terça-feira, 7 de julho de 2015

Questão de identidade

POR FELIPE CARDOSO

Já falei várias vezes aqui no blog sobre a questão da identidade negra e também mostrei algumas desigualdades sociais e raciais presentes no país.

Volto a falar sobre identidade, mas, dessa vez, contarei com a ajuda da camarada Gabriela Queiroz, organizadora do evento “Encrespa Geral” e militante do Movimento Negro Maria Laura, no qual também faço parte, aqui em Joinville.

Uma questão que me chamou atenção esses dias foi o termo que duas pessoas brancas usaram para se referir a duas pessoas negras que não estavam presentes no momento, mas que seriam lembradas na ocasião.

O primeiro se referia a um homem negro como “aquele moreno”. A segunda a uma mulher: “aquela moreninha”.

Difícil encontrar um negro que nunca ouviu essa expressão.

No mesmo dia que presenciei esse caso, abri meu Facebook e vi a Gabriela relatando que sofreu com a mesma situação e compartilhei com ela o que havia acontecido e convidei-a para escrever um texto. E cá estamos.

Já expliquei aqui que a imagem do negro sempre foi construída como um ser demonizado, ruim, bruto, sem alma, que só servia para o trabalho e que esse pensamento se naturalizou e se propaga até hoje. Então, os brancos, que durante todos esses séculos construíram sua imagem como ser civilizado e bom, tentam, de todas as maneiras, branquear a nossa negritude.

“Ah, mas você nem é tão negro assim.”

“Você é mulato, não é negro.”

“Você é morena(o).”

Está tão impregnado essa imagem do negro como algo ruim que as pessoas brancas tentam “elogiar” tirando a sua negritude.

As frases acima representam a mutilação física e psicológica que todos os negros do mundo sofreram e sofrem.

A identidade de cada ser se constrói e sofre diversas influências de acordo com o meio em que ele vive. Então por que o negro é privado de se conhecer, de se assumir e de encontrar semelhantes para compartilhar os mesmos gostos?

Todos nós recebemos nomes quando nascemos, e esse nome também faz parte da nossa identidade, mas quando se é negro, seu nome é esquecido e os apelidos começam a surgir: “negão”, “nega”…

“Vocês estão impondo algo?”

Não, não mesmo. Nós só estamos problematizando e trazendo o assunto para o debate, evidenciando esses casos.

Porque é difícil você encontrar por aí alguém chamando uma pessoa branca de “brancão” ou “branca”, ou se referindo a uma pessoa que não está no local como “aquela com pouca melanina” ou “aquele branquinho”.

Eu, particularmente, nunca ouvi isso.

Na escravidão os negros com a pele mais clara serviam para o trabalho domésticos e os negros com a pele mais escura só serviam para trabalhar no campo e recebiam castigos mais severos que os negros domésticos.

Daí é que surgiram as denominações e diferenciações da pele negra.

Inclusive o termo “mulato/ mulata” é pejorativo, pois vem literalmente do termo “mula”, o animal híbrido, resultado do cruzamento do cavalo com jumenta, ou do jumento com a égua. Estas palavras foram adotadas em nossa língua portuguesa para se referir pejorativamente aos filhos mestiços das escravas que coabitaram com os seus senhores brancos e deles tiveram filhos. Nesse contexto da época escravocrata, a pele escura era um estigma para o castigo. A pessoa “mulata/morena” ou de pele mais clara era a escrava da casa grande, digna da compaixão e proteção de seus proprietários; já aquela com tonalidade mais escura era a do campo e também a que estava sujeita aos piores castigos físicos.

Isso ficou tão enraizado na cultura brasileira, que ter a pele escura é considerado um castigo ainda hoje. A gente ouve coisas do tipo: “Ah, mas vc não é tão negra assim…” “Não, você é uma morenona! Bonita!”

Eu não quero ser chamada de morena. Não quero que “amenizem a minha condição”.

Mas o fato é que independentemente da tonalidade da pele, todos nós, negros e negras, passamos pelas mesmas humilhações, sofremos com a dor do racismo e vivemos as consequências da escravidão.

