segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Udo Dohler e o moinho: entre a preguiça e a falta de coragem


POR JORDI CASTAN
O nosso gestor municipal tem todo o seu tempo ocupado. Passa os dias entre a articulação da sua quimérica candidatura ao governo do Estado, não fazer nada por Joinville e vistoriar o setor de hortifrúti do Angeloni. Não fosse isso, me atreveria a lhe propor uma visita a Santa Fé, na Argentina. Há na cidade um moinho que lembra o nosso em tudo. Também foi abandonado pela empresa que o operava. E também surgiram mil propostas amalucadas envolvendo especuladores imobiliários e o poder público.

A diferença é que lá decidiram pôr as mãos na massa e, com pouco orçamento mas muita criatividade, fizeram o que precisava ser feito. Incorporaram o moinho ao patrimônio da cidade. Incorporaram não quer dizer o que se fez aqui com a Cidadela Cultural ou com a antiga prefeitura na Max Colin. Não se trata só de comprar e deixar abandonado. Ou converter o espaço num cortiço sem dono. Incorporar quer dizer primeiro ter um projeto.  E depois gente capaz de levar o projeto adiante. É aí que a coisa complica sempre em Joinville. Não há projetos, quando há estão mal feitos, ou são inviáveis e não há propostas para o uso posterior do espaço.




O máximo que os nossos gestores fazem, além de ficar o dia inteiro sentados olhando a maré subir e descer o Cachoeira, é imaginar que alguém vai implantar lá um shopping ou um prédio comercial. O que, claro, geraria mais IPTU e empregaria alguns vendedores, repositores ou caixas se for um supermercado. Convenhamos que criatividade e inovação não são características pelas quais Joinville tenha se destacado nos últimos anos.

A lógica cartesiana do contador de centavos só entende de cortar, depenar, desmantelar, derrubar, demolir. A cultura e o meio ambiente têm sido as áreas mais duramente castigadas por esta gestão. O que, alias, é bem significativo. O preço dessa visão retrógrada sairá caríssimo para as gerações futuras. Mas essa é outra historia.

O que fazer com o velho moinho? Que temos a aprender de Santa Fé? Muito. Primeiro é uma cidade com pouco mais de 500.000 habitantes, banhada por três rios, um deles o Paraná e outro o Salado. Uma cidade que convive com enchentes enormes e gravíssimas, das que matam gente e causam enormes prejuízos econômicos. 

Mas os santafesinos criaram parques nas margens dos rios para que tenham por onde crescer sem destruir ou minimizando ao máximo os estragos. Entenderam que não é uma boa ideia ocupar várzeas e fundos de vale. Também têm o costume de preservar e valorizar seus marcos históricos e, neste sentido, o projeto de converter o velho moinho Marconetti numa escola de Artes, Música, Dança, Cerâmica e num espaço para exposições e eventos é um sucesso. Só as escolas que formam o chamado Liceo Municipal reúnem mais de 2600 alunos, incluindo também os dos cursos de idiomas gratuitos oferecidos pelo município.



Assim, o que inicialmente era uma área degrada e prevista para projetos imobiliários que implicavam a demolição do velho moinho, hoje é uma ampla área verde, que acolhe a centenas de alunos. O projeto de Santa Fé Cidade é mais amplo mais ambicioso e faz da cidade o maior polo de indústrias criativas da Argentina, é uma referencia para América Latina.

Ah... mas voltemos a Joinville. O nosso problema, além da nossa incapacidade de projetar a cidade para o futuro, é que pensamos pequeno. O mais arrojado a que chegamos é discutir mão inglesa ou mudança de mão. Até nossos vereadores tem palpites da dar sobre o tema. Usamos a falta de dinheiro como desculpa para nada fazer, quando na verdade o verdadeiro problema é a inépcia e a incompetência. E estou começando a incluir nesta lista de motivos a preguiça. Porque não acredito que esta falta de iniciativa seja covardia. Aí sim seria uma vergonha que uma cidade como Joinville se apequene na mão de gente covarde, sem coragem.




