domingo, 19 de fevereiro de 2017

Um texto impoliticamente correto











PPOR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Um dia destes o jornalista Ronaldo Corrêa, companheiro de trabalho nos tempos de jornalismo diário, foi para as redes sociais questionar do patrulhamento do politicamente correto. A queixa tinha a ver com a polêmica causada pela expressão “cabeça preta na bola branca”. Inimigo declarado do politicamente correto, que acabou virando uma espécie de cripto-fascismo, decidi enveredar pelo caminho dos bordões de narradores de futebol e tentar imaginar algumas repercussões.

Como diria locutor Januário de Oliveira, “tá aí o que você queria”.
“Ripa na chulipa e pimba na gorduchinha”.
-       Osmar Santos é gordofóbico.
“É fogo no boné do guarda”.
-       Osmar Santos defende a violência contra policiais.
“Pelas barbas do profeta”.
-       Sílvio Luiz faz propaganda encapotada para os jihadistas.
“Foi, foi, foi, foi, foi ele”.
-       Sílvio Luiz estimula a delação.
“Este até a minha avó fazia”.
-       Sílvio Luiz é edaísta (tem preconceito contra gente velha).
“No Gogó da Ema”.
-       Sílvio Luiz defende a prostituição.
“Para tudo, para tudo”.
-       João Guilherme promove as greves.
“É fogo”.
-       Fiori Giglioti é piromaníaco.
“Mandou mal, lá na geral, que nem perna de pau”.
-       José Carlos Araújo – o Garotinho não respeita os deficientes físicos.
 “Agora eu seu consagro”.
-       Milton Leite não respeita os analfabetos.
“É nosso, nosso, nosso”.
-       Wilson França prega o individualismo contra os interesses coletivos.
“Tá lá o corpo estendido no chão”.
-       Januário de Oliveira estimula o crime.
“Sinistro”.
-       Januário de Oliveira faz propaganda para Michel Temer.
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sábado, 18 de fevereiro de 2017

Admirável espetáculo (parte dois - final)


POR APOLINÁRIO TERNES

Olhemos o Estado de santa Catarina. Construiu-se e se mantém o mesmo castelo de cartas, cuidadosamente montado sob inspiração de marqueteiros. Estão distantes os tempos em que a economia catarinense era forte e o Estado tinha condições de investir e fazer obras. Nos últimos anos, o castelo é sustentado por milhões de reais aplicados na mídia em nome de uma servidão a que ela jamais se recusou a prestar. Tanto país afora, quanto em SC. O que apenas facilitou a corrupção e a sustentação dos 13 anos do PT em Brasília. Até aqui, contudo, ninguém cobrou a omissão e a conivência da mídia, que perdura até nossos dias.

Ainda e, principalmente, agora. O Estado continua um dos maiores clientes de publicidade no país. Trata-se de um desaforo inaceitável, quando o povo morre nos hospitais e presos são tratados como animais. Em SC há muitos anos e ainda hoje a receita é a mesma. Com todos os cúmplices e beneficiários de sempre. Nos tempos de crises sérias, por aqui não faltam retratos inescrupulosos de um povo feliz e realizador. Mesmo que greves e paralisações mostrem realidades opostas, Santa Catarina segue no caminho em que afundaram o Rio Grande do Sul primeiro e, depois, o Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Norte e outros tantos que iremos conhecer em meses.

O colapso do Estado é real e brutal, ainda que muitos digam que nisto não se deve tocar, falar ou apontar. O custo da mediocridade de um lado, da ineficiência e populismo do outro. Os jornalistas são raros, os intelectuais desapareceram. Primeiro apoiaram a devastação do PT, agora se desesperam na preservação de seus empregos públicos. Muitos continuam nas quadrilhas do PSDB e do PMDB, igualmente partícipes do processo de depredação da coisa pública no país.

A desgraça do mundo não se reduz à desmoralização da Democracia ou à decadência da Política, das artes, do sistema de educação e da mídia, mas, e principalmente, estamos sendo jogados num mundo em que apenas o fator religioso pode socorrer e impedir a mutação do humano num ente metade carne e metade tecnologia, como estamos a caminho. A próxima etapa, a da inteligência artificial, cujos fundamentos já foram fincados pela universalização da imbecilidade, tem sido alvo de muitos artigos, conferências e livros de alguns estudiosos do futuro. Leia-se o último livro – Homo Deus - do historiador israelense Yuval Noah Harari, grande sucesso mundial em 2016.

