quarta-feira, 3 de julho de 2024

Corpos negros são frutos estranhos

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Há fotografias que capturam um momento e que acabam por marcar a história das sociedades. Algumas, de tão poderosas, acabam até por originar canções. É o caso de "Strange Fruit" (Estranhos Frutos), célebre na voz da inigualável Billie Holiday. Composta por Abel Meeropol (sob o pseudônimo de Lewis Allan) em 1937, é uma música de protesto contra o linchamento de negros nos Estados Unidos. E acabou por se tornar um marco cultural e um hino do movimento pelos direitos civis.

A letra foi inspirada por uma fotografia de 1930, feita por Lawrence Beitler, onde são mostrados os corpos de dois negros, linchados e pendurados em árvores no Mississipi. A imagem chocante e brutal comoveu Meeropol, que a incorporou nos seus versos poéticos. Inicialmente, ele escreveu a letra como um poema, publicado na revista marxista "The New Masses". A canção utiliza uma linguagem carregada de simbolismo.

Os "estranhos frutos" do título são metáforas para os corpos dos negros linchados, pendurados em árvores como macabros frutos da árvore do ódio e da violência racial. A letra denuncia a brutalidade e a injustiça dos linchamentos, expondo o racismo sistêmico e a crueldade da segregação racial nos EUA da época (e que ainda durou por muito tempo). A voz de Billie Holiday, que popularizou a canção em 1939, transmite a dor profunda e o sofrimento causados pela violência racial. 

A performance de Billie Holiday, sempre muito intimista e pesarosa, é poderosa. Mas gerou reações negativas do público branco, principalmente nos estados do sul dos EUA. A canção era frequentemente proibida em clubes e casas noturnas, especialmente em locais onde ainda havia segregação (lugares interditados aos negros). As autoridades também atuaram para censurar a performance de Holiday, pressionando-a a não cantar a música. A insistência em incluir a peça nas suas aparições custou muito à cantora.



terça-feira, 2 de julho de 2024

A inteligência artificial já consegue criar o banal

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Há muita gente respeitável a dizer que, em tempos de tecnologias digitais, em consequência do uso intensivo dos telefones móveis, os jovens estão a usar apenas 800 palavras para comunicar no dia a dia. É muito pouco se tivermos em consideração que o VOP – Vocabulário Ortográfico do Português refere 210 mil entradas, enquanto o dicionário brasileiro Houaiss, talvez o mais robusto, tem quase 400 mil palavras. Se mantivermos a análise no plano estrito dos números, isso significaria o uso de menos de 1% de todas as possibilidades da língua portuguesa.

É de lembrar que o ponto de partida para a análise não vem de um país lusófono. A tese foi popularizada há mais de uma década pela linguista Jean Gross, conselheira do governo britânico para o discurso das crianças. Ela usou como referência um trabalho do pesquisador Tony McEnery, professor de linguística da Universidade de Lancaster. Uma reportagem do “Daily Mail” contribuiu para difundir a ideia por todo o mundo. A análise de Gross tem um dado interessante: ela diz que, aos 16 anos, um jovem deveria ter um vocabulário próximo das 40 mil palavras.

Importante salientar que a teoria é contestada por outros estudiosos, que apontam precariedades na análise da pesquisadora. Não interessa aqui discutir a fiabilidade ou não dos dados, mas sim presumir que há um problema. Afinal, onde há fumaça há fogo. E se alguém decidiu lançar um número para cima da mesa, é sinal que devemos estar atentos à questão da precariedade linguística dos jovens. Porque, nas palavras de Wittengstein, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Ou seja, uma linguagem pouco sofisticada leva a uma interpretação pouco sofisticada do mundo.

Mas o que isso tem a ver com a criação publicitária? Tudo. Criar é fazer sinapses. E as sinapses estão alicerçadas nas palavras. É importante repetir: pensamento é linguagem. O encolhimento do vocabulário das novas gerações de publicitários – em todas as linhas – só pode produzir um encurtamento da capacidade criativa. Afinal, as sinapses já não conseguem ir tão longe. Tudo isso explica a mudança nos padrões criativos nas últimas décadas. A tecnologia liberta, mas também oprime. Se por um lado o digital facilita a vida, por outro tira capacidade analítica.

