha com hábitos medievais, conforme o catequista, o carnaval era “a festa do Diabo”. Por isso, na tarde do domingo que antecedia à quaresma, passávamos de joelhos, na capela, rezando pelas “almas das moças que praticavam a folia”, para que resistissem às tentações diabólicas. Seja lá qual fosse o argumento do catequista a sugerir a imaginação de um ambiente carnavalesco, a menina católica ficava indignada por ter que ficar em contrição pelos pecados alheios. Mas, na educação prussiana era obrigatório o que não fosse proibido. Então não havia muita escolha. Talvez por isso, não aprendi a sambar. 

À época da pesquisa, de acordo com documentos consultados no Arquivo Histórico de Joinville, constatei que no século 19 o Zé Pereira tinha tanta importância quanto o Príncipe, duas figuras lendárias a celebrar a história de Joinville, a primeira, símbolo da diversão e, a segunda, da organização e trabalho. Sim, a manifestação carnavalesca sempre esteve presente em Joinville, embora houvesse distinção social entre os grupos. Enquanto os germânicos mais abastados preferiam o carnaval nos clubes, os bailes de máscaras ao som da polka, o corso (desfile de carroças, substituídas por carros no início do século 20), o restante utilizava a rua como expressão de liberdade para brincar, desde o entrudo, as fantasias de personagens e os blocos carnavalescos (como “As bahianinhas, a canjica pegou fogo”, precursor nesta modalidade, formado por soldados do então 13º Batalhão de Caçadores). Porém, quem quisesse usar máscara como acessório precisava obter licença no departamento de polícia. Essa regra era desnecessária aos associados dos clubes. Os carros alegóricos, com temas locais ou nacionais, também faziam sucesso na época. Enfim, pela quantidade de anúncios de adereços carnavalescos nos jornais da época, os festejam movimentavam o comércio local. 

Assim se desenvolveram as Escolas de Samba, os desfiles de rua, os grandes bailes nos salões da cidade, até que um prefeito, guiado pela razão instrumental, entendeu que, em escala de valor, a infraestrutura dos equipamentos públicos estaria acima da cultura, por isso resolveu extinguir do calendário municipal os festejos carnavalescos. Evidentemente que este corte não valia para outras manifestações culturais da cidade, como as “festas germânicas”.

Hoje, praticamente não se ouve mais comentários sobre a falta de vocação dos joinvilenses para sambar. A duras penas, pressionados por alguns grupos carnavalescos, a prefeitura, nos últimos anos, tem incluído o carnaval em seu calendário de eventos. No entanto, o discurso, como se percebe em redes sociais, inclusive de jovens estudantes, continua sendo moralista e utilitarista. Afirmam que o carnaval, além de trazer os pecados que degradam os bons costumes da sociedade, representa um gasto de dinheiro público que poderia ser aplicado na saúde. Interessante essa dissociação, como se as manifestações culturais não proporcionassem o bem estar, um dos requisitos básicos à promoção da saúde. Por outro lado, não são tão evidentes manifestações contrárias à reforma da Arena Joinville, nem mesmo de gastos públicos aplicados em festas consideradas germânicas. Alguém consegue explicar? 

Acredito que se o meu catequista em vida estivesse certamente não mais diria que o carnaval era a festa do Diabo, mas, uma manifestação que expressa à junção de práticas culturais de diversos povos que celebram a vida. Ignorar o carnaval seria o mesmo que negar a própria existência do Brasil.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

"Casos isolados"




POR PEDRO HENRIQUE LEAL

A história todo mundo já está cansado de ouvir. No dia 19 deste mês, o policial militar Luis Paulo Mota Brentano desferiu dois tiros contra o surfista Ricardo dos Santos, na Guarda do Embaú, após uma discussão. Rapidamente surgiram as tradicionais defesas: “ele não era santo”, “tem que ouvir os dois lados” (onde por ouvir os dois lados, leia: acusar a família da vítima de ocultar evidência e pintar o atirador como a vítima), “ele era um bom policial” (com acusações de abuso de autoridade e de tortura) e a mais importante: “é um incidente isolado”.