Então quando você se refere a um negro como “moreno” ou “mulato”, você está sim ofendendo.

Porém, nos defrontamos com outro problema aqui: tem muitos negros que não se importam em serem chamados assim, porque eles também assimilaram a ideia de que quanto menos negro ele for, melhor posição social ele encontrará. E acredito que isso gera uma grande incerteza na população não negra, porque simplesmente não sabe como deve nos chamar. Não sabe identificar quando a negritude é defendida com orgulho ou quando ao contrário, essa identidade é negada.

A moça que veio me dizer “preciso maquiar uma pele morena e pensei em você” havia dito para outra moça antes de mim: “preciso maquiar uma pele negra e pensei em você”. Essa moça negra se ofendeu e disse que ela prefere ser chamada de morena. Já eu, bem resolvida com minha identidade negra, achei o termo “morena” desrespeitoso para comigo.

É preciso trilhar um longo caminho de reconstrução da identidade das pessoas negras, e isso passa, necessariamente, pela questão do cabelo, que já abordei em outra ocasião (aqui). Quando uma pessoa negra me diz coisas do tipo “esse cabelo combina com você, mas em mim ficaria feio”, eu percebo que a questão de identidade é mais intrínseca que apenas a questão estética.

Há toda uma carga de negação que a acompanhou durante a vida e, não conseguir ao menos se permitir descobrir sua verdadeira essência, não conseguir se olhar no espelho ostentando sua própria natureza é de causar tristeza. Tristeza sim, porque nenhuma pessoa deve ter vergonha de ser o que é. E nenhuma sociedade deve querer impor padrões aceitáveis porque nós não somos todos iguais.

Não queremos que as pessoas, ao buscar a equidade social, nos digam coisas do tipo “nós somos todos iguais!”.

Não, nós não somos todos iguais. O que de fato desejamos é que nossas diferenças sejam respeitadas.

Não podemos permitir que nossos filhos perpetuem as histórias tristes daqueles que os antecederam. É preciso empoderá-los para que num futuro não muito distante, todos nós, negros e brancos, possamos conviver em harmonia; tendo nossas batalhas, senão compartilhadas, ao menos compreendidas.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Perdido por perdido, “oxi”

















Quem já jogou truco lembra de um dos chavões mais repetidos: “perdido por perdido, truco”. É quase uma regra para quem tem pouco a perder. E parece ter sido a lógica do povo grego, que compareceu em massa para votar no referendo de domingo para rejeitar as propostas de mais austeridade da Troika. Foi uma acachapante goleada, com o “não” a obter 61,3% dos votos, contra  parcos 38,7% do “sim”.

O que resultou da votação, ainda na noite do referendo, foi um tremendo azedume das autoridades europeias e dos apoiantes do "sim", em especial em Bruxelas e Berlim. Houve muitas reações a quente. Há quem anuncie o caos. Há quem afirme não haver mais condições para negociar. Há quem ameace com cortes nas linhas de financiamento. E há quem, em tom de revanche, preveja um caminho amargo para a Grécia. É muita azia.

Os tecnocratas apegam-se a questões econômicas. E tentam disfarçar o terremoto político provocado pelo referendo. Os donos da Europa, sempre em linha com os mercados - e, claro, os bancos -, não se cansaram de repetir a lenga-lenga de que não há alternativa à austeridade. E não aceitam ser contrariados, mesmo que o remédio esteja a matar o paciente. A austeridade exauriu o Grécia. E qual é a proposta de tratamento? Mais austeridade. Se o veneno não curou, aumenta-se a dose de veneno.

As decisões econômicas são políticas. Todos sabemos que as lideranças europeias estão em sintonia com o sistema financeiro e que os países periféricos estão a pagar pela ganância dos bancos. A imprensa traz dados reveladores: o programa de ajuda foi de € 250 bilhões, mas apenas € 27 bilhões chegaram à economia grega. Adivinhem onde ficou o resto do dinheiro. Se pensou bancos alemães e franceses...

