quinta-feira, 22 de agosto de 2024

A comunicação de Lula não é ruim: o trabalho é que é muito difícil

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Tem muita gente batendo forte na comunicação do governo Lula. Dizem que o pessoal não consegue atinar com estes tempos do digital. Pode ser. Mas não é assim tão simples. Porque as armas são desiguais. Tentar levar a verdade a um mundo onde impera a falsificação é um trabalho de Sísifo. Imaginem que hoje a mentira deixou de ser mentira: virou um “outro tipo” de verdade, a tal da “pós-verdade”. A extrema direita, que produz desinformação em doses cavalares, está a nadar de braçada. 

O leitor e a leitora estão familiarizados com a expressão “information overload”? Ora, não é coisa nova. O termo foi usado pela primeira vez na década de 60 do século passado, em ambiente acadêmico, e acabou popularizado pelo escritor americano Alvin Toffler. O cara é muito conhecido pelas suas previsões sobre a sociedade da informação. Mas o que significa essa sobrecarga (overload)? Que a quantidade de informações disponíveis supera a capacidade que o ser humano tem de processá-las de forma adequada. Daí resultam leituras da realidade muito equivocadas.

E a coisa piorou. A tecnologia e as redes sociais evoluíram, tornando o desafio ainda maior. O excesso de informação deixou de ser uma sobrecarga quantitativa. Não há qualquer dúvida de que o mundo evoluiu da “information overload” para uma “desinformation overload” (ou “infoxication”). É a expressão exata para descrever um cenário onde, além da abundância, há uma proliferação de informações falsas ou intencionalmente enganosas. As pessoas perderam a capacidade de distinguir as  linhas que separam a verdade da mentira. 

Há atores políticos que têm o objetivo confundir as pessoas e minar a confiança em fontes de informação confiáveis. É só lembrar a declaração de Steve Bannon, ex-assessor de Donald Trump, quando disse que a verdadeira oposição não são os rivais políticos, mas a mídia, e que a estratégia é “inundar a zona com merda”. É a estratégia do quanto pior, melhor. O objetivo é saturar o espaço informacional com tantas narrativas fajutas que o cidadão comum se vê desorientado, incapaz de discernir o que é real.

Exemplos práticos dessa lógica estão nas raízes do trumpismo e do bolsonarismo. Neste momento, Donald Trump está em campanha para voltar à Casa Branca. No debate que teve com Joe Biden (antes da desistência), em junho último, Trump fez tantas alegações falsas que muita gente perdeu a conta. A imprensa mostrou dezenas de afirmações enganosas ou imprecisas. Um exemplo do absurdo. Trump repetiu a ideia de que os democratas apoiam abortos “depois do nascimento”. É a esquizofrenia total. Até porque aí já seria assassinato e não aborto.

O bolsonarismo seguiu roteiros parecidos. Falsificações grosseiras como a “mamadeira de piroca”, o “kit gay” ou o “banheiro unissex” foram usadas para impulsionar o nome de Jair Bolsonaro. A proliferação de “fake news” no WhatsApp, por exemplo, criou uma legião de idiotas. É gente que rejeita qualquer informação que não esteja em linha com as suas crenças. Já não se trata do direito de ter a própria opinião, porque eles reivindicam o direito de ter os próprios fatos. 

Enfim, essa “desinformation overload” é um extremo que confunde e impede o diálogo democrático. O resultado é a polarização e a fragmentação do tecido social, como vemos no Brasil. Num mundo onde a verdade se torna líquida (para citar Bauman), a confiança nas instituições é corroída. As sociedades democráticas enfrentam um desafio sem precedentes: restaurar a ideia de verdade em meio a esse mar de merda proposto por Steve Bannon. O futuro das democracias depende disso. É difícil, muito difícil. Que o digam os homens da comunicação do governo Lula. 

É a dança da chuva.

Foto: Ricardo Stuckert



segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Se é preciso apoiar autocratas, então não sou de esquerda

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

É uma coisa muito doida. Um dia destes ouvi que não posso me considerar de esquerda. Por quê? Porque eu não vou à bola com Putin ou Maduro. E para uma certa esquerda (por sorte minoritária) isso é uma forma de dissidência, uma heresia ideológica. O fato é que são dois autocratas. Há alguma diferença entre os dois? Sim. É que Putin faz eleições para ganhar de goleada (nada abaixo dos 80% é aceitável), enquanto Maduro faz eleições em que corre o risco de perder. É por isso que hoje o presidente venezuelano está metido nessa alhada.

