POR CECÍLIA SANTOS
“Ensine os homens a respeitar, não as mulheres a temer”
(cartaz de uma das Marchas das Vadias)
O caso dominou as redes sociais nos últimos dois dias:
no último sábado, no reality show Big Brother Brasil exibido pela Rede Globo,
houve uma festa, pessoas ingeriram bebidas alcoólicas, os participantes Monique
e Daniel flertaram, a moça ficou embriagada e foi dormir. Até aí tudo bem.
Exceto que uma cena gravada na madrugada de sábado para domingo mostra Daniel
deitado na mesma cama que Monique, movimentando-se embaixo do edredon,
supostamente penetrando ou bolinando a moça, que aparenta estar inconsciente. Não
cabe ao público decidir, como numa votação para eliminar um participante da
casa, o que realmente ocorreu. É uma investigação policial que vai apurar os
fatos. O que eu quero discutir é como a violência sexual é vista e como muitos
comentários que circularam na internet tentaram minimizar ou justificar o
suposto estupro que aconteceu diante das câmeras da maior emissora de TV do país.
Nem sempre a violência sexual é reconhecida como tal,
porque geralmente a mulher é culpabilizada, sob o argumento de que teria
provocado, bebeu demais ou estava usando roupas justas ou curtas. O cúmulo da
insensibilidade é dizer: “ela estava pedindo para ser estuprada”. Como assim?
Isso não existe; nenhuma mulher se arruma para sair pensando: “oba, hoje eu vou
ser estuprada”.
Infelizmente a violência sexual é corriqueira. Um
rapaz e uma garota se aproximam na balada. Rola uma atração, o clima esquenta,
eles se beijam, trocam carinhos. Pode ser que a menina não queira ir além, e
isso ela pode decidir livremente. Mas de repente o garotão mimado, que não sabe
ouvir um não como resposta, decide extravasar seu desejo sexual à força. Vários
vídeos circularam pela internet nos últimos meses mostrando pit boys agredindo
moças em casas noturnas. E a maioria dos casos de estupro não é sequer
notificada.
Nós, mulheres, temos todo o direito de estabelecer
nossos limites e dizer até onde queremos ir. Não são as mulheres que precisam
agir para manter sob controle o desejo sexual dos homens. Não vamos abolir a prática
da paquera e da ficada como medida de precaução baseada no pressuposto de que
todo homem é um estuprador em potencial. A mulher pode e deve demonstrar desejo
sem ser moralmente julgada por isso, sem ser considerada inferior à mulher que
não o faz. Nenhuma atitude pode ser entendida como um convite à violência, ao estupro,
à intimidade não consensual.
Beber demais não é crime, mas fazer sexo não-consensual
com uma pessoa embriagada é. Minimizar o que aconteceu alegando que Monique não
deveria ter bebido ou que pode até ter gostado de ser penetrada e bolinada
enquanto dormia é endossar a violência. Sem contar que o cara que se aproveita
sexualmente de uma pessoa inconsciente, além de criminoso é um tremendo
perdedor. Quando eu assisti ao vídeo do BBB com a cena do edredon, ao ver a moça
inerte, eu só conseguia pensar que aquele sujeito não consegue pegar uma mulher
acordada, que consinta em transar com ele. Não importa o que aconteceu antes ou
depois: se naquele momento Monique não estava em condições de consentir com o
ato sexual, então o que ocorreu ali foi um estupro, que indiscutivelmente é
crime.
A atitude da Rede Globo (uma concessão pública, vale
lembrar) tem sido a de minimizar e até compactuar com um crime. A direção do
programa tinha o dever de ter interferido e tomado providências imediatamente.
Preferiram abafar o caso, afinal a atração movimenta valores astronômicos e é
patrocinada por grandes empresas nacionais e multinacionais. Num primeiro
momento, o apresentador Pedro Bial chegou a referir-se à cena dizendo que “o
amor é lindo”. Não, Bial, estupro não tem absolutamente nada a ver com amor;
aliás, é bem o contrário.
Terminada a exibição do programa levado ao ar ontem,
segunda-feira, Pedro Bial avisou que Daniel havia sido expulso por ter
infringido o regulamento do programa, sem no entanto fazer qualquer referência à
violência sexual que o modelo cometeu. Considerando que o programa é visto por
milhões de pessoas que não têm acesso à internet ou às redes sociais, muita
gente ficou sem entender o motivo real da expulsão. Na versão da emissora, violência
sexual virou violação das regras do programa. Como era de se esperar, a Globo
relativizou o estupro e varreu o assunto para debaixo do tapete. Afinal, nas
palavras do próprio Bial, “o show tem que continuar”.
O que não pode continuar é a situação de violência a
que todas as mulheres estamos sujeitas neste país. Não vamos esperar que aconteça
com alguém perto de nós para nos indignarmos. Vamos orientar nossas filhas a
tomar cuidado, mas principalmente ensinar nossos filhos a respeitar todas as
mulheres em qualquer circunstância. Não vamos compactuar com a atitude do
babaca perdedor da balada, que não aceita um não de uma menina.
O rapper norte-americano Jay Z, pai da pequena Blue
Ivy Carter com a cantora Beyoncé, nascida há poucos dias, disse em entrevista à
New Musical Express, revista britânica de música, que vai abolir a palavra “bitch”
e outras que depreciam a condição feminina de suas letras, prometendo também
proteger a filha. Mesmo com todo o discurso político e social do hip hop,
embora tenha sido um militante muito ativo na campanha do presidente
norte-americano Barack Obama e seja casado com uma cantora que se assume
feminista, Jay Z é conhecido pela misoginia das letras de seus raps. Sendo uma
figura influente no show biz, esperamos que o rapper esteja contribuindo para
melhorar a forma como mulher é representada na cultura pop.
O vídeo do rap “Glory” com Jay Z (com a participação especial da
bebezinha):
Cecília Santos é tradutora, blogueira, feminista e adora perambular por sua cidade, São Paulo.