Não vamos ser ingênuos e pensar que a questão grega está resolvida. Longe disso. O caminho é longo e penoso, mas a voz do povo grego fez-se ouvir para além do espaço europeu. E trouxe um pouco de esperança aos outros povos. Talvez o berço da democracia tenha o condão de espoletar uma nova democracia. Torçamos! O discurso do TINA (there is no alternative) ficou em xeque ou, pelo menos, sob suspeita. O mundo agora sabe que há alternativas e é possível peitar os rentistas.

Utopia? Sim. Mas vale acreditar num outro mundo possível, porque o mundo que temos está muito chato. Sociedades dominadas por predadores econômicos? Oxi!


É a dança da chuva.

Atocha!


Çolussão!


O não-problema e o problema


O corredor da JK é um não-problema. É o resultado de um cúmulo de erros, da falta de diálogo e da forma como é feito o planejamento na nossa vila. O resultado é esta confusão que esta aí posta. Não é hora de distribuir culpas, até por que há muitas culpas no cartório. O poder público demorou a agir. Quando o fez foi frouxo, fazendo com que o problema só se agravasse. A reação da sociedade, especialmente nas redes sociais, tem sido implacável e agora a Prefeitura corre atrás do prejuízo. 

Não vou entrar na discussão sobre a prioridade do coletivo sobre o particular. Ou sobre o modelo de desenvolvimento urbano. E nem como as coisas são impostas sem escutar a sociedade e, na maioria das vezes, de forma mais empírica que técnico-científica - não por falta de mestres e doutores e sim por falta de humildade e até por preguiça. Mas todos esses pontos são outra história.

Dois pontos me chamam a atenção neste imbróglio. O primeiro a inoperância do poder público, que não tem sido capaz de colocar um guarda municipal na frente do colégio nos horários de entrada e saída dos alunos. Alega o município que: "não há como manter fiscais quatro vezes por dia, todos os dias, num único ponto da cidade". A matéria do jornal A Notícia não identifica a fonte de tal asneira (vai que depois que à falou arrependeu-se). 

Deixa ver se entendi, independentemente do problema do corredor de ônibus e o conflito com os veículos dos pais que vão buscar os filhos, o município não consegue colocar um guarda de trânsito diante de uma escola nos horários de entrada e saída dos alunos? Quer dizer que a Guarda Municipal não consegue melhorar a segurança das crianças na entrada e saída das escolas?

Eis a lógica: não pode colocar um guarda todos os dias, em determinados horários em pontos determinados, para aumentar a segurança ou melhorar o fluxo do transito em lugares e horários de pico. Entenderam? Em outra galáxia isso seria um atestado de incompetência, assinado e rubricado. Entre os sambaquianos escutar escusas para não fazer é o nosso pão de cada dia.

Mas não há problema. Os guardas tem outras coisas que fazer como, por exemplo, blitzes em lugares incertos e em horários alternados. Entendi quais são as prioridades. Mas segurança é prevenção não deveriam ser prioritários? Deveriam. Mas não são. Saudade da Comissão Comunitária para a Humanização do Trânsito e para o Aluno Guia que Joinville já tinha.



OUTRO COLÉGIO - O segundo, e antes que seja tarde, é outro colégio. O colégio Marista comprou área no Bairro América, na rua Benjamin Constant. Na audiência pública para apresentar o EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança) ficou evidente que a rua não comporta o tráfego adicional que o colégio vai gerar. O projeto reconhece o problema e diz que só se o poder público fizer investimentos na rua o problema será amenizado. Entenderam?

Vou repetir com outras palavras, um projeto privado criará problemas de tráfego e a solução só será possível com investimento público. 

E ainda não sei se o IPPUJ não inventa um dia colocar um corredor de ônibus, ou uma ciclovia, ou ambos juntos, como na rua Max Colin. Vamos lembrar que público quer dizer aquele dinheiro que vem dos seus e dos meus impostos. Assim falamos de lucro privado e prejuízos públicos. É importante, antes que seja autorizada a sua instalação, que sejam apresentadas soluções concretas, em nova audiência pública, para evitar o problema.