Um pouco de história. Quando Hugo Chávez tomou as rédeas na Venezuela, senti uma certa simpatia. Porque ele implementou políticas de nacionalização da indústria petrolífera, amentando o controle sobre a PDVSA (Petróleos de Venezuela, S.A.), e direcionou os lucros do petróleo para programas sociais. É óbvio que isso causou um ranger de dentes nos grupos de interesse que mamavam na teta do petróleo venezuelano, tanto dentro quanto fora do país. E, como seria de esperar, seguiu-se um autêntico massacre midiático contra Hugo Chávez. 

As mídias local e internacional atacaram sem dó nem piedade. Lembro de ter escrito um texto chamado “o nome do jogo é petróleo”, em que falava desse ataque da imprensa, na tentativa de criar a ideia de que Hugo Chávez era um tirano. É claro que isso deixou marcas na sua imagem. Mas há os fatos: a dependência das verbas do petróleo era demasiada. O governo chavista cometeu o erro de pouco (ou nada) investir na diversificação da economia. O país acabou refém da própria inação e a distribuição da riqueza foi sol de pouca dura. 

Não é arriscado dizer que Chávez subestimou a história. Muitos dos governantes que se opuseram aos interesses do Tio Sam na América Latina (à exceção de Cuba) tiveram um destino infausto: foram apeados do poder. Getúlio Vargas, João Goulart, Juan Domingo Perón ou Salvador Allende. Os países gulosos pelo petróleo nunca iam deixar barato. O fato é que, muito pressionado, Chávez adotou um estilo messiânico e de fanfarronice verbal, o que serviu para provocar profundas fraturas na vontade dos venezuelanos. E detonou a imagem do líder.

Quando os preços do petróleo caíram de forma drástica, a má gestão ficou escancarada. Em especial porque a PDVSA, primordial na economia do país, estava a ser mal gerida e corroída pela corrupção. E chegamos a Nicolas Maduro. Quando o atual presidente chegou ao poder, o controle das instituições já era muito apertado. O discurso era de socialismo, mas a prática ia no sentido do autoritarismo. Os problemas não desapareceram (até aumentaram) e com o tempo Maduro garroteou ainda mais estruturas de poder. A democracia cambaleou e soçobrou.

O que temos hoje? Um governo enquistado de militares (ele chama “cívico-militar”). Denúncias infindáveis de corrupção. Estruturas de milícia entranhadas no tecido social. O aparelhamento do poder judiciário. A comunicação social na alça de mira. A oposição silenciada ou posta de lado. Os serviços de segurança acusados de repressão e violações dos direitos humanos. As sanções, sobretudo dos EUA, a provocar danos. A excessiva dependência da China e da Rússia. Um sistema eleitoral sob controle do governo. E deu no que deu.

E, no que interessa aos brasileiros, Maduro deixou Lula numa sinuca de bico. O “Acordo de Barbados”, assinado no ano passado com o empenho da diplomacia do Brasil, foi para o vinagre. O governo de Nicolás Maduro e os líderes da oposição venezuelana concordaram com o modelo da eleição de julho passado. O acordo previa um pleito livre e justo, além de incluir a liberação de presos políticos e a reabertura do espaço democrático. Mas, como sabemos, nem o governo e nem as oposições da Venezuela são muito chegados ao cumprimento das promessas.

Agora Lula e a sua diplomacia têm que decidir qual é a posição do Brasil. Se aceitar a vitória de Maduro, agrada a essa parte da esquerda brasileira (que tem métodos próximos de um bolsonarismo às avessas). Mas, por outro lado, corre o risco de perder o capital internacional que conquistou ao longo da sua vida política. Aliás, existe uma coisa elementar: se Maduro ganhou as eleições e as tais atas comprovam isso, nada mais natural que apresentar no tempo certo. Não apresentou? Até uma criança de seis anos de idade vai achar isso esquisito.

Enfim, traduzindo para o português do Brasil: Maduro é tudo o que Bolsonaro queria ser. E é aí que essas “esquerdas” brasileiras são zarolhas. Porque ser de esquerda é defender democracias e não regimes autocráticos. Então fica a auto-análise: será que eu posso me considerar de esquerda. Ora, se para ser de esquerda eu tiver que defender ditadores e autocratas, então podem rasgar a minha carteirinha. Essa linha eu não cruzo. Enfim, podem contar com a minha bonomia, mas nunca com a minha ingenuidade.

