terça-feira, 8 de setembro de 2015

Impressões sobre violência


A frase na real é de Salmor Hardin, um personagem de Asimov.
Mas é talvez o melhor conselho a se dar para os defensores
da agressão como solução. 
POR PEDRO LEAL

Isso pode ser só uma impressão minha. Talvez seja fruto de uma amostragem viciada, composta pelo tipo de pessoa que tende a comentar fervorosamente na internet e que se dispõe a pagar micos homéricos em vídeos do Youtube. No entanto, não me sai de forma alguma uma estranha impressão. Na verdade duas impressões.

A primeira é de que banalizamos a violência. Não falo aqui do nosso (assombroso e preocupante) indíce de homicídios, embora muito dele se deva a esse fenômeno. Qualquer ofensa, real ou imaginária, se torna justificativa para retribuir com toda a força imaginável. Ontem, um homem em Esteio (RS) abriu fogo contra seis pessoas por causa do barulho de um carro de som. O ato por si só já é um absurdo, mas os primeiros comentários na página do Zero Hora foram em apoio ao atirador.

Sim, ao atirador. Certo que são só os malucos de sempre online, prontos a apoiar qualquer insanidade que encontrem, mas... Há algo de profundamente errado quando o apoio a violência é cada dia mais comum. Seja qual a forma de violência, seja qual o motivo, sempre há quem diga que a vítima “mereceu”. “Não respeitou”. “Tava no lugar errado”. “Algo de errado fez”. Semana passada houve uma quantidade assustadora de comentários culpando uma menina de 15 anos por ter sido estuprada em uma rua em Joinville. Comentários que variavam do “o que fazia na rua a essa hora” ao “merecia ter sofrido mais pra aprender”. O mesmo ocorreu com uma das vítimas fatais da chacina de Osasco, uma adolescente de 15 anos. Não faltou quem dissesse que a menina era “bandida” e “merecia” morrer com base na frase pronta “o que fazia na rua de madrugada”. Ela foi baleada por volta das 21h30. Isso é madrugada?

Hannah Arendt falava da banalidade do mal. De como o “mal” não é monstruoso ou cruel, mas banal. Tudo que ele precisa é que ações horríveis sejam justificadas com “estou seguindo ordens” ou “não era alguém de verdade”. No presente vivemos a banalidade da violência: tudo que é necessário é um “ele fez por merecer”. “Era um bandido”. “Era um vagabundo”. “Ela começou”. “Ele deveria ter respeitado”. “Eles fizeram baderna”... Qualquer coisa pode servir como desculpa para agressões, tiros, estupros - basta ver os comentários de qualquer notícia, para ver como tudo é justificável para os comentaristas online. Especialmente para os que se sentem no direito de exercer a violência como “vingança” por crimes do qual foram vítimas*. A manifestação mais clara disso está na frequência dos linchamentos no país - baseados em acusações vagas e especulação.

A segunda é de que viramos uma nação de fanáticos (e este fanatismo tem tudo a ver com a primeira impressão). Desumanizamos o “outro” de forma sistemática. Por quaisquer discordâncias. Gostar do time, do filme ou da série errada já é o bastante para justificar desdém e ostracismo. Em se tratando de política e questões sociais então...Qualquer ação contra quem discorda se torna aceitável na perspectiva de algumas pessoas. Por menor que seja a discordância. Não há mais espaço para debate deste jeito.

Para algumas pessoas, o país só “irá pra frente” se eliminarmos os coxinhas/petralhas. Apenas através da destruição dos comunistas/capitalistas é que há chance para o Brasil. Se não acabarmos com o PT/PSDB, está tudo perdido. Temos que matar os Bandidos/A Elite/A Polícia/Os Comunas/Os “gayzistas” ou o país não terá salvação. Tudo muito "lógico". De alguma maneira, a violência se tornou a solução padrão para tudo - desde infrações de trânsito até o mal funcionamento do sistema público de saúde, a solução passa por matar, espancar ou torturar ALGUÉM. Só basta achar quem.

