segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O festival gastronômico das taturanas


POR JORDI CASTAN


Num ciclo que se repete todos os anos, estamos às portas da primavera. A florada dos ipês que anuncia o novo tempo. As chuvas de setembro para aguar os desfiles pátrios. A mudança de temperatura. Os entardeceres mais tardios. Tudo faz parte desse quadro.


Neste ano, uma invasão de embiras, taturanas ou lagartas, dependendo da terminologia utilizada por uns ou outros, tem alterado a bucólica chegada da primavera. Ao ponto de converter-se num acontecimento na vila, com direito a capa de jornal, a entrevistas a especialistas e ao cancelamento de eventos oficiais.


Quem imaginaria que as ditas lagartas, com  o seu ciclo anual natural, gerariam tanto alvoroço? Que programas de rádio lhes dedicariam tanta atenção e que até nas redes sociais o tema seria amplamente debatido. No seu processo metamórfico, as futuras borboletas nunca ganharam tanta visibilidade. E olhem que não há nada de novo na sua presença na vila, pois são tão joinvilenses como os alemães, os mestiços, quanto os italianos ou os paranaenses.


A única diferença este ano tem sido a quantidade, maior que em outras primaveras. E também o fato de que, pela falta de outros manjares mais sofisticados, tenham escolhido as figueiras da Beira Rio para sua escapada gourmet. 

Como não é segredo que a cada ano temos menos árvores, a sua dieta está ficando cada vez mais reduzida. É por isso que as futuras borboletas escolheram a Beira Rio e a converteram num gigantesco estacionamento de "food trucks" verdes. Fizeram lá o seu Festival Gastronômico.

A situação ganhou tanto destaque mais pela inépcia do poder público,  que não soube ou não quis reagir a tempo e de maneira correta, do que pela real gravidade da infestação. Quem ainda tem jardim ou quintal em casa sabe que embiras, lagartas e outros insetos são mais ativos nesta época do ano e que depois se converterão em coloridas borboletas a enfeitar ruas e jardins. 

Há contudo um alerta. De que há um desequilíbrio cada vez maior nas cidades. Ou seja, de que nos espaços urbanos este desequilíbrio é mais evidente e que, com menos árvores e a redução da cobertura verde, a vegetação que teima em sobreviver esta cada dia mais ameaçada.

Mas há outro ponto relevante a destacar. É que se uma praga de lagartas pode paralisar esta administração, devemos nos preocupar o que possa vir a acontecer no dia que haja um problema verdadeiramente grave na cidade.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Barulho da Chuva #12


Em nome de Aylan


Impossível não sentir um aperto no peito ao ver a imagem daquele pequenino ser humano, inerte, de bruços, morto, nas areias da praia de Ali Hoca, Turquia. Choca ver uma vida toda pela frente ser afogada pela infâmia da guerra, da fome, das perseguições, das ditaduras. Dói constatar que a humanidade regride em meio à “modernidade”.

Aylan Kurdi de apenas três anos, aquela pequena alma atirada com o rosto nas areias, morreu afogado junto seu irmão e sua mãe, após o naufrágio do bote no qual tentavam chegar a um local de paz. O que eles queriam? Apenas viver em paz.


Mas e amanhã, o que será? Todos despertarão em nossas casas, lares, reunidos com familiares, vamos ao trabalho, à escola, à universidade, aos namoros, baladas, viagens. Em algum lugar do mundo o pai sofrerá a dor das perdas, das vidas que lhe fugiram das mãos. E nós, faremos o que?
Até quando seremos hipócritas, cínicos, em chorar por Aylan e tantos outros mortos e que ainda morrerão, quando apontamos culpa para meninas estupradas porque estavam em uma festa – “mulheres de bem não andam nestes lugares” -, ou olharemos para os haitianos que andam por nossas ruas a buscar o sustento para sua gente, que está distante sofrendo a fome, a falta do marido, do filho, da mulher, da companhia que nos faz humanos.
Sim, somos indignados contra a violência das ruas, pelos refugiados que vivem na miséria em acampamentos, mas não queremos os haitianos em nossa cidade, nosso país. Eles nos tiram empregos, podem vir a formar um exército revolucionário que vai tomar as nossas casas, propriedades, comer nossas criancinhas...