A proposta é simples. Mandem alguém a Santa Fé. A passagem é bem mais econômica que ir para Europa ou para os Estados Unidos e as semelhanças entre as duas realidades são muito mais próximas. A diferença é o espírito dos homens públicos de lá, gente que enxerga longe e tem coragem. 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Em Santa Catarrina não falta dinheirro, falta xestón


POR BARÃO VON EHCSZTEIN
Voll geil! Até que enfim. A nossa querrida prefeito decidiu chutar a balde. E falou, lá na xornal, que quer renunciar e deixar o Prefeiturra em april. Mas nón precissam ficar tristes e nem chorrar, xoinvilenses, porque é tudo parra melhor: a nossa querrida prefeito vai virrar a nossa querrida governador. Podem comemorrar, catarrinenses, porque agorra foceis vón ter uma governo de verdade. Ein prosit! Uma brinde.

Eu nón gosto de me meter nos coisas da política. Das ist nicht mein Bier. Nón é o meu cervexa... ops... nón é o meu praia. Mas agorra o coisa anda. Todo mundo sabe que em Santa Catarrina não falta dinheirro, falta xestón. E com uma xestor profissional, que resolveu todas as problemas de Xoinville, vamos construir a Santa Catarrina dos próximas 30 anos. É como a xente diz no meu querrida Alemanha: “Abwarten und Tee trinken”. Esperre e veja...

Xá imaginaram? Agorra Santa Catarrina vai ter o mesma estilo de governo que transformou Xoinville num citade de primeira mundo. Se a nossa querrida prefeito – e futurra governador – promete, pode acreditar porque vai cumprir. Parra começar, vai acabar esse wasserkopf, aquele administraçón cheia de comissionadas inúteis na governo da Estado. Como ele fez em Xoinville. Ein Schwein haben! É muita sorte, catarrinenses.

Mas tem um coisa que me deixa encafifado. O que vai acontecer com Xoinville quando a nossa querrida prefeito for ser governador? Quem assume o Prefeiturra é a vice. E dessa mato nón sai Coelha. Xente, eu sou conservadorra, mas fico parrecendo uma anjinho perto dele. A Coelha é muito... como é aquela palavra que as kommunist gosta de ussar... ah... lembrei... reacionárria. Nón tem “alle Tassen im Schrank"... nón joga com a barralho todo.

Mas vamos esquecer a Hase, porque o horra é de comemorar. É Santa Catarina a caminho da primeiríssima mundo (mas é melhor nón ir pela Santos Dumonte). Viva a nossa querrida prefeito. Viva a nossa futurro governador. Achtung, palim, palim! Vai ser uma tremendo sucesso, porque nón tem segreda, aqui é trabalho.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A Notícia - 95 anos.


O Rio, a insegurança pública e a irresponsabilidade política


Muito se comentou, nos últimos dias, sobre o temor expresso pelo general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, de que os militares enfrentem uma nova Comissão da Verdade caso atuem no Rio sem nenhum respaldo jurídico excepcional. A preocupação, manifestada durante reunião do Conselho da República e da Defesa Nacional, se soa uma excrescência à primeira vista, deixa de sê-lo se lida com mais vagar.

Para uma instituição que prendeu, estuprou, torturou e assassinou sem nunca ter sido chamada à responsabilidade, mesmo o trabalho de uma Comissão cujos resultados práticos foram próximos ao zero pode constranger de alguma forma sua costumeira impunidade. Mas o comentário de Villas Bôas ganha outro sentido se o colocamos lado a lado à entrevista do Ministro da Justiça, Torquato Jardim, concedida ao Correio Braziliense.

Ele parece não ter dúvidas quanto a natureza da intervenção, nem tampouco sobre os seus efeitos. De acordo com Torquato Jardim, “não há guerra que não seja letal”, e quando se trava uma guerra tão peculiar, que ele classifica de “assimétrica”, todos são potencialmente inimigos, mesmo uma criança bonitinha, de 12 anos, que ninguém sabe o que faz depois que sai da escola.

A retórica belicista não é nova em se tratando das comunidades periféricas, onde se acumulam cadáveres assassinados em incursões policiais eugênicas. E tampouco é novidade que sua população seja tratada como inimiga: durante a cobertura televisiva dos confrontos entre manifestantes e policiais em junho de 2013, por exemplo, um ex-membro do BOPE, Rodrigo Pimentel, censurou um soldado que descarregou uma metralhadora com tiros para o alto porque “uma arma de guerra, uma arma de operação policial em favelas, não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano…”.