Até agora nada mais que silêncio, tanto de parte do IPPUJ como do colégio. Lembrem que quem avisa amigo é depois não venham dizer que o colégio estava lá antes. Não estava.

sábado, 4 de julho de 2015

Maria Julia Monteiro e os racistas fora do armário

POR LUANA TOLENTINO

Temos assistido a manifestações de racismo cada vez mais violentas. Em parte, isso se deve ao fato de nos últimos anos a população negra ter ascendido socialmente e deixado de ocupar somente postos de trabalho com baixa remuneração e prestígio, como o emprego doméstico, a portaria dos prédios, os serviços gerais e tantas outras.

Ainda em menor número, hoje já é possível ver mais negros ocupando posições de destaque, em cursos de graduação, mestrado e doutorado. Cito a pergunta do antropólogo Kabengele Munanga: "Quem vai limpar a Casa-Grande se agora os negros estão na universidade?" Por essa as elites e a classe média não esperavam.

Essas mudanças têm gerado ódio e revolta, disseminados sem o menor pudor nas redes sociais. Os racistas saíram do armário. Maria Julia Monteiro, jornalista da Globo, é a vítima da vez.

Por mais que eu deteste/não suporte/tenha pavor-nojo-asco do JN, ele ainda é o jornal de maior importância do país. Por mais que eu deteste/não suporte/tenha pavor-nojo-asco da emissora dos Marinho, ela é a quarta maior rede de televisão do mundo. Não há como negar a força e o poder da Globo.

E é justamente esse espaço que Maju, com talento e competência, ocupa atualmente. Todas as noites, Maria Julia adentra a casa de milhões de brasileiros. Não como uma doméstica da novela das 6, 7 ou 8, que ao ser humilhada aceita tudo calada, de forma resignada. Mas, sim, como a “moça do tempo”, posto jamais ocupado por uma mulher negra ao longo dos 50 anos da Rede Globo. Para uma sociedade que naturaliza as desigualdades raciais, isso é inaceitável.

Soube através do Facebook, que na edição de sexta-feira, dia 3, Willian Bonner e Renata Machado falaram sobre os ataques racistas de que Maria Julia Monteiro foi alvo. Ao que parece, a palavra racismo não foi mencionada em nenhum momento. O que era de se esperar. Sabemos que cada frase dita no telejornal passa pela chancela de Ali Kamel, diretor de jornalismo e autor do livro "Não Somos racistas".

Da Globo não espero nada. Da Maju, torço para que ela tenha forças para lutar. Não com um irônico "beijinho no ombro", como ela teria dito, mas com um posicionamento firme. Racismo não é brincadeira. É uma ideologia forjada para negar a humanidade de nós negras e negros. 


Luana Tolentino é professora e historiadora. É ativista dos movimentos Negro e Feminista.

O barulho da chuva #3


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Incoerências de uma cidade em situação irregular


POR ANDREI KOLACEKE

Logo que recebeu um grande terreno como herança dos falecidos pais, Elisa decidiu utilizá-lo para construir uma casa capaz de abrigar o marido e os três filhos. Residente em Joinville, a família havia juntado, ao longo de vários anos e com muito sacrifício, o dinheiro necessário para a construção da tão almejada casa própria. Em busca do alvará necessário para iniciar a construção, no entanto, Elisa viu frustrados os planos de sua família. Já na consulta prévia, foi informada pela Secretaria do Meio Ambiente de que a quase totalidade do imóvel não poderia receber qualquer construção. Uma faixa de trinta metros de largura do terreno encontrava-se em área de preservação permanente, por estar localizada às margens de um pequeno córrego que passava na região.

No caso, o posicionamento da SEMA, embora de acordo com a literalidade da Lei nº 12.651/12 (o famigerado novo Código Florestal Brasileiro), de maneira alguma se mostrava razoável. A respeito da ocupação do solo de Joinville, o próprio Tribunal de Justiça de Santa Catarina já decidiu reiteradamente que “em área urbana não se aplicam as distâncias mínimas definidas pelo Código Florestal entre construções e margens de rios, córregos e canais[1]. De qualquer maneira, diante disso, só restaria a Elisa desembolsar pelo menos R$ 3.800,00 (conforme a tabela de honorários da OAB/SC) para tentar reverter a situação por meio de um mandado de segurança.