A linguagem é elemento constituinte do sujeito e das subjetividades. E se as pessoas vivem num estágio lúmpen-linguístico, o resultado só pode ser o aplainar das capacidades criativas. E o risco vem daí. Porque a inteligência artificial já consegue criar o banal.



sábado, 13 de abril de 2024

O Musk está emerdando a sua vida

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO


Dei um tempo no X/Twitter. Cansado, farto, saturado daquilo em que as redes sociais tradicionais, como Twitter, Facebook e TikTok, se tornaram: terrenos férteis para a "enshittification". E no caso do Twitter, em específico, por causa do cretino do Elon Musk. Sim, ele é a prova de que um multimilionário pode ser um cretino.

Mas que raio é isso de "enshittification"? O termo, cunhado pelo autor canadense-britânico-americano Cory Doctorow, descreve o processo de declínio na qualidade das plataformas online. Essa degradação pode se manifestar de diversas maneiras, como a proliferação de conteúdos tóxicos, a priorização dos anúncios, os algoritmos manipuladores e a coleta excessiva de dados.

Como a minha rede preferencial sempre foi o Twitter, acabei refém de discursos de ódio, desinformação, ataques pessoais e conteúdos violentos se tornam cada vez mais comuns, criando um ambiente hostil e negativo. Porque os algoritmos privilegiam o engajamento e o ódio produz maior engsajamento. O bolsonarismo faz disso uma base para a própria existência.

Nas redes sociais tradicionais, esses problemas se intensificaram nos últimos anos, tornando a experiência online cada vez mais frustrante. Um saco. Até porque o engajamento orgânico desapareceu. Foi por isso que decidi ir para o BlueSky. É uma plataforma que está no começo e promete ser mais democrática, de forma a priorizar a transparência. É, como disse, a primeira fase. Vamos ver.

Ah... mas esse tema tem alguma importância? Claro que tem. As redes sociais são parte da vida de todos nós. Mais do que isso, hoje são uma prótese de sentido para as novas gerações. O que traz um grande perigo: esse processo de "enshittification" já atua na formação do inconsciente social dos mais jovens. E nem são precisos estudos ou pesquisas: é só prestar atenção.



sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Eleições em Taiwan: partido pró-China e pró-independencia vão a votos

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

13 de janeiro de 2024 é um dia decisivo. As eleições em Taiwan são as mais importantes da história da ilha em décadas. O resultado determinará o rumo das relações entre Taiwan e a China, assim como a política interna da ilha nos próximos anos. As eleições terão implicações significativas para a paz e a estabilidade na região. É um evento importante não apenas para a região, mas para o mundo.

Há três candidatos à presidência. William Lai (DPP), atual vice-presidente e candidato do Partido Democrático Progressista (DPP), que é pró-independência de Taiwan. Outro candidato é Han Kuo-yu, ex-prefeito de Kaohsiung e candidato do Partido Nacionalista Chinês (KMT), que é pró-reunificação com a China. E por fim temos Hsu Hsin-ying, candidata do Partido Progressista Taiwanês (PTP), que é de esquerda que defende a independência de Taiwan de forma mais radical do que o DPP.

As pesquisas de opinião indicam que Lai é o favorito. No entanto, a campanha tem sido acirrada e Han Kuo-yu tem conseguido ganhar terreno. O resultado é incerto e pode ter implicações significativas para a paz e a estabilidade na região. A China considera Taiwan como uma província rebelde e tem ameaçado usar a força para reunificar a ilha com o continente. Um governo pró-independência em Taiwan poderia aumentar a tensão entre as duas partes e aumentar o risco de um conflito armado.

O resultado também terá implicações para a política interna de Taiwan. O DPP, se for reeleito, provavelmente continuará a seguir uma política de defesa da independência da ilha. O KMT, por outro lado, se for eleito, poderia buscar um diálogo com a China com o objetivo de reunificar a ilha. Há uma ironia aí. O partido é ligado a Chang Kai-shek, que foi o líder de 1925 a 1975. Ele foi o presidente da República da China, de 1928 a 1949, e depois de Taiwan de 1950 a 1975.

