POR IZAIAS FREIRE*
Uma hipótese que desenvolvi em recente pesquisa sobre Joinville durante o regime civil-militar instaurado em 1964 foi a de que o momento em que mais se fez sentir a repressão na cidade foi durante o governo Geisel, ao contrário dos grandes centros urbanos do país. E, no entanto, Geisel praticamente caiu no esquecimento. A memória coletiva na cidade tem em Costa e Silva a principal referência acerca das marcas do regime de 1964 em nosso passado recente. Isso talvez aconteça pelo fato de o general-ditador constituir-se no mais visível monumento à ditadura no cotidiano da cidade, afinal, não se trata de um logradouro qualquer, Costa e Silva dá nome a um de seus principais bairros.
Observe os demais monumentos à ditadura em Joinville. Poucos sabem que na galeria dos títulos honoríficos concedidos pelo legislativo da cidade figura o de cidadão honorário de Joinville dado a Médici em 1971. Quais transeuntes já se deram conta da Praça Marechal Castelo Branco no centro da cidade? Estabelecimentos de ensino como as escolas E.E.B. Presidente Médici e E.M. Presidente Castelo Branco continuam como monumentos ao regime de 1964, embora sejam estes mais transitórios: escolas são fechadas o tempo todo e junto com elas vão-se os vestígios desse passado. Quem se lembra do retrato de Geisel no Conselheiro Mafra? Quem ainda se lembra da Escola de 1° Grau 31 de Março no Iririú? São monumentos contingenciais, com o tempo deixam de existir, aos poucos tendem a desaparecer da memória coletiva. Quando a referência é um bairro, por outro lado, o monumento tende a perpetuar-se.
O monumento a Costa e Silva constitui-se, na acepção do pensador alemão Walter Benjamim, um documento à barbárie, cujo processo de transmissão tem passado de um vencedor a outro, configurando-se assim como um poder material e simbólico que tem atuado no reconhecimento público desse vencedor.
O que está em jogo na mudança de nome do bairro Costa e Silva é a identificação ou não com esse monumento. Ou seja, passados os anos, as pessoas na cidade sentem-se representadas pelo ditador que instaurou o AI-5? A população precisa decidir, a despeito de todos os inconvenientes que implicam na mudança de nome de um bairro, se quer continuar a conviver com a referência a um regime que exilava, prendia, torturava e matava seus oponentes. Se aceita manter um monumento ao autoritarismo na constelação de seu patrimônio histórico em tempos de democracia.
É fato que o legado de Costa e Silva deixou marcas para cidadãos joinvilenses: pessoas foram presas, torturadas, censuradas, investigadas, alvos dos temidos serviços de informações como o SNI e o DOPS, outras perderam emprego, entraram para “listas negras” de personas não gratas nas fábricas locais.
Embora a nossa tradição histórica tenha sido a da conciliação, está mais que na hora de abrir esse debate que só cabe a uma cultura política democrática. E não estamos a tratar de algo incomum. Essa tem sido a tendência do movimento da história nas últimas décadas. Quando os regimes autoritários caíram na Europa, seus monumentos tiveram a mesma sorte. Assim foram destruídos os monumentos nazistas, stalinistas e fascistas de um modo geral. O monumento histórico só é legítimo quando não nega as lutas e contradições que o envolveu, quando não visa naturalizar a história do vencedor sobre os vencidos.
*Izaias Freire é Mestre em História, pesquisador da ditadura civil-militar em Joinville e membro do Movimento pra mudar o nome do bairro Costa e Silva.