A pergunta é: quantos “incidentes isolados” precisa para que se torne um padrão? Neste “incidente isolado”, rapidamente vieram as duas defesas para os “casos isolados”: a que não há comoção quando bandido mata e que não há como saber de antemão se não era “bandido” e que o trabalho das polícias é “vida ou morte”. Na primeira situação é importante ressaltar que sim, existe comoção, e que não, não se espera que criminosos mantenham a lei. Já na segunda defesa, fica evidente que a questão toda não trata-se de “casos isolados”, mas de um problema ideológico das PMs. Peço também que notem um padrão em uma grande parte das vítimas.

Não é o único caso em que essas duas defesas foram usadas. O que se segue são incidentes tanto nacionais, quanto da polícia dos EUA (tomada pelos emissores desse tipo de fala como exemplo) que foram justificados e até elogiados por comentaristas online. E antes de seguir com essa série de “casos isolados”, friso que no Reino Unido, entre 2009 e 2012, a polícia abriu fogo apenas 18 vezes, com nove mortes. Enquanot isso, a polícia brasileira mata cinco pessoas por dia.

16 de março de 2014. A dona de casa Claudia Silvia Ferreira, 38 anos, leva dois tiros em um confronto entre policiais e traficantes na zona norte do Rio. Após o embate, seu corpo é colocado no porta-malas de uma viatura, e arrastado pelo asfalto por cerca de 250 metros. Apesar de motoristas tentarem alertar do que estava acontecendo, os PMs só pararam a viatura quando chegaram a um sinal vermelho. Posteriormente, a polícia carioca alegou que o porta-malas fora aberto por um motoqueiro não identificado. Claudia era negra e favelada.

22 de Janeiro de 2015. Kristiana Cognard, uma adolescente de 17 anos de Longview, Texas, é baleada quatro vezes no interior de uma delegacia de polícia. Bipolar, Cognard teria “ameaçado os policiais” com uma arma branca (não identificada e não apresentada pela polícia”, o que justificaria a ação). Não houve tentativa de detê-la através de métodos não letais.

19 de Julho de 2014. Eric Garner, 43 anos, morador de Statten Island, morre após ser estrangulado por um policial. Suas últimas palavras eram “eu não consigo respirar”. O crime de Garner: vender cigarros. O confronto fatal foi filmado por um transeunte - para o qual foi emitido um mandado de prisão. No vídeo, não se vê comportamento agressivo por parte do falecido (que teria “violentamente resistido a prisão”). Garner era negro.

2 de agosto de 2014. Haíssa Vargas Motta é baleada fatalmente em uma perseguição no Rio de Janeiro. Motta e três amigos estavam de carro quando passaram em frente a uma viatura que procurava um veículo suspeito. Foram dados dez disparos; normas operacionais da PM não autorizam que se abra fogo contra um veículo por este não obedecer ordem de parada. Haíssa era negra.

22 de janeiro de 2014. Vinícius de Souza Ruiz tem R$ 984 apreendidos pela PM ao ser detido em protesto contra a Copa do Mundo. O dinheiro era parte do seu salário, tomado pela polícia como evidência do pagamento de manifestantes. Ruiz foi um dos 262 manifestantes presos somente naquela manifestação.

15 de maio de 2014. Patrícia Rodsenko é atingida no olho por estilhaços de uma bomba de gás lacrimogênio enquanto voltava de um protesto na capital paulista. A manifestação contra o mundial durou apenas 20 minutos antes de ser violentamente reprimida pela PMSP.

14 de setembro de 2013. O servente de pedreiro, José Guilherme da Silva, 20 anos, é encontrado morto, algemado, com um tiro na cabeça, por sua mãe dentro de um camburão da PM, no interior de São Paulo. A polícia alega suicídio, mas a família contesta a versão, dizendo que “foi executado pelos policiais que prenderam”. Da Silva estava algemado quando “atirou na própria cabeça”.

