quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Se não mora em Joinville, não pode dar palpite








POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Se não mora aqui, não pode dar palpite”. É uma crítica recorrente aqui no blog (e era também no AN enquanto lá estive), feita por pessoas não se cansam de usar o argumentum ad hominem. Ou seja, em vez de rebaterem um argumento com outro argumento preferem desqualificar o autor, no meu caso por morar em outro país. O provincianismo não surpreende, porque vem de gente que vive mentalmente aprisionada entre Garuva e Barra Velha.

Ora, num mundo onde as fronteiras se esfumaram, a experiência do “estrangeiro” deve ser absorvida e aproveitada. É o que os povos civilizados fazem. Mas não é algo que aconteça em Joinville, uma cidade que em termos culturais (e estou a falar da “cultura alma coletiva” de Guattari) prefere viver orgulhosamente isolada e atrasada (é só ver tudo o que envolveu o Plano Municipal de Educação para perceber essa opção).

A questão das latitudes nunca pareceu importante e por isso sempre evitei discuti-la. Mas a divulgação do HFI - Human Freedom Index (Índice de Liberdade Humana), no início desta semana, abre caminho para uma discussão. A liberdade humana está intimamente relacionada com a vivência democrática. É o que permite entender as diferenças de mindset entre pessoas que vivem no Brasil e pessoas que vivem em outros países.

Posições de Brasil e Portugal no Índice de Liberdade Humana
A arte apresentada neste texto mostra as posições de Portugal (onde vivo) e do Brasil (onde passo apenas um mês por ano). O estudo considera inúmeros fatores que, no final, permitem estabelecer os coeficientes de liberdade pessoal e de liberdade econômica dos países analisados. A diferença é abissal: Portugal está em 25ª e o Brasil em 82º.

O que isso permite inferir? Ora, nos países mais desenvolvidos o ideário da democracia é respeitado, introjetado e projetado para a sociedade. Nas democracias já consolidadas, os valores tendem a ser sempre afirmativos. No Brasil isso demora a acontecer, porque há muitas forças retrógradas a negar os valores democráticos. É só ver o que se passou no último domingo: as pessoas saíram às ruas contra alguma coisa (a negação) e não por uma proposta construtiva (a afirmação).

E Joinville? Um dia desses o arquiteto e cartunista Sandro Schmidt, integrante do coletivo Chuva Ácida, escreveu na sua página de Facebook que “Joinville está se tornando uma das cidades mais conservadoras, reacionárias, hipócritas e moralistas do Sul do Brasil”. E foi corrigido nos comentários, porque as pessoas não concordam com o “está se tornando”. O fato é que a cidade vive um histórico déficit de democracia e de liberdade humana.

Ah... desculpem pela opinião. Afinal, se não vive em Joinville não pode dar pitaco.


É a dança da chuva.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

A meritocracia e os corpos (roliços)

POR SABRINA IDALÊNCIO

A meritocracia não discrimina. Seja o montante da sua conta bancária ou o tamanho das suas calças, lá está ela. Em uma farmácia qualquer, após adquirir suplementos alimentares proteicos, a mocinha classe mérdia universitária se pesa satisfeita. A mesma satisfação de quando escolhe roupas novas. Eis o resultado de uma rotina de atividades físicas e alimentação bem balanceada. Nada vem de graça. Até as curvas do corpo representam uma conquista.

A moça ainda não ultrapassou os 25 anos, exala saúde perfeita e contabiliza zero caso de obesidade na família. Tem tempo para planejar e preparar as próprias refeições, embora não lave as próprias roupas, muito menos o banheiro que usa. Observa uma moça de formas arredondadas que aparenta idade semelhante à sua na fila do Subway (depois de tanto esforço ela merece fast food!). A gorda carrega consigo uma criança também acima do peso. A moça reflete. Eles nem deviam estar aqui, a menos que seja pra pedir salada, pensa. Que exemplo essa mãe pensa que está passando à criança? Pergunta-se a moça sem filho algum.