Enquanto essa mentalidade imperar - uma mentalidade que tem se espalhado como um vírus e corrompendo até alguns daqueles que lutavam contra ela - de fato o país está perdido. Afinal, não há esperança onde impera o ódio. Mas isso é apenas uma impressão. Mas os casos de ódio abundam

Um caso notável foi o do advogado Matheus Sathler - que com a mesma naturalidade de quem diz que vai buscar um lanche, por três vezes ameaçou decapitar a presidente da república. Sathler foi alvo de uma medida cautelar - e zombou da sentença. Seus apoiadores acusam o judiciário de censura, após três ameaças claras. Em um país são, Sathler estaria preso. Mas no Brasil que vê a violência como justa com uma frequência alarmante, ele é pintado como vítima.

Talvez sejam apenas impressões. E eu espero que sejam. Mas se essas impressões estiverem certas, o país está a beira de uma onda de violência, que será tratada como “justa” e “merecida” até a hora que atingir seus perpetradores - e que então será vista com justa por aqueles que odeiam o novo alvo da violência. Não é espumando pela boca e agredindo verbal e fisicamente que se constroem nações.

*Antes que me digam que só sou contra o desejo de vingança porque “nunca fui assaltado”, já fui assaltado dezesseis vezes. Cinco delas no exterior.


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Inferno!


O festival gastronômico das taturanas


POR JORDI CASTAN


Num ciclo que se repete todos os anos, estamos às portas da primavera. A florada dos ipês que anuncia o novo tempo. As chuvas de setembro para aguar os desfiles pátrios. A mudança de temperatura. Os entardeceres mais tardios. Tudo faz parte desse quadro.


Neste ano, uma invasão de embiras, taturanas ou lagartas, dependendo da terminologia utilizada por uns ou outros, tem alterado a bucólica chegada da primavera. Ao ponto de converter-se num acontecimento na vila, com direito a capa de jornal, a entrevistas a especialistas e ao cancelamento de eventos oficiais.


Quem imaginaria que as ditas lagartas, com  o seu ciclo anual natural, gerariam tanto alvoroço? Que programas de rádio lhes dedicariam tanta atenção e que até nas redes sociais o tema seria amplamente debatido. No seu processo metamórfico, as futuras borboletas nunca ganharam tanta visibilidade. E olhem que não há nada de novo na sua presença na vila, pois são tão joinvilenses como os alemães, os mestiços, quanto os italianos ou os paranaenses.


A única diferença este ano tem sido a quantidade, maior que em outras primaveras. E também o fato de que, pela falta de outros manjares mais sofisticados, tenham escolhido as figueiras da Beira Rio para sua escapada gourmet. 

Como não é segredo que a cada ano temos menos árvores, a sua dieta está ficando cada vez mais reduzida. É por isso que as futuras borboletas escolheram a Beira Rio e a converteram num gigantesco estacionamento de "food trucks" verdes. Fizeram lá o seu Festival Gastronômico.

A situação ganhou tanto destaque mais pela inépcia do poder público,  que não soube ou não quis reagir a tempo e de maneira correta, do que pela real gravidade da infestação. Quem ainda tem jardim ou quintal em casa sabe que embiras, lagartas e outros insetos são mais ativos nesta época do ano e que depois se converterão em coloridas borboletas a enfeitar ruas e jardins. 

Há contudo um alerta. De que há um desequilíbrio cada vez maior nas cidades. Ou seja, de que nos espaços urbanos este desequilíbrio é mais evidente e que, com menos árvores e a redução da cobertura verde, a vegetação que teima em sobreviver esta cada dia mais ameaçada.

Mas há outro ponto relevante a destacar. É que se uma praga de lagartas pode paralisar esta administração, devemos nos preocupar o que possa vir a acontecer no dia que haja um problema verdadeiramente grave na cidade.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Barulho da Chuva #12


Em nome de Aylan


Impossível não sentir um aperto no peito ao ver a imagem daquele pequenino ser humano, inerte, de bruços, morto, nas areias da praia de Ali Hoca, Turquia. Choca ver uma vida toda pela frente ser afogada pela infâmia da guerra, da fome, das perseguições, das ditaduras. Dói constatar que a humanidade regride em meio à “modernidade”.

Aylan Kurdi de apenas três anos, aquela pequena alma atirada com o rosto nas areias, morreu afogado junto seu irmão e sua mãe, após o naufrágio do bote no qual tentavam chegar a um local de paz. O que eles queriam? Apenas viver em paz.


