Tinha prometido não escrever mais sobre a candidatura de Udo Dohler. Mas é difícil. Fui surpreendido (acho que fomos todos) por um filme em que o candidato aparece rodeado de crianças, a fazer o papel de avozinho carinhoso, atencioso e preocupado com o futuro. Eis um tema que deveria incomodar as tais “pessoas de bem”. Há muito a dizer sobre a presença de crianças em propaganda – ainda mais propaganda política. E salientaria três pontos que parecem saltar aos olhos: o legal, o publicitário e o ético.
Quanto ao aspecto legal, não sou jurista e posso errar. No entanto, sei
que o uso de crianças em propaganda política – e não só – é proibido nas
democracias desenvolvidas. Na Europa ocidental, por exemplo, nem pensar. O Brasil até tem regulamentação, mas com pouca
aplicação prática. As muitas zonas cinzentas nas leis e o atraso cultural do país abrem caminho para políticos menos escrupulosos, que não respeitam o
óbvio: as crianças são incapazes de compreender o contexto e não podem ser
instrumentalizadas na política.
No entanto, mesmo o cidadão comum pode encontrar argumentos nas leis, a
começar pela própria Constituição Brasileira, que define trabalho infantil como
as tarefas realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 anos.
E mais: o artigo 242 do
Código Eleitoral diz que a propaganda não deve “empregar
meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública,
estados mentais, emocionais ou passionais”. Alguém tem dúvidas de que esse é o caso no
filme do candidato? Mas deixemos as leis para os juristas.
Não é preciso um expert em comunicação para saber que a função das crianças
no filme de Udo Dohler é comover e trazer simpatia (criar os tais “estados mentais,
emocionais ou passionais” da lei). É coisa de marqueteiro. Em
termos técnicos, as crianças servem como “marcador somático”. O quê? É uma teoria
desenvolvida pelo neurocientista António Damásio, professor da Universidade do
Sul da Califórnia, nos EUA, depois integrada nas técnicas de publicidade (em
especial o neuromarketing).
Da forma mais simples possível: os marcadores – armazenados no cérebro
– fazem a associação a estímulos anteriores. É por isso que
imagens de bebês, filhotes de cães ou gatinhos, por exemplo, fazem tanto
sucesso na internet. A maioria das pessoas associa essas imagens a coisas agradáveis.
É o mesmo com as crianças. O candidato tira proveito da associação às boas
sensações que as imagens de crianças causam nos eleitores. Mas não passa de simples truques dos marqueteiros.
E por fim temos o aspecto que parece ser o mais relevante: a questão
ética. Se Udo Dohler não vê impedimentos éticos em se servir de crianças para ganhar
eleições, então está o caldo entornado. Quem usa crianças para se beneficiar
politicamente não pode, em hipótese alguma, dizer que tem as mãos limpas.
Porque não tem. O candidato pode contar com a falta de informação dos
eleitores. Mas como homem público não pode negligenciar uma questão que é motivo de preocupação no
âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente. O assunto é sério.
Ademais, há muitas perguntas a fazer. E fico a imaginar a
dificuldade dos assessores para explicar. As crianças receberam? É trabalho
infantil. As crianças não receberam? É exploração infantil. Os pais permitiram?
Um político não pode fazer vistas grossas para a irresponsabilidade paternal. E,
por fim, a pergunta de um milhão de dólares. De onde vêm as crianças? De uma agência de atores e figurantes? Se for esse o caso, a responsabilidade trabalhista seria da
agência. Mas, mesmo assim, o monstrinho da falta de ética ainda estaria a repousar no colo de Udo Dohler.
Legalidade. Publicidade. Ética. Para alguns pode parecer apenas um filme de campanha política. Mas para outros - e espero que a maioria - vai parecer um caso de uso indevido da imagem de crianças. Enfim, é uma ideia infeliz.
Legalidade. Publicidade. Ética. Para alguns pode parecer apenas um filme de campanha política. Mas para outros - e espero que a maioria - vai parecer um caso de uso indevido da imagem de crianças. Enfim, é uma ideia infeliz.