O KMT é um partido nacionalista que defende a reunificação da China sob o seu controle. Chiang Kai-shek era um nacionalista fervoroso e acreditava que a China deveria ser um país unificado. Lutou contra os comunistas chineses na Guerra Civil Chinesa, que terminou com a derrota dos nacionalistas e a fuga de Chiang Kai-shek para Taiwan. O KMT é o principal partido de oposição ao Partido Democrático Progressista (DPP).

Chang Kai-shek governou Taiwan em ditadura. Ele estabeleceu um regime autoritário que reprimia a oposição política e os direitos humanos. Em 1949, quando Chiang Kai-shek e o KMT fugiram para Taiwan, eles levaram um governo autoritário que havia sido estabelecido na China continental. Esse governo era caracterizado por um controle rígido sobre a sociedade, uma censura rigorosa da mídia e a perseguição da oposição política.

Em Taiwan, Chiang Kai-shek continuou a implementar esse regime autoritário. Ele criou a Agência de Segurança Nacional (NSA), que tinha poderes para prender, torturar e executar dissidentes políticos. Ele também dissolveu o parlamento e estabeleceu um sistema de governo unipartidário.

O regime de Chiang Kai-shek foi responsável por uma série de violações dos direitos humanos, incluindo o massacre de 28 de fevereiro de 1947, no qual milhares de taiwaneses foram mortos. A ditadura de Chiang Kai-shek começou a ser gradualmente desmantelada após a sua morte em 1975. O seu filho, Chiang Ching-kuo, iniciou um processo de liberalização política que culminou na democratização de Taiwan na década de 1980.

Hoje o partido de Chiang Kai-shek é a favor de uma integração na China. Enfim, a história é mais complexa do que imaginam alguns.

Chiang Kai-shek





domingo, 24 de dezembro de 2023

Para além de Israel e Hamas

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

O conflito entre Israel e o Hamas acendeu rastrilhos em outros pontos da região. Um exemplo disso são os ataques que os houthis, grupo rebelde xiita que controla o norte do Iêmen, declararam apoio ao Hamas e passaram a atacar navios comerciais no Mar Vermelho.

Os EUA acusam o Irã de fornecer armas e assistência técnica aos houthis para realizar esses ataques. O Irã nega as acusações. Mas o fato de os houthis terem acesso a mísseis e drones de longo alcance é um indício de que o Irã está envolvido.

Os ataques têm provocado uma série de consequências negativas para o comércio mundial. Cerca de 95% do tráfego de navios com mercadorias que passavam pelo Mar Vermelho foram desviados para outras rotas, o que tem gerado congestionamentos e aumento dos custos de transporte.

O conflito no Mar Vermelho também tem aumentado a tensão na região. Os EUA e seus aliados estão pressionando o Irã para que cesse o apoio aos houthis, mas o Irã não parece disposto a ceder.

Os possíveis desdobramentos do conflito no Mar Vermelho são preocupantes. Se o conflito se intensificar, pode levar a um confronto direto entre os EUA e o Irã, o que teria consequências imprevisíveis para a região e para o mundo.

De imediato, as ações do houthis acabaram criando problemas em várias frentes, a começar pelo aumento dos preços do petróleo. O Mar Vermelho é uma importante rota de transporte de petróleo e os ataques dos houthis têm gerado temores de que o fornecimento de petróleo seja interrompido. Isso tem levado a um aumento dos preços do petróleo e impactado a economia global.

A interrupção das cadeias de suprimento também está no horizonte. Os ataques dos houthis têm interrompido as cadeias de suprimento globais, pois muitos navios comerciais que transportam mercadorias essenciais, como alimentos e medicamentos, foram desviados de suas rotas habituais. Isso tem causado escassez de produtos em alguns países e aumento dos preços.

Tudo isso, claro, sem falar na instabilidade regional. O conflito no Mar Vermelho tem aumentado a tensão na região e há o risco de que se espalhe para outros países. Isso poderia levar a uma guerra regional, com consequências desastrosas para a segurança e a economia globais.

Enfim, o conflito no Mar Vermelho é uma situação complexa com múltiplos fatores envolvidos. É difícil prever como a situação irá evoluir, mas é claro que o conflito tem o potencial de causar grandes danos ao comércio mundial e à estabilidade regional.

É a dança da chuva. 