A contribuição da mídia para a instalação dessa admirável sociedade de imbecis em todo o planeta é das mais significativas. Mas não é dela apenas o brilhantismo da realização. Também contribuíram de forma significativa os novos intelectuais que se instalaram nas melhores universidades do planeta, plantando o pensamento único do ‘politicamente correto’, invencível obscurecimento do mundo moderno, sob os fundamentos dos mais disparatados raciocínios. Os artistas, especialmente os denominados ‘plásticos’ - polivalentes criadores do feio e do ridículo – cultuados na mídia ‘progressista’ de todo planeta, também ajudaram. Assim, ‘criaturas do pensamento’ instaladas na mídia, na academia e nas artes se encarregaram de destruir todo e qualquer resquício de cultura, do belo e do que emociona nas manifestações intelectuais do nosso tempo. Nasceu o mundo feio, caótico e ‘menos desigual’ que assusta a todos e a tudo macula e enxovalha.

De fato, há uma curiosa combinação de fatores e de interesses na construção dos cenários de frivolidades e efemeridades em que vivemos. Não apenas a indústria da informação, com o desmoronamento da imprensa – instituição da modernidade tanto quanto a repartição dos poderes – mas com a massificação dos processos educacionais que, cada vez mais intensamente, estão se pulverizando em amenidades, superficialidades e irrelevâncias. O ensino é um desarranjo só em todas as partes do mundo. Restam apenas alguns centros de referência nos países do leste asiático, onde se pesquisa, produz e, principalmente, se persegue a disciplina, o método e o aprendizado real.

No restante, existem apenas falsos mestres e aprendizes equivocados. Todos se nivelam por interesses menores, de salários, carreiras e fama. A mistificação e o falso se revezam nas melhores escolas, seja aqui no Brasil, quanto na América, em Londres ou mesmo na França, onde a cultura e a educação tiveram pontos altos. Tiveram. Na ‘sociedade global e do conhecimento’ valem apenas as redes sociais. O celular, alimento indispensável e de uso contínuo das mentes ralas do nosso tempo, comanda o mundo. Impera em tudo, da política à religião, da economia ao lazer. Tudo é feito, conectado e resolvido por esses aparelhos minúsculos que encolheram o planeta e reduzem cérebro, mentes e almas de todos nós. Somos, os reféns do celular e do mundo digital, os andróides de hoje.

Estamos apenas no alvorecer da sociedade digital do terceiro milênio. Sim, as expectativas são imensas, apesar das nuvens pesadas, das trovadas e das descargas elétricas nos céus. Inesperadas mudanças que não ocorrem apenas na economia, na política e na cultura, mas se registram de forma assustadora no próprio clima da mãe Terra. Há muito ainda pela frente.

Como, afinal, poderia ser o mundo de amanhã? Apenas de chuvas e tormentas? De angústias e medo? De lenta desesperança? Não é o que penso, vencida a primeira etapa daquelas tormentas. Mantenho-me otimista quanto a espécie humana e cultivo o nobre sentimento do ceticismo. O aprendizado humano é lento. Feito de milênios de paciência e de invencível obstinação. O espetáculo da vida não é feito apenas de crescimento e aceleração, como estamos conhecendo nos dois últimos séculos. É lento, sinuoso, cheio de surpresas. Como agora, de novo.

Foi assim há dez mil anos, quando inventamos a agricultura. Seguiram-se os grandes impérios e as civilizações do Egito, da Grécia e Roma. Alexandre, o Grande, viveu cerca de 300 anos antes de Cristo. Foi o primeiro Napoleão do planeta. Daquela época, nos ficaram Buda, Zoroastro, Abraão, Jesus Cristo. Depois veio Maomé e o islamismo. A expansão muçulmana. As grandes descobertas, Cabral e Colombo. O novo mundo. A Reforma, Gutenberg, o Iluminismo. A revolução industrial. E hoje, temos a pós-verdade e a pós- modernidade, nas bordas do fim da sociedade de consumo.

