segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

A menina que recusou dar a mão ao ditador

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Há imagens que escapam aos fatos e acabam se tornando ícones de uma época. É o caso da fotografia que Rachel Clemens, uma menina de cinco anos que, em setembro de 1979, se recusou a cumprimentar o presidente João Batista Figueiredo. Não é o que ela pretendia fazer (até porque não tinha maturidade para isso), mas a imagem acabou por se tornar um símbolo da resistência à ditadura.

A foto da menina, com o rosto sério e os braços cruzados, foi registrada pelo fotógrafo Guinaldo Nicolaevsky (ele fez o clique mas nunca a conheceu pessoalmente) e se tornou uma das imagens mais emblemáticas do final dos anos de chumbo. A foto foi publicada em diversos veículos de comunicação nacionais e internacionais, tornando-se um símbolo da decadência da ditadura militar no Brasil.

Mineira de Juiz de Fora, Rachel morreu em 2015, aos 41 anos de idade, de parada cardíaca. Mas antes de morrer, tinha explicado, em entrevista, que o gesto foi coisa de criança. As pessoas insistiam para que apertasse a mão do presidente e, por birra, ela se recusou. “Detesto que me mandem fazer as coisas. Não dei a mão porque eu não queria dar a mão”, revelou. Mas não sem salientar que tinha um certo medo de Figueiredo.

Nada consegue impedir a criação de mitos. A recusa de Rachel ainda hoje é encarada como um ato de coragem e determinação, mostrando que mesmo as crianças podiam resistir à ditadura. A imagem tornou-se um ícone da rebeldia para muitos brasileiros que lutavam pela democracia. Mas a realidade não foi assim. “Sou de uma época que criança era só criança e se preocupava mais em brincar e se divertir”, contou.

É a dança da chuva.

Rachel Clemens e João Figueiredo, na foto mítica.


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Putin não gosta dos LGBTQIA+, mas a esquerda brasileira gosta de Putin

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Há muita gente na "esquerda" brasileira que nem pensou duas vezes antes de tomar o lado de Putin na invasão da Ucrânia. Ora, qualquer pessoa com dois dedos de testa sabe que há ali um flagrante desrespeito pelo direito internacional e um ataque à autodeterminação de um povo. A coisa é simples: os ucranianos não querem ser russos. Ponto final. Mas para essa esquerda falou mais alto uma certa nostalgia da URSS e, mesmo sabendo que estão do lado do bandido, essas pessoas deixaram-se levar pela cantiga da “desnazificação” e mais um par de botas.

Mas Putin é Putin. E a Rússia é uma autocracia. Fico a perguntar como reagirão agora essas pessoas à notícia de que o Supremo Tribunal da Rússia, a pedido do Ministério da Justiça, acaba de considerar qualquer "movimento LGBTQIA+" uma organização "extremista”. Vejam que belo argumento: o Ministério argumenta que o movimento LGBTQIA+ é uma ameaça à segurança nacional, pois promove a ideologia de gênero e a "destruição da família tradicional". Como? Mas isso não é o bolsonarismo? Fiquei confuso.

A decisão representa um retrocesso significativo nos direitos da comunidade LGBTQIA+ no país. A partir de agora, qualquer pessoa que seja considerada associada ao movimento LGBTQIA+ pode ser acusada de extremismo e punida com penas de prisão de até 10 anos.  A determinação tem o potencial de ter um impacto significativo na vida das pessoas LGBTQIA+ na Rússia. Pode levar a uma maior repressão às organizações, a um aumento da violência e a uma diminuição da visibilidade e da aceitação da comunidade LGBTQIA+.

E Putin? Sem surpresas. O autocrata russo tem tido posições consistentemente contrárias aos direitos LGBTQIA+. Ele já se referiu à homossexualidade como uma perversão e uma doença. Em 2013, assinou uma lei que criminaliza aquilo que chama de “propaganda LGBTQIA+” entre menores, o que levou a uma onda de repressão às organizações LGBTQIA+ no país. Em 2021, fez um discurso no qual atacou os direitos dos transgêneros, dizendo que “ensinar crianças sobre menino poder se tornar menina e vice-versa beira um crime contra a humanidade”. 

Ou seja, a decisão do Supremo Tribunal da Rússia está em perfeita sintonia com as posições de Putin. E os passadores de pano no Brasil? Vão continuar deambulando pelas redes sociais com a flanela na mão e a dizer que Putin é a encarnação do bem. E até que ele é comunista (permitam-me uma gargalhada).

É a dança da chuva.

Foto: Alexander Grey


quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Gaza é o pior lugar do mundo para ser criança, mas há outros

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

A guerra entre Israel e Hamas transformou a faixa de Gaza no pior lugar do mundo para ser criança. De acordo com informações recentes do Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas, 3.542 crianças foram mortas e 6.890 ficaram feridas no território durante os primeiros 25 dias do conflito. Isso representa cerca de 40% do total de mortos e feridos, que foi de 8.525. A Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) também divulgou dados que apontam para a vulnerabilidade das crianças. É uma tragédia sem-par.

Segundo a organização, 1,2 milhão de crianças em Gaza foram afetadas pela violência, incluindo 590.000 que tiveram que deixar suas casas. A imprensa internacional também tem dado ampla cobertura à questão. Há um clamor mundial que pede o fim da matança. No entanto, é um tanto absurdo que as mesmas pessoas que estão – e bem – preocupadas com as crianças palestinas não tenham demonstrado a mesma empatia em relação às crianças ucranianas, que têm vivido sob a invasão das tropas russas. Porque também ali as crianças são as maiores vítimas.

