quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Mentiras que parecem verdades


POR VALDETE DAUFEMBACK

No ano de 2000, a filósofa Marilena Chaui, em oposição ao mito fundador verdeamarelismo e ao culto do patriotismo abstrato, escreveu que por questões  óbvias (diga-se a herança do período colonial e imperial refletida e reafirmada na República), não havia motivo para se comemorar os 500 anos de Brasil. No ocasião não foram poucas as vozes que se levantaram contra para expressar descontentamento sobre a postura da autora. 

A minha geração aprendeu na escola que tínhamos o dever de sermos patriotas, de revelar amor incondicional à Pátria, de respeitar a Bandeira Nacional, de saber “de cor” a letra do Hino Nacional, de marchar em pelotão pelas ruas, de nos fantasiarmos de soldadinhos ou de personagens históricas, independentemente se seus feitos contribuíram para ceifar vidas. Não podíamos sequer questionar a validade de estarmos em “sentido” na vila enquanto a bandeira era hasteada em ritmo preciso para chegar à ponta do mastro enquanto o Hino Nacional era entoado. Áh, que alívio trazia aquela ordem “debandar” no final da aula quando, novamente ao som do hino a bandeira era descida e dobrada para o rito do dia seguinte. 

Há quem diga sentir saudades daquele tempo por ter aprendido o sentido de patriotismo a partir desta obrigação repetida durante anos e anos na escola.

Desde menina, mesmo não achando graça nas operações matemáticas, costumava fazer as contas do tempo perdido em ano letivo com a repetição do mesmo ato no início e no fim de cada manhã durante a semana. 

Mas na minha comunidade rural a resignação fazia parte do patriotismo. Assimilar as cores da bandeira brasileira e sua relação com a natureza, a localização de cada estrela disposta no campo azul recortado pelo branco da paz, a máxima positivista “ordem e progresso” constituíam parte da matéria de prova, escrita com caneta tinteiro, com direito a um mata borrão para casos eventuais. O que se escrevia não se apagava. O que se aprendia se guardava como verdade. 

Ignorávamos, no entanto, que as cores da Bandeira Nacional têm origem na tradição de famílias nobres européias, que o verde simboliza a Dinastia de Bragança, a qual pertencia D. Pedro I e que o amarelo representa a Dinastia de Habsburgo, da família de D. Maria Leopoldina. O artista francês Debret foi contratado para desenhar o símbolo nacional após a independência do Brasil, inspirando-se em bandeiras militares de seu país. O círculo azul, em substituição ao Brasão Imperial, só aparece com a Proclamação da República. A ideia positivista era mostrar um cometa com a flâmula na cauda com os dizeres “Ordem e Progresso” transpassando o céu azul.  

Convém lembrar que o Brasil foi o único país da América Latina em que o próprio colonizador concedeu independência política à sua colônia, instalando, porém, a Monarquia, forma de governo que já estava em total decadência na Europa. Esta experiência também foi inédita na América Latina e que durou praticamente um século. 

Esta posição de “vanguarda do atraso e atraso da vanguarda”, no dizer do sociólogo Francisco de Oliveira, teve início desde o período colonial quando se tentou reproduzir o sistema feudal por meio das Capitanias Hereditárias, implantando o trabalho escravo em tempo de expansão capitalista mercantil. Diga-se, uma contradição aos tempos. Neste contexto, considera-se também que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão. 

Não há como negar que o sistema escravocrata deixou uma herança maldita de poder de uma elite raivosa, responsável pela classificação e exclusão social de parte da população brasileira, mediante justificativa da meritocracia. Por estas e por outras razões é que fica subentendida a necessidade de reflexão sobre comemorações no aniversário da Pátria. O sentido de patriotismo está para além das abstrações de mitos que se ingere sem conhecimento.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

VTNC


Fora, Hungria!

 
POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Budapeste foi um dos lugares que mais gostei de visitar. Não há uma razão clara, mas arrisco a dizer que talvez seja resultado de uma certa porção “terceiro mundo” da cidade. A capital húngara tem similaridades com muitas cidades brasileiras a que estamos habituados, por exemplo, apesar de ter muito mais história (vem desde o Império Romano).

Há um ou outro monumento mal conservado. Muitos sem abrigo nas ruas. Alcoólatras que se instalam sob as marquises dos prédios. Uma certa incivilidade (há lugares onde o cheiro de urina torna impossível respirar). Os transportes públicos são pouco convidativos. Mas o que assusta mesmo é haver uma extrema direita muito saliente, mesmo nas ruas.

É comum encontrar homens a ostentar sinais neonazistas (é verdadeiro o estereótipo do skinhead fortalhão, com roupas cheias de mensagens pouco amigáveis). Para ter uma ideia, em fevereiro a ultra-direita comemora o “dia da honra”, que marca o fim da batalha pela cidade na Segunda Grande Guerra, em 1945: húngaros e alemães juntos de um lado, soviéticos do outro.

Fora isso é um dos mais belos destinos da Europa Central. Tanto que o turismo representa cerca de 8% do PIB da Hungria. O lado bonito de Budapeste faz com que os visitantes não prestem muita atenção a essas mazelas. Afinal, a xenofobia não é contra os turistas ocidentais, que têm dinheiro, mas contra “inimigos” atávicos (é uma miscelânea onde cabe tudo, de judeus a comunistas).

O fato é que sempre tive o projeto de voltar. Não tenho mais. E a decisão veio com o anúncio, há algum tempo, da construção de uma cerca de 175 quilômetros na fronteira com a Sérvia. Não pela cerca em si, porque elas podem ser contornadas (e são). Mas por representar o extremar das posições do governo de Viktor Orbán, que tem dado repetidas provas de não ser amigo da democracia.

