sábado, 4 de julho de 2015

Maria Julia Monteiro e os racistas fora do armário

POR LUANA TOLENTINO

Temos assistido a manifestações de racismo cada vez mais violentas. Em parte, isso se deve ao fato de nos últimos anos a população negra ter ascendido socialmente e deixado de ocupar somente postos de trabalho com baixa remuneração e prestígio, como o emprego doméstico, a portaria dos prédios, os serviços gerais e tantas outras.

Ainda em menor número, hoje já é possível ver mais negros ocupando posições de destaque, em cursos de graduação, mestrado e doutorado. Cito a pergunta do antropólogo Kabengele Munanga: "Quem vai limpar a Casa-Grande se agora os negros estão na universidade?" Por essa as elites e a classe média não esperavam.

Essas mudanças têm gerado ódio e revolta, disseminados sem o menor pudor nas redes sociais. Os racistas saíram do armário. Maria Julia Monteiro, jornalista da Globo, é a vítima da vez.

Por mais que eu deteste/não suporte/tenha pavor-nojo-asco do JN, ele ainda é o jornal de maior importância do país. Por mais que eu deteste/não suporte/tenha pavor-nojo-asco da emissora dos Marinho, ela é a quarta maior rede de televisão do mundo. Não há como negar a força e o poder da Globo.

E é justamente esse espaço que Maju, com talento e competência, ocupa atualmente. Todas as noites, Maria Julia adentra a casa de milhões de brasileiros. Não como uma doméstica da novela das 6, 7 ou 8, que ao ser humilhada aceita tudo calada, de forma resignada. Mas, sim, como a “moça do tempo”, posto jamais ocupado por uma mulher negra ao longo dos 50 anos da Rede Globo. Para uma sociedade que naturaliza as desigualdades raciais, isso é inaceitável.

Soube através do Facebook, que na edição de sexta-feira, dia 3, Willian Bonner e Renata Machado falaram sobre os ataques racistas de que Maria Julia Monteiro foi alvo. Ao que parece, a palavra racismo não foi mencionada em nenhum momento. O que era de se esperar. Sabemos que cada frase dita no telejornal passa pela chancela de Ali Kamel, diretor de jornalismo e autor do livro "Não Somos racistas".

Da Globo não espero nada. Da Maju, torço para que ela tenha forças para lutar. Não com um irônico "beijinho no ombro", como ela teria dito, mas com um posicionamento firme. Racismo não é brincadeira. É uma ideologia forjada para negar a humanidade de nós negras e negros. 


Luana Tolentino é professora e historiadora. É ativista dos movimentos Negro e Feminista.

O barulho da chuva #3


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Incoerências de uma cidade em situação irregular


POR ANDREI KOLACEKE

Logo que recebeu um grande terreno como herança dos falecidos pais, Elisa decidiu utilizá-lo para construir uma casa capaz de abrigar o marido e os três filhos. Residente em Joinville, a família havia juntado, ao longo de vários anos e com muito sacrifício, o dinheiro necessário para a construção da tão almejada casa própria. Em busca do alvará necessário para iniciar a construção, no entanto, Elisa viu frustrados os planos de sua família. Já na consulta prévia, foi informada pela Secretaria do Meio Ambiente de que a quase totalidade do imóvel não poderia receber qualquer construção. Uma faixa de trinta metros de largura do terreno encontrava-se em área de preservação permanente, por estar localizada às margens de um pequeno córrego que passava na região.

No caso, o posicionamento da SEMA, embora de acordo com a literalidade da Lei nº 12.651/12 (o famigerado novo Código Florestal Brasileiro), de maneira alguma se mostrava razoável. A respeito da ocupação do solo de Joinville, o próprio Tribunal de Justiça de Santa Catarina já decidiu reiteradamente que “em área urbana não se aplicam as distâncias mínimas definidas pelo Código Florestal entre construções e margens de rios, córregos e canais[1]. De qualquer maneira, diante disso, só restaria a Elisa desembolsar pelo menos R$ 3.800,00 (conforme a tabela de honorários da OAB/SC) para tentar reverter a situação por meio de um mandado de segurança.