Há um futuro, talvez brilhante para a espécie humana. Por que não um retorno à natureza? Um retorno à espiritualidade? Um retorno ao respeito à individualidade? O fim da autoridade e do autoritarismo? Um novo matriarcado não será possível? Sim, existiu – é pouco conhecido e menos divulgado – uma sociedade matriarcal há cerca de cinco mil anos. Não um grupo isolado e efêmero. Sociedades que se espalharam pela Europa do paleolítico e deixaram esculturas de deusas-mães gordas e férteis. As escavações arqueológicas jamais encontraram nestes sítios qualquer tipo de arma, ou mesmo de esqueletos que tiveram mortes violentas.

Supõe-se que existiu uma civilização que não conheceu hierarquias, armas, propriedade e muito menos exércitos. Teria sido a Idade de Ouro, o Jardim do Éden, a Terra Prometida?  Talvez estejamos a pleno caminho desse retorno. Não foi Nietzsche que escreveu sobre isto, assim como os filósofos da Grécia antiga? O espetáculo admirável da vida e do planeta, da história e dos homens, continua admiravelmente o mesmo. Também nos dias interessantes em que fomos contemplados. Espetáculo curto, mas sempre fascinante. Como agora. 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Admirável espetáculo (parte 1)*


POR APOLINÁRIO TERNES
 Serenidade e resignação são virtudes indispensáveis para se olhar o mundo através dos cenários de 2017 e a partir dos quintais que habitamos na era do ‘conhecimento, da informação e do consumo pleno’. Cenários e quintal em que desembocamos depois de dois séculos de era industrial. Ver e acompanhar o mundo, desde o cotidiano da nossa cidade, do nosso país e do mundo, continua o mais admirável dos espetáculos.

O mundo sempre foi assim, cheio de mudanças, transformações e desigualdades. Nunca, porém, elas foram tão bruscas, radicais e ininterruptas quanto agora. De fato, quando falamos em ‘sociedade líquida’, para homenagear o criador do rótulo, morto nos primeiros dias de 2017 – Zigmut Bauman – o obituário das verdades é devastador. Jamais, como agora, ‘o que é sólido desmancha no ar’, palavras de Marx interpretadas como o advento da modernidade. O Manifesto Comunista que contém a frase é de 1848 e, desde lá, a utopia do comunismo reinou por 70 anos na Rússia dos Romanov e continua hoje no autoritarismo de Putin.

As democracias enfrentaram outros perigos. Na América e na Europa, acuada e horrorizada com o terrorismo religioso e a invasão de milhares de refugiados da velha África e do Leste ariano de sempre. Sim, repete-se de alguma forma o Apocalipse, prenuncia-se a devastação, assombram-se os espíritos com o pior de todos os males, o medo imediato de certa insegurança. A angústia do mundo não é apenas sólida e física, é pior, é transcendental, digital, extensivamente global. Agora, depois de Trump, as esperanças estão se fundindo na promessa irreal, irracional e irrealizável de volta ao passado. Das certezas e das esperanças, por exemplo, da década de 1950, há meros 67 anos. Estamos de volta, na América e na Europa, pouco depois do que aconteceu por aqui, ao populismo, à demagogia, ao autoritarismo.

Não se trata, contudo, da repetição da história. Nem como farsa. Trata-se da instalação do ‘Admirável Mundo Novo’ de Aldous Huxley e do ‘Grande Irmão’, de Orwell. A sociedade hiperconectada, hiperinformada, hiperdirigida. É assim que estamos vivendo, nestes dramáticos dias de populismo direto na América e de obsolescência do Estado no Brasil. Aqui, com a dissolução de tudo o que antigamente se entendia por autoridade, instituições e Estado organizado. O caos das penitenciárias é o mesmo da Educação, da Infraestrtutura, da Segurança, da Justiça, enfim, do sistema. É nisso que chegamos, é disso que padecemos.

A Lavajato e o Petrolão são ícones de todo o resto. A liquidação final e total do Estado, com a desintegração das chamadas estruturas administrativas em todas as suas esferas e em todos os poderes. No Legislativo, Judiciário e Executivo, todos inoperantes, invadidos por gente desqualificada, ocupadas umas com salários e privilégios, outras em propinas e vantagens. A dissolução do Estado organizado e a desfaçatez completa e irrestrita com o povo. Aquele mesmo de que tudo participa, vota, aplaude e é o principal autor desta obra de Mefistófeles, o diabo do Dr. Fausto.

