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A meritocracia só é possível quando todos partem em condições de igualdade |
POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Há um provérbio romano, do qual nem
gosto muito, que funciona como uma advertência: “sapateiro, não vá além do
sapato”. Quer dizer que certas pessoas tendem a dar opiniões sobre temas para
os quais não têm uma preparação adequada. Ou, digamos, mérito. É o caso do
vereador Fábio Dalonso, que um dia destes produziu uma barafunda antropológica
ao falar em questões raciais.
O texto, segundo deu para entender, mais
do que um ataque às cotas raciais é uma defesa da meritocracia. O despautério
começa aí. Hoje é dia qualquer pessoa que use a expressão mérito tem logo
acolhida de boa parte da pequena burguesia (a classe média dos trabalhos não
braçais). O fato é que a meritocracia só é admissível se todos partem em
condições de igualdade. Portanto, uma ficção sociológica.
Nada pior na defesa de uma tese que
partir de um erro crasso. O vereador cita Pelé, Joaquim Barbosa, Barack Obama,
Oprah Winfrey, Tiger Woods, Mike Tyson, Venus e Serena Williams, Neil deGrasse
Tyson ou Lewis Hamilton para afirmar um
ponto em comum: “são negros, vieram da pobreza, com problemas familiares
sérios, oriundos de escolas públicas e venceram por seus méritos, persistência
e valores”.
O texto traz uma generalização errônea que
pode mesmo denunciar um ato falho do racismo: se é negro, então é pobre e tem
problemas familiares. No entanto, se muitas dessas pessoas não vinham de
famílias ricas, também não eram pobres, como Obama, deGrasse, Woods ou as irmãs
Williams, por exemplo. Aliás, seria interessante investigar a aplicação das
cotas nos Estados Unidos. Suspeito que possa haver relação.
O texto faz uma espécie de antropologia
de revista cor de rosa. O vereador cita uma fala de Morgan Freeman, mas inverte
a intenção do ator: ele fala justamente na perpetuação do racismo. É preciso
contextualizar. A fala é de uma entrevista de 2005, com o jornalista Mike
Wallace, no programa “60 Minutes”, e o tema era o Black History Month, um
evento que evoca a história negra. Foi assim:
Wallace: Mês
da História Negra, você acha...
Freeman:
Ridículo.
Wallace: Por
quê?
Freeman: Você
vai querer relegar a minha história a um mês?
Wallace: Vamos
lá...
Freeman: O que
você faz com o seu? Qual mês é mês da História Branca? Vamos, me diga.
Wallace: Eu
sou judeu.
Freeman: Ok.
Qual é o mês da História Judaica?
Wallace: Não
existe.
Freeman: Por
que não? Você quer um?
Wallace: Não,
não.
Ops! O vereador diz que “as
cotas raciais produzem um efeito horrível na sociedade, pois elas aumentam a
identificação racial num tempo onde sabemos que não existe raça branca ou negra
– apenas a humana”. Aliás, basta olhar para a Câmara de
Vereadores que, numa representação equitativa da sociedade brasileira, tem
metade de vereadores negros. E não há identificação racial, porque só o mérito
é visto. Sério?!?!?!
Num insight
antropológico que podia entrar para os compêndios, o vereador afirma que a
instituição de cotas é segregacionista, racista e cria cidadãos de segunda
classe. Não sei onde o vereador vai buscar os seus votos, mas acho que talvez
fosse interessante prestar atenção nos excluídos: para eles ser cidadão de
segunda categoria poderia ser uma evolução. É melhor que a exclusão, a invisibilidade e
a negação a que foram historicamente relegados.
Fim de análise: quem acredita na meritocracia não
deveria escrever textos nos quais é difícil encontrar qualquer mérito.