Independentemente do desfecho, são situações como a de Elisa que evidenciam a maneira como as questões relacionadas à preservação ambiental vêm sendo tratadas na cidade.

Construída sobre uma área recortada por pequenos cursos de água e ocupada por vastos manguezais, Joinville desde cedo teve sua expansão urbana associada à degradação do ambiente. Do século XIX aos dias atuais, foi uma ideologia utilitarista, de progresso a qualquer custo, que norteou a ocupação do solo e o desenvolvimento econômico da cidade. As indústrias mais antigas e diversos prédios públicos gradualmente ocuparam o espaço que sempre havia pertencido às matas ciliares, enquanto uma população em rápido crescimento tomou o lugar da Mata Atlântica e acumulou-se em torno do mangue. O processo de ocupação da região ocorreu de tal maneira que, passadas tantas décadas, uma aplicação literal da legislação ambiental vigente colocaria a maior parte dos espaços ocupados em situação irregular e inviabilizaria a própria existência da cidade.

Diante da impossibilidade de uma reversão completa do dano já causado, caberia ao Poder Público ao menos garantir a observância das normas federais, estaduais e municipais de proteção ao ambiente com a eficiência, a imparcialidade e a razoabilidade necessárias para torná-las eficazes; deveria, sobretudo, direcionar seu rigor a quem realmente tem oferecido riscos ao equilíbrio natural da região.

No entanto, ao invés disso, tolera, ano após ano, o funcionamento de grandes indústrias às margens de rios e córregos; diante das violações, aplica penalidades irrisórias quando comparadas às dimensões dos sujeitos penalizados; no final das contas, torna a aplicação do direito ambiental um simples custo a ser incluído na fórmula de lucratividade das atividades nocivas ao ambiente. Quando aplica a lei em sua literalidade e com o máximo rigor, o faz justamente com cidadãos como dona Elisa, que dispõem de tanto potencial para causar danos ao ambiente quanto capacidade para reagir às arbitrariedades.

Em Joinville e na maior parte do mundo, o medo de uma possível fuga de investimentos tornou o Estado pouco mais que um refém do capital. Nessa relação de poder invertida, os interesses a que os órgãos governamentais procuram atender são completamente dissonantes dos da população, vez que o modelo de desenvolvimento adotado, insustentável do ponto de vista ambiental, é responsável, como se sabe, pelo aprofundamento das desigualdades sociais e pela deterioração das condições de vida nas comunidades mais vulneráveis.

Como um engodo, a aplicação de normas ambientais em Joinville mostra-se intransigente contra os pequenos, branda contra os grandes, excessiva nos pontos em que é desnecessária e omissa naquilo em que é imprescindível.




[1] TJSC, Agravo de Instrumento n. 2014.006221-6, de Criciúma, rel. Des. Cid Goulart, j. 03-03-2015

Maternagem consciente para quem?

POR EMANUELLE CARVALHO

Há alguns anos, muito tem se falado em maternidade consciente, maternagem e criação de filhos com afeto. Entre as temáticas está a diminuição de horas trabalhadas para cuidado com as crianças, da permanência em casa e o distanciamento do trabalho até que a criança consiga fazer tarefas mínimas como comer e ir ao banheiro.

Essas premissas são de fato muito importantes e possibilitam uma criação com apego, aumentam o diálogo a ligação da mãe com a criança, o conhecimento mútuo, enfim, são muitos os benefícios. Mas o que eu quero pontuar aqui é o privilégios dessas possibilidades.

Em uma sociedade racista e machista ter um filho com a presença do pai é um grande privilégio. Segundo dados do censo IBGE de 2010, uma em cada quatro famílias é chefiada por mulheres. Como não há dados específicos sobre essas famílias, a perspectiva de vários especialistas é de que essas famílias são, em sua maioria, de mães que criam seus filhos sozinhas, com pouca ou nenhuma ajuda do pai(s) de seu(s) filhos.