Independentemente do desfecho, são situações como a de Elisa que evidenciam a maneira como as questões relacionadas à preservação ambiental vêm sendo tratadas na cidade.

Construída sobre uma área recortada por pequenos cursos de água e ocupada por vastos manguezais, Joinville desde cedo teve sua expansão urbana associada à degradação do ambiente. Do século XIX aos dias atuais, foi uma ideologia utilitarista, de progresso a qualquer custo, que norteou a ocupação do solo e o desenvolvimento econômico da cidade. As indústrias mais antigas e diversos prédios públicos gradualmente ocuparam o espaço que sempre havia pertencido às matas ciliares, enquanto uma população em rápido crescimento tomou o lugar da Mata Atlântica e acumulou-se em torno do mangue. O processo de ocupação da região ocorreu de tal maneira que, passadas tantas décadas, uma aplicação literal da legislação ambiental vigente colocaria a maior parte dos espaços ocupados em situação irregular e inviabilizaria a própria existência da cidade.

Diante da impossibilidade de uma reversão completa do dano já causado, caberia ao Poder Público ao menos garantir a observância das normas federais, estaduais e municipais de proteção ao ambiente com a eficiência, a imparcialidade e a razoabilidade necessárias para torná-las eficazes; deveria, sobretudo, direcionar seu rigor a quem realmente tem oferecido riscos ao equilíbrio natural da região.

No entanto, ao invés disso, tolera, ano após ano, o funcionamento de grandes indústrias às margens de rios e córregos; diante das violações, aplica penalidades irrisórias quando comparadas às dimensões dos sujeitos penalizados; no final das contas, torna a aplicação do direito ambiental um simples custo a ser incluído na fórmula de lucratividade das atividades nocivas ao ambiente. Quando aplica a lei em sua literalidade e com o máximo rigor, o faz justamente com cidadãos como dona Elisa, que dispõem de tanto potencial para causar danos ao ambiente quanto capacidade para reagir às arbitrariedades.

Em Joinville e na maior parte do mundo, o medo de uma possível fuga de investimentos tornou o Estado pouco mais que um refém do capital. Nessa relação de poder invertida, os interesses a que os órgãos governamentais procuram atender são completamente dissonantes dos da população, vez que o modelo de desenvolvimento adotado, insustentável do ponto de vista ambiental, é responsável, como se sabe, pelo aprofundamento das desigualdades sociais e pela deterioração das condições de vida nas comunidades mais vulneráveis.

Como um engodo, a aplicação de normas ambientais em Joinville mostra-se intransigente contra os pequenos, branda contra os grandes, excessiva nos pontos em que é desnecessária e omissa naquilo em que é imprescindível.




[1] TJSC, Agravo de Instrumento n. 2014.006221-6, de Criciúma, rel. Des. Cid Goulart, j. 03-03-2015

Maternagem consciente para quem?

POR EMANUELLE CARVALHO

Há alguns anos, muito tem se falado em maternidade consciente, maternagem e criação de filhos com afeto. Entre as temáticas está a diminuição de horas trabalhadas para cuidado com as crianças, da permanência em casa e o distanciamento do trabalho até que a criança consiga fazer tarefas mínimas como comer e ir ao banheiro.

Essas premissas são de fato muito importantes e possibilitam uma criação com apego, aumentam o diálogo a ligação da mãe com a criança, o conhecimento mútuo, enfim, são muitos os benefícios. Mas o que eu quero pontuar aqui é o privilégios dessas possibilidades.

Em uma sociedade racista e machista ter um filho com a presença do pai é um grande privilégio. Segundo dados do censo IBGE de 2010, uma em cada quatro famílias é chefiada por mulheres. Como não há dados específicos sobre essas famílias, a perspectiva de vários especialistas é de que essas famílias são, em sua maioria, de mães que criam seus filhos sozinhas, com pouca ou nenhuma ajuda do pai(s) de seu(s) filhos.