A imagem do menino morto na praia mostra que o algo que não queremos ver, assumir: o capitalismo, as religiões e a ignorância privaram as pessoas de viver num mundo livre e igualitário.

Nós, que nos autodenominamos seres humanos, nos comovemos, nos indignamos, até choramos por ele e mais dezenas de milhares de imigrantes, populações inteiras que abandonam seus lares por opressão política, religiosa, fanatismos que buscam pela violência da guerra, o poder. A vida de Aylan choca hoje, milhões.

Aguardaremos a próxima criança morta em uma praia, em uma praça, em um conflito qualquer? Sofreremos via redes sociais, bradaremos por poucos dias, denunciaremos “aqueles povos” que vivem guerreando, fugindo para a Europa, para a América do Norte, América Latina, para... o Brasil.

Nas redes sociais, hoje a seara onde vertem preconceitos, ofensas, falsos profetas, promotores da paz via ditadura militar, golpes para acabar com a corrupção (?!), líderes religiosos falsos que em nome de deus criminalizam a união de pessoas que só querem se amar e viver em harmonia, vemos também a falsa indignação.

Por isso, em nome de Aylan, morto na praia há quilômetros do seu lar, símbolo da ignorância e hipocrisia do mundo “moderno” em que vivemos, deixo aqui afirmações, provocações para mexer com você, indignado. Com você, homem e mulher de bem. Com você empresário do lucro acima de qualquer coisa. Com você, político e religioso (às vezes os dois em um) que move multidões em nome de deus e da verdade (?!). Com você mãe e pai, que veem nos filhos dos outros o erro, a perversão, a desonra. Pense se você não é um daqueles que:

- defende a paz, mas deseja ver um ser humano apodrecer na cadeia, inclusive crianças e adolescentes

- denuncia a prostituição, os maus costumes dos jovens, principalmente meninas, mas gosta muito das casas que oferecem noites de prazer

- está todos os domingos, ou qualquer dia, em uma igreja ou comunidade religiosa buscando a palavra de deus que prega o amor ao próximo, mas sai dali falando de alguém, agredindo filhos, mulher, marido

- vê um vagabundo em cada pessoa que usa drogas, lícitas ou não lícitas (afinal o que é isso?), mas tem amigos traficantes, usa só por diversão, às vezes...

- fala em liberdade como bem comum, mas pretende impor suas visões e crenças à força, seguindo os Kim Kataguiri e furiosos de movimentos vazios, ofendendo e agredindo quem não pensa como você...

- quer acabar com a violência, mas apoia linchamentos públicos, agressões policiais a quem quer que seja, tudo em nome da paz...?

Pense que naquela praia distante, de onde nos chegou apenas a foto do menino Aylan, uma criança indefesa, cheia de vida para correr pelas ruas, praças, realizar sonhos, ser feliz por longos anos, morreu também um mundo inteiro. Com ele morreu mais um pouca da nossa capacidade de sentir o outro de verdade, de desejar ao outro a felicidade, a liberdade, o direito de viver em qualquer lugar que se queira, sem opressões, preconceitos, violência.

Não deixe que a morte de uma vida seja apenas uma dor passageira. Indigne-se de fato, combata o que faz este mundo ficar pior, e parecido com o tempo das cavernas, da ignorância total. Em nome de Aylan, lute pela humanidade, faça a sua parte. Hoje foi ele, amanha pode ser você, seu filho, filha, pai, mãe, amigo, irmão... reflita e lute por um mundo melhor.

É assim, nas teias do poder...

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Uma camisa amarela, apesar da crise

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Na quinta-feira passada aproveitei para ir a um outlet perto de Lisboa (como fica perto de casa vou lá algumas vezes). Para quem não conhece, são shopping centers onde se encontram produtos de marcas famosas a preços mais baixos. Nike, Adidas, Asics, Dockers, Converse, Armani, Hugo Boss, Lacoste, Dolce Gabbana ou Puma. Enfim, o paraíso do consumo.

O centro comercial está quase sempre lotado. E há muitos brasileiros, sempre faladores e carregadíssimos de sacolas de compras. As estatísticas dizem que, lado a lado com os angolanos, os brasileiros são os consumidores mais ávidos, gastando, em média, 190 euros por visita. Ou seja, superam os europeus em termos de gastança. É natural a volúpia pelo consumo de marcas de luxo. O preço compensa.