22 de novembro de 2014. Tamir Rice, um menino de 12 anos de Cleveland, é baleado fatalmente por dois policiais que atendiam uma chamada de emergência. Rice carregava uma arma de brinquedo, e o porte de armas é legalizado no estado. Enquanto defensores da ação alegavam que o menino “era uma ameaça” e “devia ter acatado as ordens da polícia”, vídeos demonstram que os oficiais dispararam dois segundos após chegar ao local. Rice era negro.

6 de agosto de 2014. John Crawford, 22 anos, é morto a tiros no interior de um Walmart em Beavercreek, Ohio. Crawford carregava uma arma de ar comprimido das prateleiras da loja quando foi alvejado pela polícia. Segundo sua esposa, com quem falava ao celular antes de ser baleado, suas últimas palavras eram “não é de verdade”. Crawford era negro.

Janeiro de 2015. Um morador de rua esquizofrênico em Blumenau é agredido por policiais. O vídeo da agressão foi postado em redes sociais por parentes da vítima. A PM-SC tentou justificar o caso alegando que o homem, que aparenta desarmado e desorientado, estava tentando cometer um homicídio.

Julho de 2012. Milton Hall, um morador de rua de 49 de Saginaw, Michigan, é morto com 48 tiros por oito policiais após uma discussão. Hall portava um abridor de cartas. 14 dos tiros o atingiram. Após o tiroteio, os policiais algemaram o cadáver. A justiça local se recusou a fazer uma investigação, alegando que Hall era uma grave ameaça para oito policiais armados. Hall era negro.

26 de dezembro de 2014. o entregador de pizza Ruzivel Alencar de Oliveira, 19 anos, é morto com um tiro na boca e um no peito por um policial militar, no ABC Paulista. Ruzivel sonhava ser policial. O PM que o matou atendia uma chamada de “perturbação da ordem pública”: um grupo de jovens ouvia som alto demais em um carro. O policial se defendeu alegando que achou que o rapaz estava sacando uma arma. O corpo e o local do crime não foram periciados, e a delegada responsável pela apuração ouviu apenas os policiais envolvidos.

Isso tudo é só um pequeno recorte de casos que foram defendidos (a unhas e dentes) como “ser duro com o crime”, e até parabenizados. Em todas as situações, culpou-se a vítima, e tentou-se reescrever o que aconteceu como algo “normal”. Talvez seja “normal”, porque aceitamos isso rotineiramente. Mas há de haver uma raiz por trás disso, e talvez tenhamos um Ouroboros (a serpente circular, comendo seu próprio rabo) de violência em mãos.

A mentalidade de “matar ou morrer”, algo que deveria ser inaceitável por parte dos agentes da lei, é uma constante em grande parte das forças policiais do país (e o mesmo ocorre nos EUA). De fato os policiais estão sujeitos a uma grande dose de violência, e um grau elevado de risco. No entanto, ao agir com base em temor (como expôs o artigo do El País linkado mais acima) tem levado agentes de “segurança” pública freqüentemente a agirem como agentes de violência pública.

Isso para não mencionar os grupos (com e sem ligação com a polícia) que promovem esse tipo de mentalidade de “atire primeiro, pergunte depois”. Não são poucos os grupos, políticos e partidos que promovem a mentalidade do “bandido bom é bandido morto” e “se morreu algo de errado fez”. Nenhum para e pensa a polícia possa por vezes estar errada. Ao invés disso, veem os policiais como super-humanos infalíveis e prescientes. E menos ainda que ao defender incondicionalmente a polícia em seus erros mais brutos, esteja promovendo ainda mais violência.



Você tem de entender meu mundo. A todo momento eu acho que vou morrer. Não posso falar um ‘por favor’ ou um ‘muito obrigado’ para uma pessoa que pode estar querendo me matar” - PM entrevistado pelo El País




terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Bloco dos sujos.