E se vivemos numa sociedade que remunera suas mulheres com salários até três vezes menores que os homens - nas respectivas funções, tendo em vista que o salário das mulheres negras é em média 35% do salário de um homem branco (no caso de mulheres brancas essa média é de 63%). Como garantir que essas mães conseguiram exercer seu direito de maternidade de forma plena ou minimamente digna?

Além disso, o mercado de trabalho para mulheres é cruel, especialmente para mulheres periféricas com baixa qualificação. Para estas sobram as vagas de operadoras de telemarketing, vendedoras, atendentes além de serviços de limpeza e higiene. Essas áreas de um modo geral pedem dedicação de seis dias por semana. Ora, como trabalhar seis dias por semana, de seis horas por dia (fora o deslocamento) e ainda cuidar da casa, dar educação, fazer comida e ainda se virar com lazer, carinho, cuidados pessoais e sua própria vida enquanto mulher?

Tive meu primeiro filho aos 19 anos, em uma condição econômica bem complicada. Cheguei a ter três empregos ao mesmo tempo, entregar listas telefônicas e trabalhar como atendente de telemarketing de madrugada para conseguir ajudar no seu sustento. Fui fazer faculdade somente aos 22 anos, depois que ele tinha o mínimo de independência e eu podia me dar ao luxo de reduzir os empregos ou estágios para dois.

A lida entre faculdade e filhos só foi possível por ter ao meu lado minha mãe, que se dividia entre trabalhar em uma cozinha industrial como servente, e cuidar de uma criança pequena. Eu, além dos trabalhos da faculdade, das tarefas nos empregos, de cuidar do meu filho, ainda tinha de passar, lavar e cozinhar. Mesmo assim, eu fui uma privilegiada e hoje vivo uma vida muito mais confortável e diferente daquela.

Mas quantas de nós não tem o mesmo acesso? Quantas de nós mal conseguem sustentar a própria casa? Quantas de nós permanecem em um casamento desgastado, difícil e violento justamente porque nossas remunerações e tempo disponíveis seriam ainda mais escassos e não daríamos conta de uma subsistência mínima? Quem consegue pedir o divórcio sabendo que aos filhos e a si mesma restará o abandono e uma vida ainda mais difícil?

A sociedade cobra da mulher proletária uma postura muito superior à cobrada a um homem trabalhador e a mulher classe média. Além da tripla jornada de trabalho (casa, empregos e filhos) ainda temos como obrigação, o dever moral de afeto de prontidão, de compreensão, de estarmos bonitas e sermos bem sucedidas.

Há uma distância inimaginável entre uma mulher classe média e uma mulher periférica. Há um casamento estável, uma família estável, um carro, comida com fartura, roupas novas, brinquedos novos, há educação de qualidade, há estabilidade emocional. Eu não estou dizendo que a vida de mulheres classe média não seja o tempo todo vigiada pelo machismo e a misoginia, e seja também muito difícil, mas é preciso fazer o recorte de classe.

É preciso aproximar os discursos das realidades. É preciso lutar para modificar essas realidades e empoderar essas mulheres antes de julgarmos seu tempo, dedicação e modo de cuidar dos filhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Encontro com o ser humano


POR PATRÍCIA STAHL GAGLIOTI

Dia desses, andava pelo centro de Joinville por volta das 8 horas, quando fui abordada por um ambulante que carregava, em seu ombro, um mostruário daqueles em que se pendura bijuterias para vender nas esquinas da cidade. Ele olhou para mim e, sem muita razão, me perguntou: “Você prefere a verdade ou a mentira?”. Titubeei um pouco ao responder, mas disse: “A verdade”. À minha resposta, lançou-me então sua verdade: “Faltam R$ 2,50 para eu tomar minha cachaça, você me arruma?”.

Talvez pela minha inabilidade de negar algumas coisas, ou talvez por crer que não tenho condição nenhuma de julgar as necessidades daqueles que perambulam pelas ruas, atravessei em direção à outra calçada e fui trocar dinheiro para que o rapaz comprasse sua dose de cachaça. Como recompensa, enquanto eu iria em busca dos seus R$ 2,50, ele sacou um arame dos seus materiais e começou a confeccionar uma clave de sol, uma retribuição por eu ser uma “pessoa legal”, em suas palavras.