No discurso de um ministro que se diz da Justiça, esse tipo de retórica ganha outros significados. O primeiro e mais imediato é que, sob o pretexto de combater o crime, em especial o chamado crime organizado, e diminuir os índices de violência, o Estado está a declarar guerra contra uma parcela de sua população – ou talvez seja mais correto dizer, está a aprofundar uma guerra já declarada há muito tempo.

Mas há coisas não ditas nas entrelinhas do discurso de Torquato Jardim que merecem nossa atenção. Ela denota, de um lado, a total ausência de planejamento, um conjunto de intenções, alguma coisa que sinalize uma preparação por parte do governo a fundamentar a intervenção. O despreparo pós-decreto caminha pari passu e é o complemento à total opacidade dos governos, federal e carioca, sobre os números que justificam a intervenção.

Uma guerra contra os pobres – É verdade que parte da cidade do Rio de Janeiro vive um cotidiano de violências por vezes extremo, incluindo a violência policial. Mas não se trata de um problema limitado ao Rio, que ocupa o 12º lugar nos índices de homicídio por 100 mil habitantes. Em janeiro, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, e o governador Pezão, descartaram intervenção do exército durante o carnaval, solicitada pelo prefeito Marcelo Crivella, alegando que o efetivo policial era suficiente para garantir a ordem.

Além disso, não há informação sobre os resultados efetivos de operações anteriores em que as Forças Armadas interviram, ainda que mais pontualmente, na cidade. Especificamente no caso da ocupação do Complexo de Favelas da Maré, entre 2014 e 2015 – no governo Dilma, portanto –, além dos 600 milhões consumidos aos cofres públicos e a chacina que resultou na morte de nove moradores, nada mais sabemos.

Se a intenção era estrangular o tráfico, não funcionou, e tampouco há indícios de que funcionará agora. Antes pelo contrário, mesmo que consiga eventual e provisoriamente fragilizar os traficantes que mandam nos morros e o Comando Vermelho, a intervenção tende a fortalecer o grupo paulista PCC, cuja atuação aparentemente mais organizada e ramificada que o CV, já conseguiu uma vez parar uma cidade do tamanho de São Paulo.

No fim das contas, o que sobra é a motivação política, tomada a expressão aqui no seu pior sentido. De um lado, o governo Temer consegue com ela jogar para a frente a votação da Reforma da Previdência, promessa que fez ao mercado mas que estava a ter dificuldades em cumprir. Além disso, proporciona um espetáculo midiático bem ao gosto de muitos eleitores, alguns sinceramente amedrontados pela percepção que têm de estarem sitiados pela violência, outros simplesmente dispostos a apoiar qualquer medida autoritária e truculenta.

Para um governo que amargava índices abaixo de vergonhosos de aprovação, pode ser a chance de uma sobrevida, principalmente se a intervenção conseguir que o tráfico e os índices de violência recuem temporariamente. Mesmo que eles voltem a subir e que tudo retorne à “normalidade”, as eleições já terão passado, e Temer e seus cúmplices têm a chance de, talvez, manterem seus mandatos. E esse parece ser o único projeto que realmente interessa. Que ele seja pontuado pelo sofrimento de corpos e vidas precárias, não importa, porque nunca importou, a um governo que os considera e trata como inimigos.


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Tem pão com mortadela grátis na Havan

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Vocês viram o vídeo do empresário Luciano Hang, das lojas Havan, por causa de uma manifestação numa de suas lojas em Chapecó? O homem não gostou nadinha. Em tom um tanto belicoso, diz que o povo “quer disciplina, quer ordem, quer progresso, quer trabalho, não quer essa bagunça”. Tem ironia aí. As lojas têm aquelas breguésimas estátuas da liberdade... mas nada de liberdade de manifestação.

O ponto alto do filme é o momento em que ele oferece pão com mortadela e carteira de trabalho aos manifestantes. O alvo é certinho. Todos sabemos para quem é o pão com mortadela. A carteira de trabalho, diz o empresário, é para o radicais que passam anos e anos sem trabalhar (parece que os 12% de desempregados não entram na conta). E arremeta: “o trabalho dignifica”. Ufa! Quase saiu um “o trabalho liberta”.