Um retrato ao mesmo tempo dramático, devastador e fascinante do ciclo construído pela ‘sociedade da informação’, anunciada em 1964 pelo semiótico Marshall McLuhan, o guru de então. Profético lá, fatídico agora. Somos uma sociedade mundial em acelerado processo de decomposição, onde os mais fortes começam a se recolher – e encolher – talvez na ilusão de resistir e sobreviver.

Primeiro a Inglaterra, saindo da Comunidade Européia, depois os americanos apostando no messiânico da vez. No Brasil, como em todas as periferias, ficaremos com os restos, próprios a uma nação que elegeu o resto para administrar suas cidades, estados e país. Para atulhar os legislativos com o mesmo resto humano que, igualmente, se ocupa de outras áreas, tidas como mais nobres, ainda que miseravelmente ineficientes.

Assim mesmo, são igualmente as demais democracias do planeta, onde a esqualidez dos protagonistas concorre com a pobreza intelectual e moral dos demais coadjuvantes. Sim, as instituições do planeta estão em frangalhos, como aqui. Lá, como aqui, em todas as esferas, reinam agora os sistemas de comunicação que se perderam na mediocridade, na bajulação contínua, na exploração do patético e na fatal desconsideração de leitores e espectadores. 

Daí que a imprensa em papel encolhe em todos os lugares, jornais e revistas fecham às centenas e o próprio jornalismo – reinventado para pior nas escolas do mesmo nome – se empobreceu de forma absoluta. O grande mantra de nossos dias apregoa que todos somos jornalistas e todos são informantes. Deu no que tinha que dar – informação banalizada e jornalismo orientado pelos idiotas da Internet, como, aliás, apontou Umberto Eco pouco antes de morrer, ano passado.

Fiquemos em Joinville. O que aconteceu à cidade nos últimos anos, desde 2001 – quando dos festejos dos 150 anos de fundação? Lento e corrosivo retrocesso. Não apenas na paisagem, no urbanismo, no trânsito, nas praças e no lazer, mas do ponto de vista da administração pública, dos governos e da ação política? Corrosivo e lento retrocesso. Talvez o símbolo maior da última década e meia do que aconteceu à cidade esteja no prédio arruinado da ex-prefeitura. O retrato da administração pública, da ineficiência, da precariedade, da má gestão de tudo o que é público. A gestão foi despedaçada aos poucos, notadamente nos quatro anos de governo do PT.

No período, os prédios públicos da cultura, por exemplo, ruíram e paredes foram ao chão. Escrevi, então, que a cultura de Joinville reduzira-se a pó. O tempo provou o diagnóstico.  Os profetas do PT que pregavam a ‘democratização’ da cultura desapareceram, mas as ruínas que deixaram ainda nos cercam. Joinville retrocede e se tornou uma cidade medíocre, como milhares de outras. O que jamais fomos em 150 anos de história.

*Texto em duas partes. A segunda será publicada amanhã.

Até agora a racista reversa fiscal de turbantes não foi encontrada

POR FELIPE CARDOSO

Semana passada, as mídias sociais foram tomadas pelo debate sobre a apropriação cultural. Thauane Cordeiro relatou, em seu perfil no Facebook, que foi criticada por uma mulher negra por usar turbante quando estava em uma estação de metrô. A jovem, que luta contra um câncer, relata que explicou o motivo de utilizar o turbante a mulher que a abordou, antes de sair e deixar a mulher negra com “cara de tacho”. Ao terminar o seu relato, Thuane lançou a hashtag #VaiTerTodosDeTurbanteSim. E finalizou o seu post com a seguinte frase “Foto da negra branca mais chave que vocês conhecem...”.

Não entrarei no debate sobre a apropriação cultural, não chegarei até lá. Nem darei atenção ao fato da jovem  tentar imitar Claudia Leitte e seu álbum "Negalora" ao finalizar sua denúncia na publicação. A minha preocupação é com outro fato que passa naturalmente despercebido aos nossos olhos.