Mas e amanhã, o que será? Todos despertarão em nossas casas, lares, reunidos com familiares, vamos ao trabalho, à escola, à universidade, aos namoros, baladas, viagens. Em algum lugar do mundo o pai sofrerá a dor das perdas, das vidas que lhe fugiram das mãos. E nós, faremos o que?
Até quando seremos hipócritas, cínicos, em chorar por Aylan e tantos outros mortos e que ainda morrerão, quando apontamos culpa para meninas estupradas porque estavam em uma festa – “mulheres de bem não andam nestes lugares” -, ou olharemos para os haitianos que andam por nossas ruas a buscar o sustento para sua gente, que está distante sofrendo a fome, a falta do marido, do filho, da mulher, da companhia que nos faz humanos.
Sim, somos indignados contra a violência das ruas, pelos refugiados que vivem na miséria em acampamentos, mas não queremos os haitianos em nossa cidade, nosso país. Eles nos tiram empregos, podem vir a formar um exército revolucionário que vai tomar as nossas casas, propriedades, comer nossas criancinhas...


A imagem do menino morto na praia mostra que o algo que não queremos ver, assumir: o capitalismo, as religiões e a ignorância privaram as pessoas de viver num mundo livre e igualitário.

Nós, que nos autodenominamos seres humanos, nos comovemos, nos indignamos, até choramos por ele e mais dezenas de milhares de imigrantes, populações inteiras que abandonam seus lares por opressão política, religiosa, fanatismos que buscam pela violência da guerra, o poder. A vida de Aylan choca hoje, milhões.

Aguardaremos a próxima criança morta em uma praia, em uma praça, em um conflito qualquer? Sofreremos via redes sociais, bradaremos por poucos dias, denunciaremos “aqueles povos” que vivem guerreando, fugindo para a Europa, para a América do Norte, América Latina, para... o Brasil.

Nas redes sociais, hoje a seara onde vertem preconceitos, ofensas, falsos profetas, promotores da paz via ditadura militar, golpes para acabar com a corrupção (?!), líderes religiosos falsos que em nome de deus criminalizam a união de pessoas que só querem se amar e viver em harmonia, vemos também a falsa indignação.

Por isso, em nome de Aylan, morto na praia há quilômetros do seu lar, símbolo da ignorância e hipocrisia do mundo “moderno” em que vivemos, deixo aqui afirmações, provocações para mexer com você, indignado. Com você, homem e mulher de bem. Com você empresário do lucro acima de qualquer coisa. Com você, político e religioso (às vezes os dois em um) que move multidões em nome de deus e da verdade (?!). Com você mãe e pai, que veem nos filhos dos outros o erro, a perversão, a desonra. Pense se você não é um daqueles que:

- defende a paz, mas deseja ver um ser humano apodrecer na cadeia, inclusive crianças e adolescentes

- denuncia a prostituição, os maus costumes dos jovens, principalmente meninas, mas gosta muito das casas que oferecem noites de prazer

- está todos os domingos, ou qualquer dia, em uma igreja ou comunidade religiosa buscando a palavra de deus que prega o amor ao próximo, mas sai dali falando de alguém, agredindo filhos, mulher, marido

- vê um vagabundo em cada pessoa que usa drogas, lícitas ou não lícitas (afinal o que é isso?), mas tem amigos traficantes, usa só por diversão, às vezes...

- fala em liberdade como bem comum, mas pretende impor suas visões e crenças à força, seguindo os Kim Kataguiri e furiosos de movimentos vazios, ofendendo e agredindo quem não pensa como você...

- quer acabar com a violência, mas apoia linchamentos públicos, agressões policiais a quem quer que seja, tudo em nome da paz...?

Pense que naquela praia distante, de onde nos chegou apenas a foto do menino Aylan, uma criança indefesa, cheia de vida para correr pelas ruas, praças, realizar sonhos, ser feliz por longos anos, morreu também um mundo inteiro. Com ele morreu mais um pouca da nossa capacidade de sentir o outro de verdade, de desejar ao outro a felicidade, a liberdade, o direito de viver em qualquer lugar que se queira, sem opressões, preconceitos, violência.

Não deixe que a morte de uma vida seja apenas uma dor passageira. Indigne-se de fato, combata o que faz este mundo ficar pior, e parecido com o tempo das cavernas, da ignorância total. Em nome de Aylan, lute pela humanidade, faça a sua parte. Hoje foi ele, amanha pode ser você, seu filho, filha, pai, mãe, amigo, irmão... reflita e lute por um mundo melhor.

É assim, nas teias do poder...