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quinta-feira, 15 de maio de 2014

Vai ter Copa! E...?


Não é preciso entender alemão
POR CLÓVIS GRUNER

Desde criança me sinto um peixe fora d’água: nascido e criado em um país que fez do futebol uma espécie de patrimônio, passei a esmagadora maioria de meus anos sem entender, gostar, jogar ou acompanhar futebol. E mesmo tendo descoberto, só recentemente, que realmente pode ser divertido “jogar uma pelada” com os amigos, minha inaptidão para o esporte permanece inalterada: eu não apenas jogo mal sempre que entro em campo, como meu contato com o futebol se limita aos encontros de sábado à tarde com alguns camaradas e alunos. Embora agora jogue, eu continuo sem entender, gostar ou acompanhar futebol.

Por isso me causou certo estranhamento quando comecei a ver pipocar, nas ruas e demais redes sociais, o “Não vai ter Copa”. Indaguei-me algumas vezes acerca do por que em um país que sempre amou o futebol, e que amargou décadas esperando sediar novamente uma Copa do Mundo – sim, acreditem, já houve um tempo em que reclamávamos do descaso da FIFA –, muitos entre nós tratamos o evento não apenas com desdém, mas com sincero repúdio?

Não existe uma resposta única, nem tampouco óbvia, para a questão; da mesma maneira como não são unívocos os motivos que levam tanta gente a compartilhar a palavra de ordem #nãovaitercopa. Há muito oportunismo, sem dúvida, especialmente porque o evento coincide com o ano eleitoral e a oposição, desprovida de projetos e programas, aposta suas fichas no fracasso da Copa do Mundo para desestabilizar o governo e faturar uma casquinha eleitoral. Mas até aí nenhuma novidade. Faz parte do jogo, e o PT não faria diferente se fosse o contrário.

Há, igualmente, muita ingenuidade, um bom quinhão de desinformação e porções generosas de má fé. É ingênuo acreditar, mesmo vagamente, que os investimentos em educação e saúde, por exemplo, seriam maiores e melhores sem a Copa do Mundo ou que nossos problemas, estruturais alguns deles, estariam magicamente resolvidos não fosse o evento. Falta informação a quem insiste em afirmar que os investimentos feitos sangram os cofres públicos e contribuem para fragilizar ainda mais a economia; nossas incertezas econômicas não começaram com a Copa e não se encerrarão depois dela. Mas, principalmente, compartilhar uma notícia velha e descontextualizada, elogiando a decisão do ditador João Batista Figueiredo ao recusar, em 1983, sediar a Copa de 1986, como se isso o tornasse algo mais do que ele realmente foi, um presidente autoritário e truculento, se não é má fé, só pode ser estupidez.

COPA E DEMOCRACIA – Mas não acho que se possa ver a questão apenas sob esse prisma. Porque se há um pouco de quase tudo no movimento “Não vai ter copa”, há demandas legítimas que nos obrigam a avaliar a porção de responsabilidade principalmente do governo federal nas crescentes demonstrações de descontamento. Faltou, falta, transparência onde sobra truculência, e a recente declaração da presidente Dilma Rousseff, de “quem quiser manifestar, pode! Mas quem quiser manifestar não pode prejudicar a Copa”, não ajuda a amenizar a sensação de que o custo social e político da Copa, já alto, não cessa de subir.

Impressão reforçada com a matéria publicada na mais recente edição da revista alemã Der Spiegel. O texto ressalta a maneira enviesada como muitas das decisões foram tomadas e a herança violenta do campeonato: os operários mortos na execução das obras, conduzidas com pressa irresponsável; a ação higienizadora da polícia e do exército que, à bala de borracha e gás lacrimogêneo, expulsam das ruas os manifestantes, principalmente nas cidades-sede; os milhares de cidadãos brasileiros removidos à força em função das obras. Nesse sentido, o grito “Não vai ter copa!” tem também uma conotação simbólica fundamental. Porque não se trata, óbvio, de barrar um evento mundial – ninguém, acho, é ingênuo a esse ponto –, mas de confrontar o discurso estatal, sempre monumental e laudatório; de escová-lo a contrapelo para fazer aparecer, além da superfície lisa das imagens oficiais, as muitas asperezas que ele encobre.

Por isso me parece equivocado atribuir um caráter exclusivamente conservador às movimentações contra a Copa. Que oportunistas estejam a erguer uma bandeira, preocupados em simplesmente desestabilizar o governo; que uma oposição à deriva esteja a fazer dela um uso eleitoreiro; que setores principalmente das camadas médias estejam a aproveitar o ensejo para reiterar seu conservadorismo tacanho e ressentido, nada disso retira sua legitimidade. Porque junto a estes há também aqueles que vislumbram, nos protestos, a possibilidade de ampliar nossa experiência democrática e, a exemplo do que ocorreu em junho do ano passado, usam as ruas e as redes para construir alternativas de participação e ocupação do espaço público que não exclusivamente as que passam pelos mecanismos institucionais da política. 

Quase sem querer, o “Não vai ter Copa” revela uma faceta fundamental de nossas três décadas de retomada democrática, depois de duas de ditadura. Uma sociedade não vai às ruas questionar sua democracia, sem ter a segurança de que ela está suficientemente consolidada em seus aspectos formais para ser criticada e tensionada. E somente uma geração felizmente desacostumada à ditadura e, por isso, mais atenta às fragilidades e contradições da democracia, bem como à necessidade de fazê-la avançar, é capaz de fazer isso. Porque ela sabe que a democracia não pode limitar-se às formalidades institucionais, ainda que elas sejam importantes: ela precisa deslizar para o cotidiano e ser um pressuposto fundamental de uma cultura política e de experiências de vida efetivamente pluralistas. E talvez seja esse o principal legado da Copa.