Tem lapso freudiano no discurso. “Vocês que ficaram 14 anos no poder e ainda não arranjaram emprego, ainda não arranjaram casa, ainda não arranjaram terra? Vão trabalhar, malandragem”, ironiza. Opa! Devemos entender que, para o empresário, o poder só serve se for para se dar bem? Ora, ora, ora. Isso não é bonito vindo de uma pessoa que, já se sabe, tem pretensões políticas.

Se fosse num país desenvolvido, a empresa teria problemas (brand building is a bitch), porque a sociedade civil estaria rotinada para responder. Os cidadãos e os consumidores. Mas não no Brasil. Não em Santa Catarina. Há um fator crucial a considerar: Luciano Hang tem grana. E em sociedades atrasadas isso é fonte de poder. Quanto mais dinheiro, mais poder. O empresário pode fazer os discursos de ódio que quiser sem ser contestado.

Muita gente vive acagaçada pelo poder do dinheiro. E a mídia catarina, que vive de pires na mão e é sempre subserviente às verbas publicitárias das empresas, também cuida para não fazer marolas. O assunto vai passar batido e não haverá contraditório. Ninguém tem coragem de peitar o homem e contra-argumentar. Aliás, se houver alguma manifestação, será de apoio. Discursos para o lumpencoxinhato são sempre bem recebidos em Santa Catarina.

É a dança da chuva.


No Rio, um manual de sobrevivência em tempos de intervenção

POR ET BARTHES

Um sinal inequívoco de uma sociedade doente. No Rio de Janeiro, três jovens negros sentiram a necessidade de criar um vídeo com dicas de sobrevivência em tempos de intervenção. O publicitário Spartakus Santiago, o repórter Edu Carvalho e o youtuber AD Junior são os autores deste "Intervenção no Rio: Como Sobreviver a uma Abordagem Indevida".

As razões são as que todos sabemos e para as quais alguns fazem ouvidos moucos. Por serem negros estão mais expostos às arbitrariedades, à violência e aos excessos da polícia. O vídeo faz uma série de recomendações de como agir em caso de abordagens indevidas por parte dos que têm a “autoridade” do lado. “Estamos aqui a fazer este vídeo porque, infelizmente, nós negros somos sempre vítimas de abusos e retaliações", diz Edu Carvalho.



segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Proteção



POR SANDRO SCHMIDT

Udo Dohler e a Joinville das Maravilhas




POR JORDI CASTAN
Já quase não queda quem acredite no triunfalismo dos discursos monocórdicos do prefeito Udo Dohler. Os discursos fantasiosos tem sempre mais empulhação que realidade. E não é que o prefeito insiste, teimosamente, em afirmar que ele e sua equipe estão planejando a Joinville dos próximos 30 anos. Quem não consegue planejar, nem entregar a Joinville dos próximos 30 meses vai conseguir 30 anos? O discurso soa a falsidade, é pura balela.

Há ainda, nessa afirmação, um ponto de requintada maldade. É pouco provável que possa estar aqui para colher os frutos da sua desastrada gestão. Essa Joinville fantasiosa imaginada pelo prefeito será a Joinville dos nossos filhos e netos, a cidade da próxima geração. Uma cidade pior, menos verde, mais cinzenta e com menos qualidade de vida que a atual. E, com certeza, muito diferente que a propalada pelo camelô de ilusões.

Antes que ele outros prefeitos também planejaram outra Joinville diferente desta de hoje. A nossa cidade é o resultado de planejar mal, de não executar o planejado, de pensar pequeno. E o pior:  de iludir permanentemente um eleitorado crédulo e de contar com a amnésia do eleitor local que insiste em votar, repetidamente, em encantadores de asininos, em mercadores de sonhos e em mitômanos profissionais.

Para lembrar um pouco da Joinville de ontem e compará-la com a de hoje proponho dar uma olhada neste vídeo, a linguagem triunfalista e exageradamente positiva, parece-se muito com a atual. Daí para frente cada um deve tirar suas próprias conclusões.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A intervenção no Rio de Janeiro: crônica de um desastre anunciado?