É a dança da chuva. 

 Foto: Ricardo Stuckert





quarta-feira, 31 de julho de 2024

O Trump esquisitão e o poder das palavras

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

As palavras têm poder e o uso estratégico da linguagem não é novidade na política. Os ciclos eleitorais têm o condão de revelar a semântica como uma arma poderosa. Uma palavra bem escolhida ou uma expressão bem articulada podem influenciar opiniões, direcionar narrativas e, em última instância, afetar o voto dos eleitores. Os norte-americanos são craques nisso. Quem não se lembra do “Yes, We Can”, na campanha de Obama? Ou o “sem medo de ser feliz” de Lula? São dois clássicos. 

 Os últimos dias foram pródigos em reviravoltas nos EUA. Saiu Joe Biden, entrou Kamala Harris. E tudo mudou, inclusive o uso da linguagem. Um exemplo recente é a tática dos democratas, que passaram a chamar Donald Trump de “weird” (estranhão) nas suas intervenções. A escolha da palavra não é aleatória. Há uma estratégia bem pensada por trás da ideia. Porque Trump é mesmo esquisitão. Ao longo dos últimos anos, os norte-americanos conviveram com o estilo doidão do ex-presidente. Mas lá em casa, sentados no sofá, os eleitores pensavam:
- Este tipo é mesmo estranhão.

O fato é que a coisa pegou. Porque só cola se houver alguma razão. O mais formidável é que a ideia da esquisitice contaminou também os eleitores de Trump (que, vale dizer, não são menos esquisitos). O fato é que a termo carrega conotações que podem dar uma chacoalhada na imagem do republicano. “Estranhão” sugere que ele é imprevisível, fora do comum e, de certa forma, desconectado da realidade convencional. E é fácil acreditar. O epíteto é muito eficaz em contrastar Trump com a imagem de estabilidade e normalidade que o país precisa.

No ambiente político, em especial nos EUA, as palavras são cuidadosamente escolhidas de forma a evocar reações emocionais e cognitivas específicas no eleitorado. Kamala Harris traz uma imagem de competência, firmeza e inovação. Ou seja, é o oposto de um Trump “estranhão”. Quando os democratas dizem que o opositor é esquisitão, a crítica não é apenas às suas políticas ou comportamentos específicos. A ideia é criar uma narrativa que “infantiliza” o candidato republicano.

A semântica das eleições é um campo de batalha onde cada palavra conta. Na era da comunicação instantânea e das redes sociais, a capacidade de capturar a atenção do público com uma palavra ou frase pode ser decisiva. A caracterização de Trump como “estranhão” pelos democratas é uma jogada calculada para dominar a narrativa e influenciar as conversas nas mídias sociais, nos debates e nas discussões cotidianas dos eleitores.

É o que faz lembrar do caso Bolsonaro. Talvez os seus opositores não tenham encontrado as palavras certas para criar uma narrativa desmoralizadora. Ou talvez a culpa seja da seriedade de políticos que ainda não perceberam uma coisa elementar: em tempos de comunicação digital, a semântica é tão importante quanto a substância. E por vezes é preciso sair das vestes vetustas. Porque em ambiente político as palavras podem moldar percepções.

É a dança da chuva.




















terça-feira, 30 de julho de 2024

O mundo precisa de mitoclastas

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Poucos intelectuais desenvolveram um pensamento tão refinado quanto Roland Barthes. A sua obra é tão extensa quanto densa e um dos conceitos mais instigantes é o de “mitoclastia”. Ou seja, destruir mitos. Para situar o leitor menos familiarizado com os escritos do pensador francês, o mito é uma distorção que resulta da des-historicização dos signos. Trocando em miúdos, são aquelas coisas que todos nós entendemos como “naturais”, mas que na realidade são históricas, portanto socialmente construídas (é mais complexo do que isso, claro). 