Na semana passada, entrei na fila para pagar e o rapaz do caixa, praticamente escondido atrás de uma autêntica pilha de compras, pediu que eu esperasse. O cliente tinha ido buscar uma camisa. Um pouco depois o homem reapareceu com três camisas nas mãos e perguntou se havia outras cores, porque queria comprar mais.

Ora, a cena é comum e podia passar despercebida. Mas houve um momento curioso. A filha do homem achegou-se ao balcão, pegou numa camisa amarela e brincou com a mãe: “olha, o pai está comprando o uniforme para a Paulista”. A mãe sorriu, o pai pagou a conta e saiu em busca de novas lojas para usar o seu cartão de crédito.

Essa febre de consumo não é caso único. Já vi brasileiro a pagar alguns "micos consumistas". Enfim, não tenho qualquer pesquisa em mãos, mas usando o olhômetro sou capaz de afirmar que esses brasileiros são os mesmos que, no Brasil, vivem a reclamar que o país está a um passo do abismo e que assim não é possível viver.

E, claro, vestem camisas amarelas para ir à Paulista. Às vezes compradas na Europa.


É a dança da chuva.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O velho e conhecido “negacionismo”


POR FELIPE CARDOSO

Recentemente, foi publicado em vários veículos de comunicação e acabou viralizando na internet a notícia de que o neurocientista americano Carl Hart foi barrado por seguranças em um hotel de São Paulo, na noite de sexta-feira.

Em um vídeo publicado nesse sábado no site "Fluxo", Hart negou ter sido barrado. O neurocientista afirmou que, depois de chegar ao hotel, foi abordado por organizadores do evento em que palestraria. Os organizadores pediram desculpas a ele, porque, quando entrou no hotel, um segurança teria se aproximado para abordá-lo por “não parecer alguém que devia estar ali”.

“Não vi nada disso, mas a reportagem sobre o episódio viralizou e muitas pessoas vieram me pedir desculpas pela internet por causa do ‘comportamento dos brasileiros’”, afirma Hart.

Mesmo que o palestrante tenha questionado e apontado um grande racismo existente no Brasil, inclusive no local em que estava palestrando, parece que a confirmação de que o ato racista não aconteceu ganhou mais destaque. Acabou dando brecha para que os que não se importavam com a pauta da questão racial liberassem e destilassem mais ódio e encorajou mais racistas a praticarem mais atos. Mas, pior que isso tudo, deu mais espaço para que o velho e conhecido “negacionismo” brasileiro voltasse à tona.

“Viu só? Não somos racistas. Isso é coisa da cabeça das pessoas. Vamos continuar mantendo e propagando o racismo.”

Analisado de outra forma, podemos perceber, por meio do ocorrido, a maneira com que nós brasileiros enxergamos o racismo, achando que ele só acontece por meio da discriminação, de pessoa para pessoa. Não conseguimos observar que é um problema estrutural, cultural, social, político e econômico que está enraizado em nosso país. Como Hart afirma, “o racismo estrutural brasileiro não recebe qualquer destaque, nem indignação pública, quando dirigido a pessoas sem o destaque ou a posição que ele ocupa”.

Não precisamos de campanhas como #SomotodosMaju quando casos de discriminação atingem pessoas negras em destaque ou com uma posição financeira e profissional "superior" dos demais negros. Precisamos, de fato, ir na raiz do problema para conseguir acabar de vez com o racismo, para que todos os negros e negras não sofram mais com as opressões e as humilhações.

O problema brasileiro é o racismo, que foi construído e propagado há séculos. Para superá-lo, precisamos afirmar que ele existe e, assim, juntarmos força para combater e eliminá-lo.

Não é negando um problema que vamos escapar dele. É preciso coragem para encarar e superá-lo.

Para encerrar, devemos seguir o conselho do neurocientista Carl Hart:

“Por fim, o Brasil tem problema sério de discriminação racial. A indignação demonstrada neste momento deveria ser demonstrada também em relação ao tratamento dado a negros neste país. Precisamos apoiar quem vive à margem da sociedade e usar esta energia (de indignação) para algo bom.”