De acordo com a Unicef, mais de 540 crianças foram mortas e 1.700 ficaram feridas desde a invasão, em 24 de fevereiro de 2022. Por triste coincidência, isso também representa cerca de 40% do total de mortos e feridos, que é de 3.440. Mas não é apenas isso. Pelo menos 6.000 crianças ucranianas foram levadas para campos de reeducação na Rússia, numa clara violação dos direitos humanos. Essas crianças estão sendo alocadas em instituições de ensino, orfanatos e famílias adotivas russas.

Além de separadas de suas famílias, também estão sendo expostas à propaganda russa, que glorifica a guerra e demoniza a Ucrânia. Ente outras coisas, são obrigadas a aprender a língua russa e a cantar hinos da terra de Putin. A comunidade internacional tem condenado a reeducação das crianças ucranianas na Rússia. O Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que exige o fim imediato dessa prática.

No entanto, a Rússia não tem demonstrado sinais de que vai parar de “reeducar” as crianças ucranianas. Mas as crianças ucranianas não são um tema no Brasil, em especial para as esquerdas. Eis um caso de hipocrisia pura e dura. Para dois casos igualmente graves e deploráveis, há dois pesos e duas medidas: lágrimas pelas crianças palestinas e indiferença pelas crianças ucranianas. Quem entende?

É a dança da chuva.

Foto: Ahmed Akacha

Foto: Berke Arakli


terça-feira, 21 de novembro de 2023

Há presos políticos na Rússia. Esquerda brasileira olha para o lado

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

A guerra na Ucrânia ensinou uma coisa. Há brasileiros (que se dizem) de esquerda que gostam de Putin. Ou seja, gostam de autocratas. A ironia é que pregam democracia no Brasil, mas defendem regimes fechados no exterior. É claro que essa gente pensa em Putin como herdeiro da União Soviética. Não é. Pensam que tem ligação ao comunismo. Não tem. E tenho a certeza de que, se fosse no Brasil, não aceitariam o caso de Sasha Skochilenko.

A ativista russa, que tem 31 anos, foi presa em março de 2023, por supostamente ter publicado mensagens anti-guerra. Ela foi acusada de "divulgação de informações falsas sobre as Forças Armadas da Federação Russa" sob a nova lei de censura da Rússia, que prevê penas de até 15 anos de prisão. Foi condenada a sete anos de prisão, sentença reduzida para cinco anos por causa de uma pressão internacional, que incluiu apelos do Papa Francisco e do Presidente francês Emmanuel Macron. Ainda assim, a pena de cinco anos é uma sentença severa para uma pessoa que simplesmente expressou sua opinião sobre a guerra.

A condenação de Skochilenko é um lembrete de que, sob Putin, a liberdade de expressão na Rússia tem estado sob ataque. A pena de prisão da ativista é a mais longa já imposta a alguém por protestar contra a guerra na Rússia. E é bom lembrar que centenas de pessoas que foram presas por se insurgirem contra a guerra. A lei de censura foi aprovada em março de 2022, depois invasão da Ucrânia. O objetivo era criminalizar a divulgação de informações que o governo russo considere falsas sobre a guerra. 

Essa lei tem sido usada para reprimir a dissidência e a liberdade de expressão na Rússia. A condenação de Skochilenko é um sinal do declínio da liberdade de expressão na Rússia. A lei de censura da Rússia tem criado um clima de medo e autocensura no país. Mas Putin é um “queridinho” da esquerda brasileira que, em teoria, deveria estar a defender a democracia. Mas que nada. Essa gente não se importa de defender uma ditadura, pela simples nostalgia da URSS. Só que Putin e a URSS estão nos antípodas.

É a dança da chuva.

A artista e ativista Sasha Skochilenko




domingo, 19 de novembro de 2023

Vai uma picanha sintética?

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

É domingo e você já está à espera para acender a churrasqueira e começar a fazer aquela picanha. Eis uma tradição que muito certamente vai mudar no futuro, com a inevitável introdução de carne sintética no mercado mundial. Muita gente nem sonha que isso existe, mas há mercados onde as carnes sintéticas já estão a ser comercializadas. A carne sintética é produzida a partir de células extraídas de animais, que são cultivadas em laboratório. As células mais utilizadas são as células-tronco.

O primeiro país a autorizar a comercialização de carne sintética foi Cingapura, em 2022. A empresa israelense Aleph Farms foi a primeira a vender carne de bife cultivada em laboratório naquele país. Neste ano, os Estados Unidos também autorizaram a comercialização de carne sintética. As empresas Eat Just e Upside Foods foram as primeiras a vender carne de frango cultivada em laboratório nos EUA.

Se atualmente apenas Cingapura e os EUA permitem a comercialização de carne sintética, há outros países a considerar a aprovação da comercialização desse tipo de produto. No Brasil, por exemplo, a Anvisa está a avaliar essa possibilidade e deve ter uma posição até o próximo ano.

O mundo empresarial do setor está a se preparar. A brasileira JBS, por exemplo, está a investir nessa área. Em 2021, a empresa adquiriu uma participação majoritária na espanhola BioTech Foods, líder europeia no setor de proteína cultivada. A BioTech Foods está construindo uma fábrica na Espanha que será capaz de produzir 1.000 toneladas de carne cultivada por ano. A empresa tem projetos também no Brasil.

Ainda é cedo para dizer qual será o impacto das carnes sintéticas no mercado global. É certo que vai haver muita resistência cultural, como já está a acontecer na Itália, onde o executivo de Giorgia Meloni aprovou uma lei que proíbe a produção, venda e importação de carne cultivada em laboratório. O objetivo é proteger a "tradição italiana". A lembrar que a produção de carne sintética ainda não está autorizada na União Europeia. 

O fato é que será impossível deter os avanços nessa área. Porque esse tipo de produto tem o potencial de revolucionar a indústria da carne, oferecendo uma alternativa mais sustentável e ética.

É a dança da chuva.