E se vivemos numa sociedade que remunera suas mulheres com salários até três vezes menores que os homens - nas respectivas funções, tendo em vista que o salário das mulheres negras é em média 35% do salário de um homem branco (no caso de mulheres brancas essa média é de 63%). Como garantir que essas mães conseguiram exercer seu direito de maternidade de forma plena ou minimamente digna?

Além disso, o mercado de trabalho para mulheres é cruel, especialmente para mulheres periféricas com baixa qualificação. Para estas sobram as vagas de operadoras de telemarketing, vendedoras, atendentes além de serviços de limpeza e higiene. Essas áreas de um modo geral pedem dedicação de seis dias por semana. Ora, como trabalhar seis dias por semana, de seis horas por dia (fora o deslocamento) e ainda cuidar da casa, dar educação, fazer comida e ainda se virar com lazer, carinho, cuidados pessoais e sua própria vida enquanto mulher?

Tive meu primeiro filho aos 19 anos, em uma condição econômica bem complicada. Cheguei a ter três empregos ao mesmo tempo, entregar listas telefônicas e trabalhar como atendente de telemarketing de madrugada para conseguir ajudar no seu sustento. Fui fazer faculdade somente aos 22 anos, depois que ele tinha o mínimo de independência e eu podia me dar ao luxo de reduzir os empregos ou estágios para dois.

A lida entre faculdade e filhos só foi possível por ter ao meu lado minha mãe, que se dividia entre trabalhar em uma cozinha industrial como servente, e cuidar de uma criança pequena. Eu, além dos trabalhos da faculdade, das tarefas nos empregos, de cuidar do meu filho, ainda tinha de passar, lavar e cozinhar. Mesmo assim, eu fui uma privilegiada e hoje vivo uma vida muito mais confortável e diferente daquela.

Mas quantas de nós não tem o mesmo acesso? Quantas de nós mal conseguem sustentar a própria casa? Quantas de nós permanecem em um casamento desgastado, difícil e violento justamente porque nossas remunerações e tempo disponíveis seriam ainda mais escassos e não daríamos conta de uma subsistência mínima? Quem consegue pedir o divórcio sabendo que aos filhos e a si mesma restará o abandono e uma vida ainda mais difícil?

A sociedade cobra da mulher proletária uma postura muito superior à cobrada a um homem trabalhador e a mulher classe média. Além da tripla jornada de trabalho (casa, empregos e filhos) ainda temos como obrigação, o dever moral de afeto de prontidão, de compreensão, de estarmos bonitas e sermos bem sucedidas.

Há uma distância inimaginável entre uma mulher classe média e uma mulher periférica. Há um casamento estável, uma família estável, um carro, comida com fartura, roupas novas, brinquedos novos, há educação de qualidade, há estabilidade emocional. Eu não estou dizendo que a vida de mulheres classe média não seja o tempo todo vigiada pelo machismo e a misoginia, e seja também muito difícil, mas é preciso fazer o recorte de classe.

É preciso aproximar os discursos das realidades. É preciso lutar para modificar essas realidades e empoderar essas mulheres antes de julgarmos seu tempo, dedicação e modo de cuidar dos filhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Encontro com o ser humano


POR PATRÍCIA STAHL GAGLIOTI

Dia desses, andava pelo centro de Joinville por volta das 8 horas, quando fui abordada por um ambulante que carregava, em seu ombro, um mostruário daqueles em que se pendura bijuterias para vender nas esquinas da cidade. Ele olhou para mim e, sem muita razão, me perguntou: “Você prefere a verdade ou a mentira?”. Titubeei um pouco ao responder, mas disse: “A verdade”. À minha resposta, lançou-me então sua verdade: “Faltam R$ 2,50 para eu tomar minha cachaça, você me arruma?”.

Talvez pela minha inabilidade de negar algumas coisas, ou talvez por crer que não tenho condição nenhuma de julgar as necessidades daqueles que perambulam pelas ruas, atravessei em direção à outra calçada e fui trocar dinheiro para que o rapaz comprasse sua dose de cachaça. Como recompensa, enquanto eu iria em busca dos seus R$ 2,50, ele sacou um arame dos seus materiais e começou a confeccionar uma clave de sol, uma retribuição por eu ser uma “pessoa legal”, em suas palavras.