 

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Jimmy Lai, ex-dono de jornal, pode pegar prisão perpétua na China


POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

O leitor e a leitora sabem quem é Jimmy Lai? É provável que não. Eu explico. É um magnata pró-democracia de Hong Kong, que ontem começou a ser julgado pelas autoridades chinesas, acusado de crimes contra a segurança nacional. Quais crimes? Entre eles, conspiração com forças estrangeiras para publicar notícias falsas. Se condenado, pode pegar prisão perpétua.

Jimmy Lai é o ex-proprietário do jornal pró-democracia “Apple Daily”. Editado desde 1995, o jornal se tornou um dos mais populares de Hong Kong, como resultado da cobertura crítica das ações do governo chinês e de suas políticas em Hong Kong .Em 2021, o Apple Daily foi forçado a fechar após o governo chinês congelar os ativos do jornal e prender Lai e vários de seus funcionários.

O julgamento é um teste à liberdade de expressão e à democracia em Hong Kong. O caso tem sido amplamente condenado pela comunidade internacional. Jimmy Lai é um dos defensores da democracia do tipo ocidental em Hong Kong, mas as coisas têm mudado desde a saída dos governantes britânicos e a substituição pelas autoridades chinesas. 

Ele foi preso em dezembro de 2020, sob a justificação de infringir a Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, imposta pela China em 2020. O julgamento é visto como uma tentativa de suprimir a dissidência em Hong Kong. A imprensa internacional diz que Jimmy Lai é acusado de crimes vagos e imprecisos, numa prática de silenciar os desafetos do governo chinês.

O julgamento está sendo realizado em clima de crescente repressão em Hong Kong. Desde a imposição da Lei de Segurança Nacional, o governo chinês tem tomado medidas para silenciar a oposição e restringir as liberdades civis. Os Estados Unidos e o Reino Unido, em particular, têm apelado à libertação imediata do prisioneiro. Democracia é uma que se escreve em chinês?

É a dança da chuva.



quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Fora, Hungria

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Se dependesse da minha vontade, a Hungria já estaria fora da União Europeia. Nada contra o país, que é um lugar fantástico (Budapeste já proporcionou uma das melhores férias da minha vida). Mas é um saco ter que aguentar um governante como Viktor Orbán, um sujeito muito pouco amigo da democracia. É só ver que era o único capaz de se sentar à mesa com Bolsonaro.

Ontem o primeiro-ministro da Hungria esteve no foco dos noticiários. Tudo por causa da negociação da adesão da Ucrânia à União Europeia. Orbán, que é aliado declarado de Vladimir Putin, pôs areia na engrenagem. Em primeiro lugar, pela relação que tem com Putin e depois porque sempre aproveita essas situações para chantagear a União Europeia e levar uns eurinhos para o seu país.

É provável que Orbán tenha razão ao afirmar que a Ucrânia ainda não preenche ainda as condições para integrar aUnião Europeia. O problema é a chantagem financeira, além de politicamente estar a pôr a unidade europeia em risco. A Hungria vive um enfraquecimento das instituições democráticas, com o aumento do poder do governo central e a redução da independência do judiciário, da imprensa e da sociedade civil. 

Orbán tem promovido uma agenda nacionalista e conservadora, muito criticada por organizações internacionais de direitos humanos. Há muitos episódios em que a Hungria tem voz dissonante dentro da UE. No plano europeu, por ter votado contra as sanções à Rússia. E no plano interno, por promover uma agenda conservadora, que inclui restrições ao aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.

O líder húngaro também tem sido criticado por organizações internacionais, como o Conselho da Europa e a Comissão Europeia, por medidas que enfraquecem o Estado de Direito no país. Estas posições têm gerado crescente tensão entre a Hungria e a União Europeia, com a Comissão Europeia a abrir vários processos de infração contra o país. O governo húngaro é um cavalo de troia dentro da União Europeia.

Em 2023, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que acusava a Hungria de violar os valores fundamentais da UE, incluindo o Estado de Direito e o respeito pelos direitos humanos. A resolução recomendava que a Comissão Europeia suspendesse o financiamento da UE para a Hungria. Orbán argumenta que essa é a vontade do povo húngaro. 

Quanto à chantagem. Em 16 de março de 2023, a Comissão Europeia suspendeu o financiamento para a Hungria, no valor de 1,7 bilhões de euros, devido a questões sobre o Estado de Direito. A suspensão afetou o financiamento de projetos de infraestrutura, educação, investigação e desenvolvimento. A ação teve um forte impacto na economia do país. 