Um mitoclasta duvida, quer ver o mundo pelo viés da história. E por isso questiona todas as verdades, em especial aquelas que parecem mais afirmativas. Para ficar mais claro, vamos a um exemplo prático do nosso dia-a-dia (já escrevi sobre isto antes). O Brasil tem um presidente da República sem diploma. O pequeno-burguês torce o nariz. Porque ele acredita no mito, construído ao longo dos tempos, que divide os homens entre diplomados e não-diplomados, cultos e não-cultos, apesar de diploma e cultura nem sempre viverem na mesma casa.

As "verdades absolutas" são aquelas noções que, de tão arraigadas no pensamento coletivo, são aceitas sem questionamento. Essas verdades estão também na história do cotidiano. Outro exemplo mundano? Os padrões de beleza. Muitos acham que não universais. Mas não. A beleza também é histórica. Nos tempos da peste, as pessoas mais “cheinhas” podiam ser consideradas as mais belas, porque resistentes. O pintor flamengo Peter Paul Rubens ficou conhecido por suas representações de mulheres mais fofinhas, um ideal de beleza daquela época.

O mitoclasta é um destruidor de certezas. Porque ao desafiar as convicções absolutas, o mitoclasta força a reconsiderar crenças. Mais do que isto, obriga a ver que muitas delas são produtos de contextos históricos específicos e não verdades universais. Outro exemplo daquilo que se insiste ser natural: hoje é comum, em especial entre os políticos de direita, dizer que um casal é formado por um homem e uma mulher. É uma “verdade” destes tempos, mas que logo será engolida pela tempestade da história. Porque tudo passa. Tudo é histórico. 

A função do mitoclasta é desconstruir as ideias de “normalidade” e “naturalidade”, noções quase sempre moldadas por forças históricas e culturais. O mitoclasta é inimigo daqueles que se apegam a simplificações e generalizações, seja à esquerda, à direita ou ao centro. Enfim, nas sociedades hodiernas, tomadas por logros, mistificações e desinformações, o mitoclasta tem o papel de tentar trazer a clareza. É um trabalho difícil. Mas o mundo precisa deles.

É a dança da chuva.


Anna e os Anciãos, de Rubens



quarta-feira, 17 de julho de 2024

Soldado caído ou o fotógrafo caído?

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

“Soldado Caído” (“Falling Soldier”) é uma das imagens mais icônicas e controversas da história da fotografia de guerra. Feita por Robert Capa, um dos mais importantes fotojornalistas do século XX, a imagem foi supostamente tirada em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola. A imagem é de um soldado republicano no momento exato em que parece ser atingido por um tiro e cai para trás.

A fotografia foi publicada pela primeira vez na revista francesa “Vu” e depois em outras publicações. Muito rápido virou um símbolo do conflito e do sacrifício humano na guerra. Mas a imagem enfrenta uma controvérsia sobre a veracidade e desde a sua publicação tem sido alvo de debates intensos sobre sua autenticidade.

Qual é a controvérsia? Para começar, a localização e as circunstâncias, porque originalmente ela teria sido feita perto de Cerro Muriano, na Espanha. No entanto, alguns estudos e investigações sugerem que a localização poderia ser outra, como Espejo. A principal questão é se a foto realmente captura o momento exato da morte de um soldado ou se foi encenada.

Robert Capa afirmou que a imagem era genuína, mas a ausência de documentação sólida e testemunhas diretas alimentou as dúvidas. Muitas análises foram conduzidas ao longo dos anos, incluindo estudos forenses e históricos. Algumas sugerem que a posição do soldado e o contexto da foto não são consistentes com um ferimento fatal. Além disso, foram encontradas fotos adicionais de soldados em posições similares que sugerem que poderiam estar posando.

Relatos de pessoas próximas do fotógrafo durante a Guerra Civil Espanhola, incluindo outros jornalistas, às vezes contradizem a narrativa oficial. Há quem afirme que Robert Capa frequentemente pedia aos soldados que posassem para ele. Mas mesmo com a controvérsia, “Falling Soldier” teve muito impacto. A foto se tornou um ícone do fotojornalismo de guerra, simbolizando a brutalidade e o sacrifício inerentes aos conflitos armados.

A controvérsia levantou questões importantes sobre a ética no fotojornalismo, incluindo a responsabilidade dos fotógrafos em representar a verdade e a linha tênue entre documentário e encenação. Há um fato importante: a imagem ajudou a consolidar a reputação de Robert Capa como um dos grandes fotojornalistas do século XX, embora a controvérsia tenha, em parte, manchado o seu legado.