Repara quando até o menino pede um lanche com mais recheios que o dela. Absurdo! E a mãe não fica nem um pouco atrás... como conseguem. Aqui ignora-se a rotina da família, seus hábitos e a herança genética. Gente gorda não merece comidas gostosas. Não merece roupas bonitas. Não merece relacionamentos felizes. Lembrou-se do desgosto quando via pessoas com quem acabara de se relacionar logo aparecendo com meninas mais gordinhas. Cadê o bom gosto que tinha quando estava com ela, tão empenhada e cuidadosa?


É assim que a meritocracia dos corpos funciona. Gente gorda não merece amar, ser amada, ser feliz, comer bem. O único tópico da pauta dessas pessoas precisa ser uma reeducação alimentar aliada a treinos pesados – como se ser gordo fosse sinônimo direto de má alimentação e sedentarismo. Pela meritocracia, gente gorda não merece viver bem porque não se esforça o suficiente.

...Cabeça Mole.


Os estereótipos nos atingem


POR FELIPE CARDOSO

Nós, humanos, costumamos nos rotular a todo o momento. Faz parte da construção da nossa identidade e da construção da identidade do grupo do qual convivemos. A identidade está ligada à diferença. Uma depende da outra.

Eu me identifico como negro, pois não sou branco ou indígena. A partir dessa construção nos situamos e passamos a conviver com as diferenças existentes na nossa sociedade.

O nosso pré-conceito nos faz resumir algo ou alguém em características que são, geralmente, propagadas de geração em geração. A partir daí, tornam-se parte do imaginário popular e que, por falta de conhecimento, transformam-se em verdade absoluta, senso comum – por conta da repetição – e sofrem grande resistência ao ser questionado e contrariado.

Exemplo:

“Os indígenas não costumam tomar banho, são preguiçosos, só gostam de pedir esmolas”.

Quais indígenas?

Nossa falta de conhecimento nos faz reduzir e agrupar tudo em um lugar só. Nossa falta de vontade em tentar conhecer e entender o próximo nos deixa confortáveis para resumir tudo o que nos é apresentado como diferente.

Não sabemos a diversidade da população indígena existente no Brasil. As diferenças no idioma, da cultura, nos locais em que vivem. É mais confortável ver filmes, novelas ou programas que retratam com a visão “de fora” e nos dizem como são e o que fazem. Podemos ver as mesmas atitudes como no caso das favelas e do continente africano, por exemplo. Vistos como algo negativo, sem valor, carente, um olhar depreciativo.

Visão feita, na maioria das vezes, por homens, brancos, heterossexuais, cisgêneros, detentores dos veículos de comunicação de massa, presença majoritária na política representativa, detentores do capital financeiro, capazes de ter muita influência na educação, na literatura, na música, na representação, dentre outros meios que acabam atingindo e influenciando os trabalhadores.

A partir desse poder é que são mostradas essas visões do “diferente”. Por meio da ótica branca. Daí são criados e propagados os estereótipos:

O índio preguiçoso, só sabe fazer a dança da chuva, usar cocar, fazer cara de brabo, conjugar verbos utilizando o “mim”, chamando todos de “cara pálida”...

O negro como subalterno, como o ser engraçado, exótico, hipersexualizado, desdentado, pobre, ignorante, violento, malandro...

O homossexual como escandaloso, pervertido, fútil, efeminado ou masculinizado...

A mulher como um ser não pensante, dependente, sentimental, frágil, objeto sexual, dentre outros...

Nordestinos são vistos como pobres, preguiçosos, carentes, dentre outros adjetivos depreciativos por alguns sulistas que defendem a separação do país.

São raros os estereótipos positivos para esses grupos sociais. A maioria dos estereótipos positivos costuma ficar para os homens, brancos, heterossexuais, cisgeneros. Eles são civilizados, inteligentes, responsáveis trabalhadores, pagadores de impostos. Constroem sua imagem positiva,  reduzindo e marginalizando os “diferentes”, os “outros”.

A construção dessa imagem começou com o imperialismo, quando os europeus decidiram se lançar em busca de novos territórios para conquistar. Para poder explorar os “diferentes”, tiveram que rebaixá-los para, depois, marginalizá-los.

Hoje, ainda vemos a propagação desses estereótipos e vemos as suas perversas consequências.