Ainda é demasiado cedo para medir, em toda a sua extensão, os desdobramentos da intervenção federal na área de Segurança Pública no Rio de Janeiro, anunciada hoje (16) de manhã pelo presidente Michel Temer. Na prática, com a medida as polícias militar e civil, o Corpo de Bombeiros e o sistema carcerário cariocas deixam de estar sob o comando do governo estadual e ficam sob a responsabilidade do general do Exército Walter Braga Netto, indicado para ser o interventor federal.

Embora já em vigor, a intervenção precisa ainda passar pelo Congresso Nacional. Se aprovada – e é improvável que não seja –, dá ao governo federal plenos poderes sobre a segurança pública carioca até o dia 31 de dezembro. O objetivo, de acordo com o decreto, é “por termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”; mas em que pese a austeridade dos discursos oficiais, há razões para duvidar da eficiência e das promessas contidas no decreto.

Esboço aqui, rapidamente, algumas delas.

O exército já está nas ruas – Embora o decreto presidencial de hoje amplie e aprofunde a presença do exército, transferindo à instituição a administração de toda a estrutura e do aparato da segurança pública do Rio de Janeiro, na prática a atuação do exército nas ruas do estado, e especialmente da capital, não é inédita.

Em pelo menos duas ocasiões – a ocupação do Complexo do Alemão e da Maré, respectivamente em 2010 e 2014 –, as Forças Armadas foram solicitadas para dar suporte à segurança pública. Mas de forma mais “branda” (e as aspas aqui são importantes) e indireta, o emprego do exército para lidar com o problema vem sendo prática recorrente há anos, sem nenhuma melhoria aparente.

Os entusiastas da intervenção alegam que com plenos poderes, os resultados aparecerão, mas isso tampouco é certo – antes pelo contrário. Entre outras razões, porque soldados e oficiais militares não são treinados nem estão habituados a lidar com a violência urbana. E quem o diz, entre outros, é o próprio Comandante do Exército, o General Vilas Boas, que já declarou mais de uma vez que a função do exército não é policiar as ruas, além de ver com preocupação o uso crescente de tropas militares para lidar com o problema.

E isso leva a outra questão, não menos importante. Em entrevista hoje cedo no Palácio do Planalto, o governador do Rio, Fernando Pezão, afirmou que o estado tem “urgência” porque somente com as polícias estaduais, o estado não está “conseguindo deter a guerra entre facções”. Ninguém em sã consciência duvida que, hoje, o crime organizado exerce um poder que alguns afirmam paralelo ao do Estado, e não apenas dentro das prisões.

Por outro lado, uma intervenção militar pode ser um tiro no pé e agravar ainda mais um quadro já delicado, e por pelo menos duas razões. A primeira delas é a derrota, flagrante, do Estado na chamada “guerra às drogas”, visível nos resultados diametralmente opostos obtidos com os vultosos investimentos públicos em políticas repressivas.

Nem o suposto endurecimento no combate ao tráfico, com a Lei de Drogas sancionada em 2006 por Lula, nem o encarceramento em massa – o Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas da China e dos Estados Unidos –, reverteram ou mesmo estabilizaram o índice crescente de violência urbana nem, tampouco, o poder exercido pelas facções criminosas que Pezão e Temer pretendem combater com a intervenção do Exército.

Além disso, a presença do exército não apenas nas ruas, mas no comando efetivo das forças policiais, pode tensionar ainda mais as já frágeis relações de força entre as facções e as autoridades públicas, elas próprias desprestigiadas com a medida. Isso poderia resultar em novos e mais violentos confrontos entre traficantes, policiais e exército, com as comunidades, e especialmente as mais pobres, pagando um preço ainda mais alto do que já vêm pagando há décadas pelo descaso dos poderes públicos.

Na ausência de políticas, uma medida política – Um último comentário, antes de encerrar esse texto. A intervenção federal cumpre também diferentes funções políticas, não menos significativas. Uma, mais imediata, é tentar contornar a votação da Reforma da Previdência. Embora Temer tenha dito que, se necessário, suspende temporariamente a intervenção, à boca pequena circulam rumores de que o decreto presidencial permite ao governo empurrar para a frente a votação, bastante controversa especialmente em ano eleitoral, sem precisar assumir publicamente a derrota.