Uma vitória da extrema esquerda?

POR MURILO CLETO
A vitória da "extrema esquerda" na Grécia não é exatamente uma vitória da extrema esquerda. Explico: nas eleições parlamentares de domingo, três forças estavam em jogo: a Nova Democracia, representada pelo atual primeiro-ministro, Andonis Samarás; a Aurora Dourada, composta fundamentalmente por neonazistas; e o Syriza, que, aliado ao espanhol Podemos, virou a grande sigla da esquerda nas urnas.
O que aconteceu ontem no berço da democracia é menos uma aposta dos eleitores nas pautas históricas da esquerda marxista e mais um basta na política econômica que mergulhou o país na mais grave crise de sua história, especialmente de 2010 para cá. Fadada ao desespero pela quebradeira geral que tomou conta do mundo desde a falência do Lehman Brothers, a Grécia escolheu o remédio receitado pela União Europeia e os desdobramentos foram catastróficos: mais empréstimos dos bancos internacionais, menos direitos sociais, maior arrecadação tributária, menos gastos públicos. Milhares de servidores públicos foram simplesmente desligados da folha estatal.
Com a opção pelo modelo neoliberal, a soberania nacional deu lugar a uma porção de concessões que fizeram da Troika a verdadeira dona da Grécia. Banco Central Europeu, FMI e Parlamento Europeu deram todas as cartas, com o aval do parlamento nacional, de mãos confortavelmente atadas em favor das instituições financeiras. E tudo isso funcionou? Bem, o crescimento econômico permanece congelado; o número de desempregados beira a margem de 30%; e a dívida pública do país aumentou de 146% para 177,2% do PIB nos últimos 5 anos!
Isso significa que, para pagar tudo o que deve, a Grécia precisaria cortar absolutamente todos os gastos públicos por quase dois anos enquanto arrecadaria todos os tributos - algo que é, evidentemente, impossível. Quem prenuncia para agora o fundo do poço pra Grécia ou é muito desonesto ou sofre de uma miopia incurável, pois não acompanhou nem de longe o caos que o país tem vivido por uma canetada desastrada atrás da outra.
A maior evidência de que a vitória do Syriza não é exatamente uma vitória da esquerda foi anunciada hoje: para conseguir maioria absoluta no parlamento, o partido deu sinais de que vai se unir à direita nacionalista. E não é de se assustar: a Grécia deve rever imediatamente os títulos da dívida pública e as condições de empréstimo impostas outrora pela Troika. É por isso que nos últimos meses se fez tenta pressão contra a esquerda nas eleições, de ameaças de expulsão da União Europeia para baixo. Essa foi fundamentalmente a única pauta eleitoral do Syriza, e também pudera.
E O BRASIL?  O que o Brasil tem a ver com isso? Aparentemente nada, pois, apesar da retração econômica dos últimos meses - e que deve se estender ainda por algum tempo -, aqui a dívida pública não ultrapassa os 34%. Mas o caminho apontado pela nova equipe do Ministério da Fazenda é preocupante. Não há eufemismo: o que o governo federal promoveu nos primeiros dias de mandato é corte: corte em benefícios previdenciários/trabalhistas para socorrer o desequilíbrio das contas, que nada tem a ver com a corrupção na Petrobras, como creem analfabetos políticos de toda ordem, mas com o excesso de gastos do Estado associado ao baixo crescimento e à imensa dívida pública que hoje está acumulada em mais de R$ 2 trilhões.
Para quem pergunta onde estão os eleitores de Dilma, eu respondo: aqui. Nunca foi e não será agora meu costume aparecer apenas de quatro em quatro anos. E, verdade seja dita, boa parte dos "analistas políticos" de plantão está se expondo ao ridículo ao criticar as medidas tomadas por Joaquim Levy: esse era exatamente o programa de governo de Aécio Neves, cujas pautas, infelizmente, ninguém leu.

Mas essa é outra e, espero, nem tão distante conversa.