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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Estupro no BBB?


POR CECÍLIA SANTOS

“Ensine os homens a respeitar, não as mulheres a temer” (cartaz de uma das Marchas das Vadias)

O caso dominou as redes sociais nos últimos dois dias: no último sábado, no reality show Big Brother Brasil exibido pela Rede Globo, houve uma festa, pessoas ingeriram bebidas alcoólicas, os participantes Monique e Daniel flertaram, a moça ficou embriagada e foi dormir. Até aí tudo bem. Exceto que uma cena gravada na madrugada de sábado para domingo mostra Daniel deitado na mesma cama que Monique, movimentando-se embaixo do edredon, supostamente penetrando ou bolinando a moça, que aparenta estar inconsciente. Não cabe ao público decidir, como numa votação para eliminar um participante da casa, o que realmente ocorreu. É uma investigação policial que vai apurar os fatos. O que eu quero discutir é como a violência sexual é vista e como muitos comentários que circularam na internet tentaram minimizar ou justificar o suposto estupro que aconteceu diante das câmeras da maior emissora de TV do país.
Nem sempre a violência sexual é reconhecida como tal, porque geralmente a mulher é culpabilizada, sob o argumento de que teria provocado, bebeu demais ou estava usando roupas justas ou curtas. O cúmulo da insensibilidade é dizer: “ela estava pedindo para ser estuprada”. Como assim? Isso não existe; nenhuma mulher se arruma para sair pensando: “oba, hoje eu vou ser estuprada”.
Infelizmente a violência sexual é corriqueira. Um rapaz e uma garota se aproximam na balada. Rola uma atração, o clima esquenta, eles se beijam, trocam carinhos. Pode ser que a menina não queira ir além, e isso ela pode decidir livremente. Mas de repente o garotão mimado, que não sabe ouvir um não como resposta, decide extravasar seu desejo sexual à força. Vários vídeos circularam pela internet nos últimos meses mostrando pit boys agredindo moças em casas noturnas. E a maioria dos casos de estupro não é sequer notificada. 
Nós, mulheres, temos todo o direito de estabelecer nossos limites e dizer até onde queremos ir. Não são as mulheres que precisam agir para manter sob controle o desejo sexual dos homens. Não vamos abolir a prática da paquera e da ficada como medida de precaução baseada no pressuposto de que todo homem é um estuprador em potencial. A mulher pode e deve demonstrar desejo sem ser moralmente julgada por isso, sem ser considerada inferior à mulher que não o faz. Nenhuma atitude pode ser entendida como um convite à violência, ao estupro, à intimidade não consensual. 
Beber demais não é crime, mas fazer sexo não-consensual com uma pessoa embriagada é. Minimizar o que aconteceu alegando que Monique não deveria ter bebido ou que pode até ter gostado de ser penetrada e bolinada enquanto dormia é endossar a violência. Sem contar que o cara que se aproveita sexualmente de uma pessoa inconsciente, além de criminoso é um tremendo perdedor. Quando eu assisti ao vídeo do BBB com a cena do edredon, ao ver a moça inerte, eu só conseguia pensar que aquele sujeito não consegue pegar uma mulher acordada, que consinta em transar com ele. Não importa o que aconteceu antes ou depois: se naquele momento Monique não estava em condições de consentir com o ato sexual, então o que ocorreu ali foi um estupro, que indiscutivelmente é crime. 
A atitude da Rede Globo (uma concessão pública, vale lembrar) tem sido a de minimizar e até compactuar com um crime. A direção do programa tinha o dever de ter interferido e tomado providências imediatamente. Preferiram abafar o caso, afinal a atração movimenta valores astronômicos e é patrocinada por grandes empresas nacionais e multinacionais. Num primeiro momento, o apresentador Pedro Bial chegou a referir-se à cena dizendo que “o amor é lindo”. Não, Bial, estupro não tem absolutamente nada a ver com amor; aliás, é bem o contrário.
Terminada a exibição do programa levado ao ar ontem, segunda-feira, Pedro Bial avisou que Daniel havia sido expulso por ter infringido o regulamento do programa, sem no entanto fazer qualquer referência à violência sexual que o modelo cometeu. Considerando que o programa é visto por milhões de pessoas que não têm acesso à internet ou às redes sociais, muita gente ficou sem entender o motivo real da expulsão. Na versão da emissora, violência sexual virou violação das regras do programa. Como era de se esperar, a Globo relativizou o estupro e varreu o assunto para debaixo do tapete. Afinal, nas palavras do próprio Bial, “o show tem que continuar”. 
O que não pode continuar é a situação de violência a que todas as mulheres estamos sujeitas neste país. Não vamos esperar que aconteça com alguém perto de nós para nos indignarmos. Vamos orientar nossas filhas a tomar cuidado, mas principalmente ensinar nossos filhos a respeitar todas as mulheres em qualquer circunstância. Não vamos compactuar com a atitude do babaca perdedor da balada, que não aceita um não de uma menina. 
O rapper norte-americano Jay Z, pai da pequena Blue Ivy Carter com a cantora Beyoncé, nascida há poucos dias, disse em entrevista à New Musical Express, revista britânica de música, que vai abolir a palavra “bitch” e outras que depreciam a condição feminina de suas letras, prometendo também proteger a filha. Mesmo com todo o discurso político e social do hip hop, embora tenha sido um militante muito ativo na campanha do presidente norte-americano Barack Obama e seja casado com uma cantora que se assume feminista, Jay Z é conhecido pela misoginia das letras de seus raps. Sendo uma figura influente no show biz, esperamos que o rapper esteja contribuindo para melhorar a forma como mulher é representada na cultura pop.


O vídeo do rap “Glory” com Jay Z (com a participação especial da bebezinha): 


Cecília Santos é tradutora, blogueira, feminista e adora perambular por sua cidade, São Paulo.