Uma segunda é o espetáculo proporcionado com o anúncio da medida e o seu impacto principalmente midiático, e que pode – pelo menos é o que esperam Temer e seus cúmplices – melhorar a imagem mais que desgastada do presidente. Não é difícil supor a razão: amedrontados que estamos pelos altos índices de violência, somado ao medo nossa crescente tolerância para com a violência institucional, a intervenção federal no Rio de Janeiro tende a ser lida, por uma parcela não desprezível da população, como uma medida bem vinda, inflando os miseráveis índices de aprovação do atual governo.

Mas o caráter politico, e populista, da intervenção, serve principalmente para encobrir a ausência de uma política efetiva de segurança pública, uma falta, é forçoso reconhecer, que não é responsabilidade exclusiva do governo Temer. A situação do Rio de Janeiro, embora talvez mais grave, não é única; em maior ou menor grau, principalmente as grandes cidades pagam o alto custo da execução de políticas públicas de segurança no mínimo equivocadas, ou simplesmente inexistentes.

Nas últimas décadas, principalmente, assistimos a uma completa degradação da força policial. Cada vez mais militarizadas, as polícias em praticamente todos os estados sofrem com salários defasados e, em alguns casos, também atrasados; péssimas condições de trabalho; quase nenhum treinamento; diminuição do efetivo, etc... –, um quadro que não é diferente, à óbvia exceção da militarização, para as polícias civis. As estatísticas são preocupantes: apenas no Rio de Janeiro, 134 PMs foram assassinados no ano passado.

Apesar do fracasso das políticas implantadas até aqui, todos os governos, um após o outro, insistem em manter tudo como está, indiferentes ao fato de que políticas de segurança pública serão mais efetivas e bem sucedidas se não se limitarem ao aumento do aparato repressivo. Além de melhorar as condições de trabalho dos policiais e demais agentes de segurança, é preciso pensá-la a partir de sua integração com outras esferas e políticas governamentais, promovendo ações que minimizem, por exemplo, os índices escandalosos de desigualdade social, certamente não a única, mas uma das principais responsáveis pela crescente violência.

Além disso, é preciso rever urgentemente a condução da política antidrogas, assumir a derrota das medidas de “guerra” e pensar em maneiras mais eficientes de estrangular o tráfico. A melhoria dos serviços públicos é uma alternativa, na medida em que o acesso à educação e saúde, por exemplo, pode diminuir a influência de grupos criminosos, que em muitas comunidades carentes preenchem a falta de equipamentos públicos de qualidade, responsabilidade dos governos. Não menos importante, é preciso discutir a sério a legalização e regulamentação do consumo de drogas; uma discussão difícil, sem dúvida, mas cada vez mais urgente e necessária.

Casaldáliga, um profeta moderno na defesa dos injustiçados


POR DOMINGOS MIRANDA
A Espanha ofereceu ao mundo mentes brilhantes que ajudaram a humanidade a crescer intelectualmente, tais como Cervantes, Goya, Garcia Lorca, Picasso ou Gaudi. E também Pedro Casaldáliga, um nome que nos toca muito, pois há 50 anos reside no Brasil. Este bispo emérito de São Félix do Araguaia completa 90 anos neste 16 de fevereiro e tem uma história marcada pela defesa do povo humilde que o rodeia. Este catalão franzino não demonstra a sua coragem fantástica, mas enfrenta uma das elites mais sanguinárias do campo, armado apenas com a coragem, a fé e a vontade de combater a injustiça, Diante das várias tentativas de homicídio contra ele, o papa Paulo VI, seu amigo, disse: “Ameaçar Pedro é como ameaçar Paulo”.

Para sentir a gravidade da situação, o melhor é  ler o depoimento de dom Pedro quando o padre jesuíta João Bosco Penido Burnier foi assassinado, em 1976, na delegacia da pequena cidade de Ribeirão Cascalheira, em Mato Grosso. “[...] quando chegamos a Ribeirão logo nos sentimos atingidos por um certo clima de terror que pairava sobre o lugar e as redondezas. A morte do cabo Félix (...), muito conhecido pelas suas arbitrariedades e até crimes (...) trouxe ao lugar um grande contingente de policiais e, com eles, a repressão arbitrária e até a tortura (...) Duas mulheres estavam sofrendo torturas na delegacia - um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta e sob as unhas (...) Era Margarida Barbosa, irmã de Jovino (que matara o cabo Félix por ter aprisionado os filhos dele), e Santana, esposa de Paulo, filho de Jovino, violentada por vários soldados apesar de estar de resguardo (...) Eram mais de 18h e os gritos delas se ouviam da rua. ‘Não me batam’. Resolvi ir à delegacia interceder por elas. O padre João Bosco, que estava lendo e rezando (...), fez questão de me acompanhar”.