Mas ontem, 14 de dezembro de 2023, em meio a um impasse, a Comissão Europeia anunciou que iria descongelar 10 mil milhões de euros de fundos de coesão para a Hungria. A decisão foi tomada durante uma cúpula de líderes europeus, após o governo húngaro ter feito algumas concessões, incluindo a retirada dos seus nomeados dos conselhos de gestão das universidades.

A liberação do dinheiro para a Hungria pode ser vista como uma forma da UE de mostrar à Hungria que está disposta a negociar sobre a adesão da Ucrânia. Ou seja, a UE pode estar a tentar convencer a Hungria a apoiar a adesão da Ucrânia, oferecendo-lhe benefícios económicos. Enfim, o fato é que Viktor Orbán não é boa companhia para países que acreditam no estado de direito.


É a dança da chuva.


Orbán com Bolsonaro


quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Michael Hill: o homem que sobreviveu a uma facada no cérebro

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Imagine que está a caminhar descontraidamente e, assim do nada, surge alguém que lhe dá uma facada na cabeça. Não uma facada qualquer, mas um corte que vai até perto do tronco cerebral. Estranho, não? Mas aconteceu. É a história de Michael Hill, que em 1998, na cidade de Birmingham, no Alabama, foi atacado por um homem desconhecido enquanto caminhava pela rua.


A arma era uma faca de sobrevivência de 20 centímetros, que perfurou profundamente no crânio de Hill. Levado para o Hospital UAB a faca foi retirada depois de uma intervenção que levou cerca de duas horas. O homem passou duas semanas no hospital para se recuperar e o mais incrível é que retomou a vida normal, apesar de algumas consequências.


Michael Hill, um vendedor de seguro que na altura tinha 26 anos, disse que as dores de cabeça foram as piores sequelas, por serem fortes e debilitantes. Um problema que piorava com o cansaço ou o estresse. Problemas de memória faziam com que esquecesse o que estava a fazer ou mesmo para onde estava a ir. Mas também afirmou estar feliz pela sorte de ter escapado com vida.


O ataque ocorreu em uma noite escura e chuvosa, o que impossibilitou Hill de ver o rosto do agressor. A radiografia do crânio de Hill foi publicada pela primeira vez no “The Birmingham News” e rapidamente se tornou viral, com a reprodução  jornais, revistas e sites de notícias. A história também foi apresentada em programas de televisão e documentários.


É a dança da chuva.

A radiografia da facada


terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Ditaduras e autocracias. Qual é a diferença?

POR JOSÉ ANTONIO BAÇO

Faz algum tempo, logo após a queda do Muro de Berlin, o pensador norte-americano Francis Fukuyama publicou o famoso livro “O Fim da História e o Último Homem”, que celebrava a vitória da democracia liberal e a realização da ideia kantiana da paz perpétua. Um momento de otimismo logo foi desmentido pela realidade. A história estava viva e a paz era passageira.

Quando tudo apontava para uma evolução rumo à democracia, o mundo começou a caminhar para novas convulsões. E daí surgiram autocracias e ditaduras. Um Bolsonaro, um Trump ou um Erdogan, por exemplo, não são frutos do acaso, mas sim resultados de um processo histórico. Porque há muitos fatores a contribuir para o crescimento dos regimes autoritários.

Em termos da geopolítica global, é importante considerar o declínio da influência dos Estados Unidos nas últimas décadas. Os norte-americanos são firmes na defesa da democracia liberal, mas têm cometido erros ao tentar importar o modelo a outros países que não têm essa tradição. Essa inegável perda de força dos EUA abre espaço para regimes autoritários.

Outro fator importante é a ascensão da China como potência global. O país asiático, que pode ser considerado um capitalismo de estado, tem uma matriz autoritária e é cada vez mais influente na política externa, mesmo sem precisar intervir diretamente em conflitos. A China reprime apoia regimes autoritários como Rússia, Irã, Venezuela ou Coreia do Norte.