Com os R$ 2,50 em mãos, fui em sua direção e trocamos o artesanato pelo dinheiro. O rapaz olhou para mim – se Machado de Assis estivesse ao meu lado, talvez tivesse dito que seus olhos eram como os de Capitu, olhos de ressaca – e soltou mais uma de suas perguntas: “Olhe para as minhas mãos cheias de calo. Você acha que esse dinheiro paga esta peça que eu lhe fiz?”. “Bem, eu não sei quanto custa esta peça, mas foi você quem me pediu R$ 2,50”, respondi. “Eu não quero mais ficar na rua, quero ir embora desta cidade”, continuou.

O calo nas mãos daquele rapaz e sua indagação séria sobre o valor de seu trabalho, feita assim às 8 horas de um dia que se anunciava ensolarado, de alguma forma me tocou. Fiquei pensando, minutos depois enquanto caminhava rumo ao meu trabalho, o quanto menosprezamos o trabalho que realizam, o estilo de vida nômade que alguns escolheram para si, seus calos.

Talvez porque somos aqueles inseridos numa lógica de trabalho atrelada à rotina, ao sacrifício, acostumados a “engolir sapos” e “pastar” para “sermos alguém na vida”. E sermos alguém na vida se traduz em tudo aquilo que pode ser materializado, comprado, medido, contado e exposto aos olhos alheios em postagens nas redes sociais.

Max Weber há muito já falava sobre a característica peculiar do sistema capitalista moderno, no qual se desenvolveu uma ética própria, um modo de vida fundamentado no trabalho e na prosperidade financeira. “O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais”.

Weber também nos disse que “ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é resultado e expressão de virtude e de eficiência em uma vocação”. Mas que vocação seria a do ambulante que me abordou naquele dia na região central da cidade? A de confeccionar claves de sol, brincos e colares de quando em quando, percorrendo diferentes regiões do Brasil e da América Latina?

Parece que também não basta ter vocação para moldar o arame a seu favor e lhe dar a forma que desejar, a não ser que este seja um trabalho mecânico realizado dentro de uma fábrica, na qual se passa oito horas por dia e na qual os homens que ali trabalham podem ser merecidamente chamados de trabalhadores. Dobrar arame nas ruas centrais parece não contar. Assim como não conta fazer malabares no semáforo, ou cuspir fogo em uma apresentação de segundos para faturar trocados dos carros parados.  

E não conta porque além de sermos enquadrados em um determinado sistema de trabalho do qual estamos acostumados, somos extremamente utilitaristas. Se em nada me contribuiu ou de nada me vale as bolas rodando pelo ar antes de retornarem às mãos do malabarista, por que teria de pagá-lo por isso? Cada um com suas escolhas e com a aplicação de seu dinheiro que melhor lhe convir, mas já diria Rubem Braga, nos idos dos anos 1952: “A humanidade não vive apenas de carne, alface e motores”. O que não significa que se deva pagar por isso caso não queira, mas que a gente possa ter um olhar mais apreciativo para as coisas, causos e outros.

O fato é que depois de me pedir uma passagem para outra cidade e de eu negar-lhe por não ter verba para isso, o ambulante sorriu, me deu um abraço desejando bom dia e seguiu seu caminho. Os minutos que conversei com ele, antes de sentar na minha mesa de trabalho e desempenhar minha função costumeira – por vezes de forma mecânica – encheu meu dia de humanidade, de calo, abraços e histórias. De pessoas.

Para finalizar com Braga: “Sejamos humildes diante da pessoa humana: o grande homem do Brasil de amanhã pode descender de um clandestino que neste momento está saltando assustado na praça Mauá, e não sabe onde ir, nem o que fazer. Façamos uma política de imigração sábia, perfeita, materialista: mas deixemos uma pequena margem aos inúteis e aos vagabundos, às aventureiras e aos tontos porque dentro de algum deles como sorte grande da fantástica loteria humana, pode vir a nossa redenção, a nossa glória”.