Com os R$ 2,50 em mãos, fui em sua direção e trocamos o artesanato pelo dinheiro. O rapaz olhou para mim – se Machado de Assis estivesse ao meu lado, talvez tivesse dito que seus olhos eram como os de Capitu, olhos de ressaca – e soltou mais uma de suas perguntas: “Olhe para as minhas mãos cheias de calo. Você acha que esse dinheiro paga esta peça que eu lhe fiz?”. “Bem, eu não sei quanto custa esta peça, mas foi você quem me pediu R$ 2,50”, respondi. “Eu não quero mais ficar na rua, quero ir embora desta cidade”, continuou.

O calo nas mãos daquele rapaz e sua indagação séria sobre o valor de seu trabalho, feita assim às 8 horas de um dia que se anunciava ensolarado, de alguma forma me tocou. Fiquei pensando, minutos depois enquanto caminhava rumo ao meu trabalho, o quanto menosprezamos o trabalho que realizam, o estilo de vida nômade que alguns escolheram para si, seus calos.

Talvez porque somos aqueles inseridos numa lógica de trabalho atrelada à rotina, ao sacrifício, acostumados a “engolir sapos” e “pastar” para “sermos alguém na vida”. E sermos alguém na vida se traduz em tudo aquilo que pode ser materializado, comprado, medido, contado e exposto aos olhos alheios em postagens nas redes sociais.

Max Weber há muito já falava sobre a característica peculiar do sistema capitalista moderno, no qual se desenvolveu uma ética própria, um modo de vida fundamentado no trabalho e na prosperidade financeira. “O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais”.

Weber também nos disse que “ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é resultado e expressão de virtude e de eficiência em uma vocação”. Mas que vocação seria a do ambulante que me abordou naquele dia na região central da cidade? A de confeccionar claves de sol, brincos e colares de quando em quando, percorrendo diferentes regiões do Brasil e da América Latina?

Parece que também não basta ter vocação para moldar o arame a seu favor e lhe dar a forma que desejar, a não ser que este seja um trabalho mecânico realizado dentro de uma fábrica, na qual se passa oito horas por dia e na qual os homens que ali trabalham podem ser merecidamente chamados de trabalhadores. Dobrar arame nas ruas centrais parece não contar. Assim como não conta fazer malabares no semáforo, ou cuspir fogo em uma apresentação de segundos para faturar trocados dos carros parados.  

E não conta porque além de sermos enquadrados em um determinado sistema de trabalho do qual estamos acostumados, somos extremamente utilitaristas. Se em nada me contribuiu ou de nada me vale as bolas rodando pelo ar antes de retornarem às mãos do malabarista, por que teria de pagá-lo por isso? Cada um com suas escolhas e com a aplicação de seu dinheiro que melhor lhe convir, mas já diria Rubem Braga, nos idos dos anos 1952: “A humanidade não vive apenas de carne, alface e motores”. O que não significa que se deva pagar por isso caso não queira, mas que a gente possa ter um olhar mais apreciativo para as coisas, causos e outros.

O fato é que depois de me pedir uma passagem para outra cidade e de eu negar-lhe por não ter verba para isso, o ambulante sorriu, me deu um abraço desejando bom dia e seguiu seu caminho. Os minutos que conversei com ele, antes de sentar na minha mesa de trabalho e desempenhar minha função costumeira – por vezes de forma mecânica – encheu meu dia de humanidade, de calo, abraços e histórias. De pessoas.

Para finalizar com Braga: “Sejamos humildes diante da pessoa humana: o grande homem do Brasil de amanhã pode descender de um clandestino que neste momento está saltando assustado na praça Mauá, e não sabe onde ir, nem o que fazer. Façamos uma política de imigração sábia, perfeita, materialista: mas deixemos uma pequena margem aos inúteis e aos vagabundos, às aventureiras e aos tontos porque dentro de algum deles como sorte grande da fantástica loteria humana, pode vir a nossa redenção, a nossa glória”.