No que se relaciona à política mais pedestre, é preciso ter em mente que a democracia liberal está numa encruzilhada. O sistema tem sido desafiado por uma série de fatores, como a ascensão da extrema-direita, a polarização política e a corrupção. Esses vetores contribuem para o enfraquecimento das instituições democráticas e a ascensão de regimes autoritários.

Também é importante considerar o papel da tecnologia, que pode ser usada para reprimir a dissidência e manter os povos sob controle. Os regimes autoritários estão cada vez mais a usar a tecnologia para fortalecer o seu poder. Hoje o WhatsApp é muito mais eficaz para passar uma mensagem do que um horário em prime time na televisão. A vitória de Bolsonaro não deixa mentir.

Hoje há muitas ditaduras e autocracias. Não são a mesma coisa? Há nuances. Podemos dizer que as ditaduras existem em países como a China, Coreia do Norte, Irã ou Birmânia. As autocracias estão instaladas em lugares como Rússia, Arábia Saudita, Turquia, Egito, Vietnã. Qual a diferença? A separação nem sempre é clara, porque algumas características se sobrepõem.

O que define uma ditadura? Em primeiro lugar, o governo é centralizado nas mãos de um indivíduo ou de um pequeno grupo. Há repressão política, incluindo prisão, exílio e assassinato de opositores. E, claro, temos a restrição dos direitos políticos e civis, incluindo liberdade de expressão, reunião e associação. Os poderes não são independentes.

Em que diferem as autocracias? Em quase nada. Mas realizam eleições multipartidárias, apesar de os direitos políticos e civis serem restringidos. O governo também é controlado por um partido ou grupo dominante e a oposição é reprimida. Os poderes são cooptados pelos que detêm o poder, em especial no plano do executivo.

É claro que pode haver divergências conceituais, mas há um facto indesmentível: nenhum desses dois modelos é aceitável para quem prefere a democracia, mesmo com todos os seus defeitos. Mas, infelizmente, o bolsonarismo brasileiro é a prova de que há muita gente que não quer saber de democracia. Há gente disposta a abrir mão da própria liberdade, como já salientou Étienne de La Boétie

É a dança da chuva.

Foto: Sima Ghaffarzadeh


segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

A guerra na Ucrânia já tem um vencedor: a indústria armamentista dos EUA

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Só alguém muito distraído pode não ter percebido. A indústria das armas dos EUA está faturando na Ucrânia. E é bom ver um jornalão a falar do tema, já que a imprensa internacional tem dado pouca ou nenhuma atenção. O “The Washington Post” publicou, no ano passado, uma matéria a revelar que a ajuda armamentista dos EUA à Ucrânia estava a dar um enorme impulso à indústria de defesa americana.

A reportagem referia um estudo do Stimson Center, um think tank de Washington, segundo o qual mais de 90% do dinheiro da ajuda militar para a Ucrânia estavam a ser usados para comprar armas da indústria armamentista norte-americana. Eis os números: dos primeiros US$ 7,6 bilhões em ajuda militar à Ucrânia, US$ 7,3 bilhões teriam sido usados na compra de armas nos EUA.

Na semana passada, um novo texto voltou ao assunto, desta vez assinado por Marc Thiessen, colunista conservador do mesmo jornal. A denúncia é reforçada, mas como uma nuance a ter em conta. É que os conservadores - influenciados pelo trumpismo - ameaçam fechar as torneiras da ajuda à Ucrânia. É parte da estratégia para tentar detonar a candidatura de Joe Biden às eleições de 2024.

O argumento é que, sob o pretexto de ajudar a Ucrânia a se defender da invasão russa, foi criado um negocião para a indústria bélica norte-americana. Além disso, os republicanos argumentam que isso faz a aumentar as tensões entre os Estados Unidos e a Rússia (Trump sonha ser um Putin). Mas há um contrassenso: será que o lobby da indústria das armas, que pende mais para o lado republicano, vai na conversa?

Os republicanos estão a criar problemas para a renovação das ajudas à Ucrânia, o que pode ter algum efeito sobre a opinião dos trumpistas. É a interpretação do slogan "America First". A indústria armamentista sempre contou com os republicanos, mais propensos aos gastos na defesa e à manutenção do poder militar dos EUA, não vai assistir tudo passivamente. Afinal, a pátria dos capitalistas é o dinheiro. 

É a dança da chuva.

Foto: Алесь Усцінаў