O dia amanhece ensolarado nesta manhã de primavera em Lisboa. Tomo o pequeno almoço (café da manhã) e, enquanto passo a manteiga no pão, ouço o apresentador do telejornal a falar de um país onde manifestantes invadem e queimam prédios de ministérios. É a Venezuela, penso. Não. É o Brasil. Um país onde um presidente continua acantonado e se recusa a renunciar. É um morto político. Nunca foi um governo, mas agora virou uma versão classe c do “the walking dead”.
No trem, a caminho do trabalho, um cartaz das Conferências do Estoril. O painel de conferencistas é formado por pessoas que “mudaram o mundo”. Gente de peso. Madeleine Albright, ex-secretária de Estado de Bill Clinton, é a cabeça de cartaz. O time conta ainda com quatro ganhadores do Nobel da Paz e figuras como Oliver Stone, Nigel Farage ou Edward Snowden (por videoconferência). Num cantinho, aparece a foto de Sérgio Moro. Não dá para conter o riso com o erro de casting.
A viagem deve durar uns 20 minutos. Aproveito para entrar no Twitter, que é onde encontramos a informação em primeira mão. Tenho uma notificação. É uma mensagem de uma pessoa cujo maior mérito na vida foi nascer de pais ricos, a me apontar o dedo e a falar em “corrupto de estimação”. Podia encetar uma discussão, mas o cara é um seguidor de Jair Bolsonaro. Quer dizer, não tem os dois dedinhos de testa necessários para construir uma frase com sentido. Em frente...
As notícias são muito más, todos sabemos. Vejo a foto de um policial com uma arma na mão ameaçando atirar em manifestantes. Talvez seja mesmo melhor chamar o Exército. Mas para tirar as armas desses policiais mal preparados. Que perigo. Uma pessoa fala em Aécio e sobre ameaças de suicídio. Outra diz que Aécio teria sido preso, mas não tem certeza. Um jornalista fala na briga pelo poder entre a PF e a PGR. E o líder de movimento popular diz que “é o roteiro da queda de Temer”.
Mas nem tudo é tensão. De volta a Joinville, alguém republica um post onde um “jênio” local tinha feito uma promessa. “Vou deixar bem claro, se eu flagrar black brocks, vândalos pseudos esquerdistas e outros movimentos, destruindo bens públicos e ou privados, não vou assistir passivamente. Aproveito para informar que tive excelente treinamento militar, com especialização em armadilhas de selva e urbana. Estão avisados”. É isso. Mal escrito assim mesmo. Você podem dormir sossegados, joinvilenses.
Troco de rede. O Facebook é mais ilustrativo. Há fotos da marcha sobre Brasília, de manifestantes ensanguentados, de gente a apanhar da polícia e outros num choro forçado pelo gás. Imagens do Buzzfeed mostram a cavalaria a avançar sobre a multidão e, logo a seguir, a multidão a avançar sobre a cavalaria. Outro vídeo mostra que lá dentro, no plenário, deputados decidiram partir para a porrada. Mas a imagem mais impressionante é a de um dedo extirpado e abandonado na grama (espero que não seja verdadeira).
Já no trabalho, recebo mensagem de um amigo que vai com a família de férias para o Brasil e tem as passagens compradas. Quer saber se corre algum risco. Não sei o que responder, limito-me a dizer que é melhor esperar pelos próximos acontecimentos. Uma amiga vem até a minha mesa e diz que viu o noticiário da noite anterior. Ficou assustada com o que se passa e pergunta por que o presidente insiste em não renunciar. Digo apenas que talvez ele queira sair, mas está amarrado por muitos interesses.
Daqui a pouco tenho uma reunião de trabalho. Enquanto espero, fico a pensar: “Desrespeitar a democracia é uma coisa fodida. É como estar numa escada e perder o equilíbrio. Porque se erra um degrau, erra todos”. Eis o caminho para o caos. E são apenas 10 da manhã em Portugal (6 horas no Brasil).
É a dança da chuva.