Uma moça vai até o Facebook e relata o fato de ter sido vítima de preconceito praticado por uma mulher negra por estar usando turbante em um metrô. Rapidamente seu relato viraliza na Internet e o assunto ganha os trending topics do Twitter. Alguns veículos de imprensa digital e da grande mídia repercutem a denúncia da moça.

Tudo isso sem testemunhas, sem fotos, sem vídeos, sem boletim de ocorrência, sem no mínimo o primeiro nome da possível “agressora”. Os jornalistas não precisaram ir a fundo, não precisaram conferir as fontes, procurar e checar mais informações. Logo, os comentários de ódio contra os movimentos negros e seus integrantes começaram e não pararam mais. O tema da apropriação cultural foi banalizado e virou piada por parte de algumas pessoas (maioria branca).

Toda essa situação representa aquilo que nós já cansamos de dizer: a nossa voz não é escutada. Quantas denúncias feitas por negros e negras nas mesmas mídias sociais são silenciadas ou viram piadas? Isso quando elas conseguem o mínimo de atenção dos internautas. Quantos de nós somos constrangidos quando vamos fazer uma denúncia de racismo em delegacias por falta de tato e do racismo institucional presente na nossa sociedade?

Mesmo tendo provas, testemunhas, vídeos, fotos, nossas denúncias, na maioria das vezes são menosprezadas, caem no esquecimento, não são resolvidas e, em alguns casos, quando resolvidas, nos tornamos réus e não vítimas.

Toda essa polêmica serviu para mostrar que o privilégio branco é enorme e o grande escudo que protege o racismo. Bastou uma denúncia, sem uma simples prova ou testemunha sequer, para que houvesse repercussão.

Até hoje eu nunca participei de um encontro ou formação do movimento negro em que pessoas negras incentivassem outras a invadirem a privacidade de qualquer outra pessoa por estar usando algum símbolo da cultura negra, nunca ouvi outros relatos semelhantes, esse é o primeiro. Acredito que para mais negros e negras também seja.

Esse relato feito pela jovem moça ganhou tanto destaque porque se aproveitou da branquitude, além de utilizar estereótipos conhecidos, constantemente propagados e naturalizados no imaginário popular brasileiro. Tudo isso somado ao fato das mídias sociais estarem tomadas por uma onda fascista e conservadora que espera situações como essa para mostrar a sua verdadeira face.

Lendo o fato ocorrido nas entrelinhas, analisando os usos dos estereótipos, a história é simples:

Uma moça branca, inocente, solitária e fragilizada por conta de uma doença é atacada por uma negra raivosa, descontrolada, barraqueira, insensível (estereótipos racistas presentes no imaginário popular há séculos) que está acompanhada de mais mulheres negras (uma gangue, uma quadrilha, uma ameaça eminente, pois pretos reunidos vocês já sabem). É a receita certa para alimentar os racistas e fascistas que acham que tudo no mundo atualmente é “mimimi”.

Pronto. Está feito. Não precisam de provas, de nada. A voz da moça branca, inocente e frágil por si só já basta. Não adianta, negros e negras, tentar contrapor a denúncia, pedir esclarecimentos, mais detalhes do ocorrido, tentar explicar o que é apropriação cultural, explicar como o racismo afeta de fato as nossas vidas.

Nossas vozes não valem de nada. Nossas vidas não importam. Eles não querem nos escutar.

Dito isso, nós, negros e negras, aprendamos, de uma vez por todas uma lição: sair das mídias sociais e realizar a luta nas ruas, na política, na cultura, na economia. Em todos os campos. Eles não nos escutaram, nunca nos escutaram. É hora de nos reunirmos com quem de fato quer nos ouvir. É hora de agirmos diretamente para que os problemas gerados pelo racismo e pela desigualdade racial (desemprego, analfabetismo, pobreza, falta de investimentos para a saúde e educação, criminalidade, encarceramento, genocídio...) sejam resolvidos. A lista é grande. Não temos tempo para ficar sofrendo com comentários de quem não quer nos escutar e não respeita minimamente a nossa voz, as nossas pautas. Precisamos começar a agir de maneira eficaz, fora das mídias sociais, pois nós sabemos muito bem que o racismo nos mata física e psicologicamente. Não podemos nos desgastar psicologicamente em mídias sociais, pois precisamos nos defender fisicamente no nosso dia a dia.

