POR ALIUSCHA MARTINS
O ano de 2013 pode ter parecido atípico para muitos brasileiros e um bocado de gente pode ter estranhado aquele povo que sempre pareceu indolente e alheio ao universo político ter tomado as ruas com tanto furor. Eram tantas as vozes, o enfrentamento tão evidente, que a tevê nem pode disfarçar o seu rubor. A única coisa que não saltava aos olhos e que seguia seu eterno curso era o esforço desmedido de criminalizar os movimentos sociais. E a despeito disso não faltará em nosso vasto mundo gente pra dizer que a truculência do estado é produto do vandalismo do povo. Mas basta lembrar que até prisão por porte de vinagre a gente teve que engolir pra desfazer a fantasia de que o estado está a serviço do povo. Na semana passada um garoto foi condenado à cinco anos de prisão por carregar na rua duas garrafas de desinfetante, essa decisão tão descabida, incoerente e desconexa podia parecer o resultado impensado de um fenômeno que de repente assolou a nossa história. Um episódio triste que foge à regra. Mas não. Culpar e violentar o cidadão ou a parcela da sociedade que quer apontar as suas contradições é um ato orquestrado pelos sujeitos que tem seus privilégios atrelados a essas desigualdades. Definitivamente importa dizer que o jogo que a nossa sociedade brinca não é o da dança da cadeira, em que ocupam os lugares os meninos mais atentos e preparados para isso. Nesse tabuleiro a gente é soldado de batalha protegendo general e “O Rei Mandou” é brincadeira de lei nesse nosso quintal.
Ainda que com vigor se insista para exceder Joinville do mapa, ela não está no céu que é um lugar mágico, ela pertence ao chão e por isso mesmo foi também palco da nossa atrocidade. Em agosto, mesmo advertida pela sabedoria popular de que este é um mês de desgostos, eu participei de uma manifestação do Movimento Passe Livre. Não apenas por uma concordância linguística já que, estando de passagem pelo mundo, tudo aquilo que enuncia a liberdade recebe minha atenção. Nem porque acho chique as propostas europeias para o transporte coletivo. Mas porque, caminhando pela cidade eu sofro os problemas das iniciativas individuais e compreendo a urgência de se pensar a coletividade. Acompanho a algum tempo os debates propostos pelo Movimento Passe Livre e estou convencida da urgência de estabelecermos outros modelos de transporte para recriar uma nova dinâmica social. Nessa manifestação que foi marcada por muita chuva, cansados de empunhar cartaz sem fazer eco, achamos prudente comparecer e contribuir com a reunião do conselho da cidade. O conselho era uma formalidade exigida pela burocracia do estado que, inclusive, já havia sido considerado irregular pela própria burocracia do estado. Não fomos convidados ao conselho, nem nossa participação era aceita, por isso nos fizemos entrar. Esse conflito quebrou uma dobradiça da porta do salão da Harmonia Lyra, local onde a reunião acontecia.
Não só a logística da cidade mas também o modelo de representação política proposto pelo MPL é uma grande contribuição para o nosso tempo. Cada matéria veiculada pelo aparelho midiático em junho deste ano que tentava apontar um líder ao movimento, nos chamava atenção para o fato de que não estamos acostumados a nos representar e, por força do hábito, nos querem governar e não nos permitem que sejamos protagonistas nem sequer da nossa própria rebeldia. E me ocorre agora que, talvez seja essa a afronta maior, o que leva um advogado como Álvaro Cauduro de Oliveira, assessor jurídico e conselheiro da cidade em representação à Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL), e sócio proprietário da Sociedade Harmonia Lyra a processar aleatoriamente uma pessoa por uma dobradiça quebrada não é a sua preocupação com a porta (que já estava consertada no dia seguinte sem maiores danos) mas a ameaça verdadeira de que estamos inclinados a não nos sujeitarmos à ordem. Estamos dispostos a nos representarmos e a ocuparmos os lugares que nos são devidos sem que lhe sobrem poltronas estofadas. O processo judicial movido por seu Cauduro faz cada um de nós alvo de sua violência, da violência dessa gente poderosa que faz uso do aparato do estado para a manutenção de seu poder e enquanto a justiça se ocupa de uma dobradiça de porta as empresas Gidion e Transtusa seguem fazendo uso do dinheiro público sem nem sequer apresentar decentemente suas planilhas de custo. E parece que a licitação para o transporte público em Joinville vai realmente sair, no dia da semifinal da copa do mundo. Coincidência?
Aliuscha Martins é professora e militante.