segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Tragédia em Campinas: “Chega!! Ela tem que pagar pelo que fez”















POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Um dos danos colaterais do mundo digital é que os idiotas ganharam voz. Ok... numa democracia eles também têm direito à expressão. É democrático, mas perigoso. A idiotia espalhada pelos facebooks, twitters ou mesmo nos comentários de blogs acaba virando uma mantra no qual muitos se reveem. E repetem. Todas essas vozes juntas ganham uma ressonância que faz parecer um discurso, quando é apenas algaravia. 

Tudo isso para falar no terror em Campinas e no homem que matou a ex-mulher, o filho e mais 10 pessoas durante a passagem de ano. Como quase sempre acontece nos casos de suicidas, o cara deixou uma carta. Os manuais de redação ensinam que não se deve publicar o conteúdo de bilhetes ou cartas de suicidas. Mas neste caso faz sentido. Afinal, o homem demonstra ter um perfil muito próximo do que se tem nas redes sociais. 

Era mal informado. “... na verdade já estou preso na angustia da injustiça, além do que eu preso, vou ter 3 alimentações completas, banho de sol, salário, não precisarei acordar cedo pra ir trabalhar”.

Era alienado. “Cadê os ordinários dos direitos humanos? Estão sendo presos por ajudar bandidos né? Paizeco de bosta”.

Era machista. “A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias. As mulheres sim tem medo de morrer com pouca idade”.

Era violento. “...vou levar o máximo de pessoas daquela família comigo, pra isso não acontecer mais com outro trabalhador honesto”.

Era louco de pedra. “Agora vão me chamar de louco, más quem é louco? Eu quem quero justiça ou ela que queria o filho só pra ela? Que ela fizesse inseminação artificial ou fosse trepar com um bandido que não gosta de filho”.

Pensava ser honrado (mais que os outros). “Eu morro por justiça, dignidade, honra e pelo meu direito de ser pai!”.

O assassino tem um perfil igual ao de milhares de pessoas que, todos os dias, inoculam desinteligência no espaço digital. E forma-se um caldo de cultura de intolerância, iliteracia e ódio. O pior é que essa gente de bem crê ter uma moralidade acima dos outros. Nem é preciso ir longe: lembram do assassino do ambulante do metrô, que disse não ser “má pessoa”? Eis o perigo. Há uma óbvia corrosão dos valores. 

Culpa das redes sociais? Claro que não. Há outros fatores, claro. Mas é inegável que elas são o espelho de uma sociedade cada vez mais débil e dominada pela ignorância. Porque a cultura do ódio tornou-se parte do código genético das redes sociais. E transportam um risco potencial. Porque, como escreveu o assassino, “na verdade somos todos loucos, depende da necessidade dela aflorar!”.

É a dança da chuva.


Reação típica dos lunáticos da cultura do ódio. Um culpa a esquerda, outro quer armar a população



Els caganers... ou os cagões



POR JORDI CASTAN

Os presépios são típicos desta época do ano. Reproduzem a imagem fantasiada do momento e do lugar em que de acordo com a tradição nasceu Jesus. Há países e culturas em que a construção do presépio ganha sofisticação e requintes de obra de arte, mas também são uma forma de expressar a cultura popular. Na Catalunha, Espanha, é comum encontrar escondido em algum dos cantos do presépio o “caganer” (em português, o cagão), uma figura icônica do presépio popular. A criança achar o “caganer” era um atrativo adicional a fascinação que exerciam os presépios.




Hoje além do “caganer” vestido com a barretina tradicional, o mercado oferece centenas de alternativas, de políticos a atores, de jogadores de futebol a personagens do imaginário popular. Há nestes “caganers” modernos uma representação do protesto, a imagem dos que fazem ou fizeram cagadas. A escolha de políticos não é aleatória e não há homenagem neste caso.  Há na figura do “caganer” tradicional essa mistura tão comum na cultura mediterrânea de irreverencia com o respeito, de juntar num mesmo momento a seriedade com o deboche.

É este equilíbrio pendular entre os dois extremos o que permite que num mesmo presépio convivam anjos anunciando o nascimento de Jesus e “caganers” escondidos detrás de uma moita. É a mais pura reprodução da nossa realidade quotidiana: enquanto uns vivem a sua vida diária, há os que não podem evitar fazer o que todos os “caganers” fazem. Hoje os “caganers” representam mais, representam o protesto da sociedade com os que fizeram cagadas. Convivem, assim, os dois conceitos: a crítica e a homenagem. 





Há na figura do “caganer”, mostrado com as calças abaixadas e defecando, uma forma de protesto frente ao “status quo” e suas normas e regulamentos. O “caganer” é a figura fora de lugar na imagem idílica do presépio, é o "outsider". A sua figura rompe a imagem idílica da paisagem perfeita, a sua presença humaniza e dessacraliza a representação do nascimento de Jesus.

O objetivo inicial de reproduzir a imagem da manjedoura, da Virgem e de São José, acompanhados do boi e do asno que, de acordo com a tradição cristã, seriam a fiel imagem daquela noite de dezembro faz mais de dois mil anos. A imaginação, a habilidade, a técnica e os meios disponíveis tem sofisticado os presépios que contam com rios de aguas límpidas, com pastores e seus rebanhos, com agricultores e suas hortas e campos de cultivo, com caravanas de reis magos que cada dia se aproximam um pouco mais para que sua chegada coincida com a noite do 5 de janeiro, quando de acordo com a mesma tradição os reis chegaram a Belém e fizeram as suas oferendas. Hoje graças ao "espírito natalino" convivem lado a lado, em alguns países, o Papai Noel e Melchior, Gaspar e Balthazar.

Os brinquedos são a versão moderna do ouro, a mirra e o incenso, mas a lógica sempre foi que os mesmos reis magos que trouxeram suas oferendas para o "menino deus", seguissem desempenhando a mesma tarefa e presenteassem a todas as crianças com os seus presentes. A disputa entre a crescente pressão comercial do natal liderada pelo omnipresente Papai Noel deve se considerar vencida pelo marketing mais agressivo e bom velhinho. Até porque as crianças de hoje não querem ficar esperando quase duas semanas a que cheguem os reis e seus pagens montados em camelos, que na verdade são dromedários, trazendo os brinquedos.

Em tempos em que o tempo é dinheiro, ninguém gosta mais de três velhinhos que chegaram atrasados. As crianças e os adultos seguem buscando os “caganers” escondidos, ou nem tanto, num canto do presépio. Até porque não faltarão nunca os que vivem fazendo o que os “caganers” fazem com tanta propriedade.