Recentemente, um material de divulgação contendo dicas de segurança, distribuído pela Polícia Militar Paulista, nas escolas da cidade de Diadema (região do Grande ABC), continha em suas ilustrações, um personagem negro representando o criminoso:

“O que era para ser um informativo com dicas de segurança pública virou alvo de críticas, por reforçar preconceito e racismo”.

A cartilha foi entregue a diversas crianças que podem não ter recebido um contraponto crítico a respeito dessa representação. Possivelmente, tomarão como verdade a imagem e na medida em que forem crescendo, aquela representação se tornará regra, pois não será apenas em uma cartilha em que verão o negro como criminoso. Nos programas policiais sensacionalistas, nos filmes, nas novelas, nas obras literárias. Assim, formarão a suas opiniões pautadas em uma cultura racista e que dificilmente receberá uma contraposição do que lhe foi apresentado desde a infância.

Podemos conferir o resultado desses estereótipos com os aumentos dos linchamentos em praça pública, incentivado por alguns “jornalistas”, ou com alto índice de jovens negros mortos ou presos sem ao menos serem ouvidos. Os famosos autos de resistência.

Está naturalizado. E muitas pessoas querem que continue da mesma forma, pois está dando lucro e não é pouco.

Em tempo de muita polêmica com a aprovação do Plano Municipal de Educação, cabe o questionamento e a problematização dessa visão do diferente. Isso tudo parte da falta de conhecimento, de uma visão singular, estereotipada, repetida, naturalizada e tomada como regra sem contestação ou confirmação teórica. A xenofobia contra nordestinos (que tem doses cavalares de racismo), o preconceito com as religiões de matrizes africanas (influenciadas por muitas igrejas cristãs e também por conta do racismo), a homofobia, o machismo, o autoritarismo, a repressão, as desigualdades sociais tem que ser pauta diária na vida das crianças e jovens brasileiros, principalmente das escolas públicas, que serão os mais atingidos por essas opressões.

O senso crítico, a autonomia do saber, o estímulo para que os estudantes comecem a ter um olhar mais analítico da realidade em que vivem, no contexto em que estão inseridos, sabendo reconhecer seus privilégios ou desvantagens já deixaram de ser importantes. Tornaram-se necessários. E nenhum grupo religioso ou político deve ter poder para proibir esses direitos.

Precisamos de mais pessoas pensando no coletivo. Pensando em pessoas. Precisamos de menos pessoas pensando no bolso, no lucro, em interesses particulares. Isso é o temor de alguns. Talvez pela ameaça que represente.

Pessoas com senso crítico questionam, não aceitam tudo como verdade absoluta. Têm outra visão. Não caem em falácias tão facilmente. Têm autonomia para interpretar. Isso preocupa muitos os políticos, porque, assim, mais pessoas entenderão dos direitos, não apenas dos deveres. Preocupa muitos líderes religiosos, pois as pessoas aprenderão a separar os ensinamentos espirituais de picaretagem, discursos de ódio e lucro exacerbado.

Os estereótipos são violências simbólicas que dão aval para que as violências físicas sejam praticadas. E, ao serem repetidas em vários momentos de nossas vidas, se naturalizam e se tornam corriqueiras diante os nossos olhos, de maneira com que não reagimos, não questionamos, não problematizamos. Apenas aceitamos, sem o sentimento de culpa.

“Sempre foi assim. Será sempre assim”.

O genocídio da população negra. Os ataques homofóbicos. A violência doméstica. A violência contra as mulheres. Está naturalizado. São motivos de piada, chacota.

Na sociedade do espetáculo, na nossa vida líquida, em que tudo é passageiro, a violência passa despercebida, desinteressante, até que nos atinja. A partir daí procuramos tomar uma atitude, tentamos ganhar voz, problematizar, mudar. Antes disso, colocar-se no lugar do outro e procurar dar credibilidade e visibilidade ao discurso do oprimido, nem pensar. Nos dos outros é refresco.

Para encerrar, deixo um vídeo humorístico que fala justamente sobre as questões dos estereótipos, mas com outra ótica. De pessoas negras falando para pessoas brancas coisas que costumam ouvir com certo tipo de frequência. Talvez esse seja um bom experimento para que as pessoas tentem desenvolver o sentimento de empatia. Talvez.