E continua: “Quando chegávamos no terreno da pequena delegacia local, cercada por arame (...) os quatro policiais nos esperavam enfileirados, em atitude agressiva. Entramos pela cerca de arame que ia ser também cerca de morte. Eu me apresentei como bispo de São Félix, dando a mão aos soldados. O padre João Bosco também se apresentou, e tiveram aquele diálogo de talvez três ou cinco minutos, com insultos e ameaças até de morte por parte deles. Quando o padre João Bosco disse aos policiais que denunciaria aos superiores dos mesmos as arbitrariedades que vinham praticando, o soldado Ezy Ramalho Feitosa pulou até ele, dando-lhe uma bofetada fortíssima no rosto. Tentei cortar o impossível diálogo: ‘João Bosco, vamos (...)’ O soldado descarregou no rosto do padre um golpe de revólver, e, em um segundo gesto, fulminante, o tiro fatal, no crânio”.

Em 1971, Pedro Casaldáliga foi escolhido bispo da prelazia de São Félix do Araguaia, a maior do país em extensão, com 150 mil km quadrados e uma população de posseiros e indígenas. Os grandes latifundiários praticavam a lei do mais forte neste Brasil profundo, distante dos grandes centros e dos meios de comunicação. As execuções eram normais e os cadáveres desciam boiando pelos rios. O bispo antecipou em quatro décadas o papa Francisco, abriu mão dos paramentos e vestia-se como os agricultores pobres. Numa ocasião, o automóvel que estava quebrou e ele chegou numa venda na beira de estrada pedindo ajuda, dizendo que era bispo. O comerciante olhou aquele homem com chapéu de palha, sandália de couro e roupa comum e respondeu: “Se você for bispo eu sou o papa”.

Durante a ditadura, os militares tentaram expulsá-lo cinco vezes do Brasil e era vigiado 24 horas por dia, acusado de ser comunista.  A alta cúpula da igreja católica também o incomodava. Em 1988, o papa João Paulo II o chamou ao Vaticano e recebeu séria advertência por seu apoio à revolução sandinista, na Nicarágua, e por sua militância na Teologia da Libertação. Quando completou 75 anos pediu sua demissão como bispo. A Santa Sé recomendou que abandonasse o país, mas ele decidiu continuar morando numa casa simples em São Félix do Araguaia para prestar ajuda àquela população sofrida. Em 2012, a Polícia Federal o afastou da região temporariamente porque se descobriu que os invasores de terras indígenas tinham plano para matá-lo.

Nascido na Espanha, na Catalunha, numa família de camponeses pobres, ainda criança presenciou os horrores da guerra civil, entre 1936 e 1939. Em 1952 foi ordenado padre claretiano e com 40 anos de idade decidiu, voluntariamente realizar trabalho missionário no Brasil. Ao longo dos anos colocou no papel seus dotes intelectuais, tendo editado cerca de 40 livros de poesia, de antropologia e de história. A tevê espanhola fez um filme sobre a sua vida, “Descalço sobre a terra vermelha”, premiado pela Academia Catalã de Cinema como o melhor filme para a tevê. O escritor Leonardo Boff afirmou que Casaldáliga tornou-se um nome universal por causa de sua luta em defesa da libertação do pobre, da dignificação da mulher e por uma igreja mais democrática.

Os 90 anos do bispo deveriam ser mais reverenciados pela grande mídia por seu papel na defesa dos oprimidos. Mas, como um profeta bíblico, o objetivo do religioso não visa chamar atenção sobre si, mas libertar a terra da injustiça. Ele está entre os três religiosos que mais se destacaram na segunda metade do século 20 no Brasil, ao lado de dom Hélder Câmara e dom Paulo Evaristo Arns. Nós só temos a agradecer à Catalunha por este presente. Obrigado.