POR CLÓVIS GRUNER
Com este mesmo título, três pesquisadores cariocas
publicaram, na última edição da
revista Dados, artigo onde analisam a controvérsia
gerada em torno ao livro “Caçadas de Pedrinho”, em 2010, e as manifestações
racistas presentes na obra de Monteiro Lobato. As conclusões não chegam a ser
uma novidade para quem já leu o escritor paulista: seja em textos adultos –
como no romance “O presidente negro”, de 1926 –, em suas cartas ou nos
livros infantis, notadamente os do “Sítio do Pica Pau Amarelo”, Monteiro Lobato
não cansa de afirmar e reafirmar suas convicções racialistas, enaltecendo a
superioridade dos brancos ou acusando a inferioridade dos negros.
Os
indícios se espalham pela sua obra – nas alusões sempre pejorativas a Nastácia;
ou no epílogo de “O presidente negro”, onde a esterilização dos negros é
apresentada como um “manso ponto final étnico ao grupo que a ajudara [a raça
branca] a criar a América, mas com o qual não mais podia viver em comum” –, mas
marcaram igualmente sua trajetória pessoal. Lobato foi um ardoroso defensor da
eugenia e um entusiasta da Ku Klux Klan. Em carta ao médico e amigo Arthur
Neiva, um dos mais ativos membros da Sociedade Brasileira de Eugenia, ele
escreve que “país de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma
Kux-Klan, é país perdido para altos destinos. (...) Um dia se fará justiça ao
Klux Klan; tivéssemos ai [no Brasil; nesta época, Lobato vivia nos Estados
Unidos] uma defesa desta ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos
hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego,
e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”.
Claro,
pode-se objetar que se tratava de um pensamento comum à época e que Lobato
pensava com as balizas intelectuais e morais do seu tempo. Mas é uma
verdade apenas parcial. Primeiro porque a própria eugenia e seu projeto de purificação
racial (eu = boa; genus = geração), embora tenha de fato seduzido governos e
intelectuais de diferentes orientações, nunca foi um consenso. No Brasil ela
foi combatida por, entre outros, Graça Aranha, Roquete Pinto e Lima Barreto,
escritor de quem Lobato, inclusive, editou “Vida e morte de M. J.
Gonzaga de Sá” em 1918. Além disso, ele não limitou sua militância racista à
eugenia, revelando-se um simpatizante entusiasmado da KKK, organização que nunca
foi conhecida pelas suas virtudes científicas.
Ora, não
causa espanto que Lobato tenha tratado as personagens negras não apenas como
subalternas socialmente, mas inferiores racialmente. Igualmente, não deveria
provocar estranheza que o Ministério da Educação acatasse pedido de verificação
dos conteúdos racistas em uma das obras do escritor, distribuída gratuitamente nas
escolas brasileiras como parte do Programa Nacional de Biblioteca na
Escola. Não deveria, mas causou. E como soe acontecer sempre que a direita se
mobiliza, o estranhamento justificou o escândalo, e o escândalo se sustentou em
uma mentira: a de que o governo federal estava querendo censurar Lobato. Nada
disso: nenhum dos dois pareceres encomendados a especialistas pede o banimento
ou censura da obra. Solicitam apenas que, além do treinamento dos professores
para usar em sala o livro, fosse inserido nele uma “contextualização crítica do
autor e da obra, a fim de informar o leitor sobre os estudos atuais e críticos
que discutem a presença de estereótipos na literatura, entre eles os raciais”.
Não adiantou, porque a gritaria seguiu seu rumo, desta vez acusando
o perigo de interferir em uma obra literária
sacrificando seu valor artístico em nome da “ideologia”. Interessante que o
mesmo livro motivo de tamanha controvérsia já trazia em suas reedições uma nota
explicando, em passagem onde Pedrinho organiza uma caçada, que a história foi escrita
em uma época onde os animais silvestres ainda não eram protegidos, nem a
onça-pintada estava ameaçada de extinção, e que tal prática hoje não é mais
aceita. Ou seja, os mesmos que consideravam inaceitável interferir na obra de Lobato
para “contextualizar” seu racismo, nada disseram quando se interferiu nela para
explicar a diferença entre as caçadas de ontem e sua proibição hoje. Claro, não
interessa a ninguém que uma criança negra se sinta humilhada ao ler passagens
pejorativas a respeito de suas origens, sua cultura e a cor da sua pele. Já os
sentimentos da onça...
MAS E DAÍ?, podem estar se perguntando alguns. Não acho que
o artigo mencionado vá reavivar a polêmica. No Brasil, a produção acadêmica raramente
pautou o debate público, porque a ela preferimos gente da inteligência e do
caráter de um Reinaldo Azevedo. Mas o imbróglio envolvendo “Caçadas de Pedrinho”
em 2010 é atualíssimo. Ele diz respeito a outro debate, travado principalmente
nas redes sociais e nas mídias audiovisuais, em especial a televisão. Me refiro
a oposição entre o que se convencionou chamar “politicamente correto” e “politicamente
incorreto”. Não tem sido incomum ler e ouvir adjetivações negativas sobre o
primeiro, como se a sua simples existência ameaçasse as liberdades de pensamento
e expressão. Será?
Toda generalização é perigosa, mas vou assumir o risco: ao
menos no Brasil, o politicamente incorreto tem servido aos fins mais pífios.
Ele tem sido reivindicado sempre que jornalistas, blogueiros, formadores de opinião,
artistas, intelectuais, humoristas, etc..., tentam justificar, defender e legitimar
o que consideram seu direito inalienável de agredir, desqualificar, ofender e humilhar
principalmente as chamadas minorias. Não, não são os brancos de classe média
alta, nem os homens heteros os alvos privilegiados do politicamente incorreto –
e quando acontece de o serem, as desculpas públicas vem a galope. Incapaz de
ultrapassar o chamado senso comum, de fazer-lhe a crítica, de expor seu
ridículo, o politicamente incorreto o reforça e reproduz atacando mulheres (as
feias, principalmente, que devem agradecer quando estupradas), negros, índios,
pobres, gays, deficientes e quem mais ele julgar inferior e incapaz de se
defender. O politicamente incorreto não é apenas preconceituoso, racista,
machista e homofóbico; ele é covarde.
E autoritário. Sim, porque o politicamente incorreto quer
continuar agredindo, ofendendo e humilhando sem ser contestado, acusando - vejam só! - de intolerância quem o contradiz. Para sua
desgraça, no entanto, os tempos são outros: estamos mais atentos a força das
palavras, ao que elas significam e produzem socialmente. Ninguém, ao menos
ninguém com um mínimo de bom senso (mas sempre há quem não o tem) levantará a
voz ou deslizará os dedos no teclado para calar quem quer que seja. Mas igualmente
não se aceita mais, resignadamente, como inevitável que se reafirmem
estereótipos que são a expressão de uma violência simbólica a perpetuar ódios
de classe, gênero e etnia, tão profundamente arraigados na nossa história. Ser politicamente
correto é chato? Que seja. Mas é melhor que ser politicamente um protofascista.