Não podemos deixar nossos irmãos e irmãs morrerem enquanto nos desgastamos tentando responder quem não dá a mínima atenção para nós e nossos problemas.

Está na hora de colocar em prática uma outra estratégia. Sigamos.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Turbante, marchinha de Carnaval e o que nós, pessoas brancas, (não) temos com isso



POR CECILIA SANTOS
Se eu tivesse que explicar a alguém não familiarizado com o jargão das redes sociais o que significa a expressão “mimimi”, eu definiria como “termo usado para expressar falta de empatia”.

Há uns dias as redes sociais debateram acaloradamente se algumas marchinhas de Carnaval são racistas, e por isso devem ser evitadas, ou não. Por exemplo:
“O seu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor,
Mas como a cor não pega, mulata, mulata, eu quero o seu amor”
Nós, pessoas brancas, não vemos racismo porque não passamos por algo semelhante. Ninguém vai cantar em uma canção que pode nos amar, “apesar” de sermos brancos.

Então, apesar de algumas pessoas não verem a ofensividade (óbvia) da marchinha, não vale usar o argumento de que todo mundo cantou assim a vida inteira. A sociedade deixou de fazer um monte de coisas que hoje são claramente horríveis. Além disso, existem milhares de marchinhas, sem contar as que aparecem todo ano. Ninguém vai morrer se justamente a racista não tocar neste Carnaval, certo?

Uns dias depois, viralizou o post de uma garota branca que foi supostamente repreendida por uma mulher negra por estar usando um turbante. A garota tirou o turbante para mostrar que estava careca por conta da quimioterapia para tratar um câncer. E terminou o post com um “vai ter branca usando turbante”.

Parte da militância negra manifestou-se contra o uso do turbante como apropriação cultural e houve intensas reações contrárias. Mas é bem sintomático que isso mobilize mais as pessoas do que as denúncias de assassinatos de crianças e jovens negros nas periferias e comunidades pela PM.

Eu também não entendo muito bem a questão da apropriação cultural. Acontece que eu não tenho mesmo como entender, porque não é um símbolo da cultura dominante a que eu pertenço, essa que ao longo da história tem feito de tudo para reprimir e invisibilizar outras culturas e crenças.

Se as pessoas negras alegam que o turbante é um símbolo de resistência e/ou religião, quem sou eu para dar palpite? Até porque essa conversa não é sobre mim e meus adereços de cabeça, é sobre todo um grupo de pessoas que inclusive são frequentemente hostilizadas por usar esses mesmos símbolos.

Nós, pessoas brancas, temos sempre uma resistência muito grande a reconhecer nossos privilégios e nossas atitudes de discriminação. A discussão sobre racismo nos coloca quase sempre em posição defensiva ou de ataque, mas raramente de reconhecimento. Um exemplo: somente depois de 30 anos de formada eu me dei conta de que não havia uma única pessoa negra na minha turma de faculdade. Apontei isso no Facebook e fui criticada por duas ex-colegas, que diziam que tinham se esforçado muito para cursar uma faculdade particular. Tenho certeza de que sim. O que elas não percebem é que muitas pessoas negras se esforçaram tanto ou até mais do que elas e não conseguiram chegar lá, por mil motivos sobre os quais deveríamos refletir a fim de combater esse verdadeiro apartheid social que vivemos.

Quando ouço alguém dizer que o racismo não existe e que nós somos todos humanos, penso em fazer as seguintes perguntas:

(No caso de uma mulher) Ao visitar um edifício de classe média-alta, alguém já te perguntou se você tem dia livre para faxina?*

(No caso de um homem) Você costuma ser abordado pela polícia na rua ou seguido por funcionários em estabelecimentos comerciais?

Nós, pessoas brancas, realmente não entendemos o racismo porque não passamos cotidianamente por essas situações. Mas deveríamos ouvir o incômodo dos outros, ter empatia e respeitar. E abolir essa expressão horrorosa, “mimimi”.

(*O exemplo acima é real e aconteceu algumas vezes com uma das minhas vizinhas, de 1 das 3 únicas famílias negras no meu condomínio de classe média-alta com 92 apartamentos).