É difícil opinar sobre a questão dos refugiados, porque é muito complexa. Mas se há certezas possíveis, uma delas é que não se resolve o problema levantando mais cercas. O governo de Viktor Orbán namora a ultra-direita e anda na contramão do ideal de solidariedade, um dos pilares da democracia europeia. E se é para ser assim, não fazem falta à União Europeia.

Fora, Hungria.

Quanto a mim, não volto mais ao país enquanto for governado por esses reacionários.


É a dança da chuva.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Impressões sobre violência


A frase na real é de Salmor Hardin, um personagem de Asimov.
Mas é talvez o melhor conselho a se dar para os defensores
da agressão como solução. 
POR PEDRO LEAL

Isso pode ser só uma impressão minha. Talvez seja fruto de uma amostragem viciada, composta pelo tipo de pessoa que tende a comentar fervorosamente na internet e que se dispõe a pagar micos homéricos em vídeos do Youtube. No entanto, não me sai de forma alguma uma estranha impressão. Na verdade duas impressões.

A primeira é de que banalizamos a violência. Não falo aqui do nosso (assombroso e preocupante) indíce de homicídios, embora muito dele se deva a esse fenômeno. Qualquer ofensa, real ou imaginária, se torna justificativa para retribuir com toda a força imaginável. Ontem, um homem em Esteio (RS) abriu fogo contra seis pessoas por causa do barulho de um carro de som. O ato por si só já é um absurdo, mas os primeiros comentários na página do Zero Hora foram em apoio ao atirador.

Sim, ao atirador. Certo que são só os malucos de sempre online, prontos a apoiar qualquer insanidade que encontrem, mas... Há algo de profundamente errado quando o apoio a violência é cada dia mais comum. Seja qual a forma de violência, seja qual o motivo, sempre há quem diga que a vítima “mereceu”. “Não respeitou”. “Tava no lugar errado”. “Algo de errado fez”. Semana passada houve uma quantidade assustadora de comentários culpando uma menina de 15 anos por ter sido estuprada em uma rua em Joinville. Comentários que variavam do “o que fazia na rua a essa hora” ao “merecia ter sofrido mais pra aprender”. O mesmo ocorreu com uma das vítimas fatais da chacina de Osasco, uma adolescente de 15 anos. Não faltou quem dissesse que a menina era “bandida” e “merecia” morrer com base na frase pronta “o que fazia na rua de madrugada”. Ela foi baleada por volta das 21h30. Isso é madrugada?

Hannah Arendt falava da banalidade do mal. De como o “mal” não é monstruoso ou cruel, mas banal. Tudo que ele precisa é que ações horríveis sejam justificadas com “estou seguindo ordens” ou “não era alguém de verdade”. No presente vivemos a banalidade da violência: tudo que é necessário é um “ele fez por merecer”. “Era um bandido”. “Era um vagabundo”. “Ela começou”. “Ele deveria ter respeitado”. “Eles fizeram baderna”... Qualquer coisa pode servir como desculpa para agressões, tiros, estupros - basta ver os comentários de qualquer notícia, para ver como tudo é justificável para os comentaristas online. Especialmente para os que se sentem no direito de exercer a violência como “vingança” por crimes do qual foram vítimas*. A manifestação mais clara disso está na frequência dos linchamentos no país - baseados em acusações vagas e especulação.

A segunda é de que viramos uma nação de fanáticos (e este fanatismo tem tudo a ver com a primeira impressão). Desumanizamos o “outro” de forma sistemática. Por quaisquer discordâncias. Gostar do time, do filme ou da série errada já é o bastante para justificar desdém e ostracismo. Em se tratando de política e questões sociais então...Qualquer ação contra quem discorda se torna aceitável na perspectiva de algumas pessoas. Por menor que seja a discordância. Não há mais espaço para debate deste jeito.

Para algumas pessoas, o país só “irá pra frente” se eliminarmos os coxinhas/petralhas. Apenas através da destruição dos comunistas/capitalistas é que há chance para o Brasil. Se não acabarmos com o PT/PSDB, está tudo perdido. Temos que matar os Bandidos/A Elite/A Polícia/Os Comunas/Os “gayzistas” ou o país não terá salvação. Tudo muito "lógico". De alguma maneira, a violência se tornou a solução padrão para tudo - desde infrações de trânsito até o mal funcionamento do sistema público de saúde, a solução passa por matar, espancar ou torturar ALGUÉM. Só basta achar quem.

Enquanto essa mentalidade imperar - uma mentalidade que tem se espalhado como um vírus e corrompendo até alguns daqueles que lutavam contra ela - de fato o país está perdido. Afinal, não há esperança onde impera o ódio. Mas isso é apenas uma impressão. Mas os casos de ódio abundam

Um caso notável foi o do advogado Matheus Sathler - que com a mesma naturalidade de quem diz que vai buscar um lanche, por três vezes ameaçou decapitar a presidente da república. Sathler foi alvo de uma medida cautelar - e zombou da sentença. Seus apoiadores acusam o judiciário de censura, após três ameaças claras. Em um país são, Sathler estaria preso. Mas no Brasil que vê a violência como justa com uma frequência alarmante, ele é pintado como vítima.

Talvez sejam apenas impressões. E eu espero que sejam. Mas se essas impressões estiverem certas, o país está a beira de uma onda de violência, que será tratada como “justa” e “merecida” até a hora que atingir seus perpetradores - e que então será vista com justa por aqueles que odeiam o novo alvo da violência. Não é espumando pela boca e agredindo verbal e fisicamente que se constroem nações.

*Antes que me digam que só sou contra o desejo de vingança porque “nunca fui assaltado”, já fui assaltado dezesseis vezes. Cinco delas no exterior.