sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Barulho da Chuva #11


Meritocracia... o tanas!


POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Quando entrei para a Faculdade de Engenharia havia um único calouro vindo do ensino público (não tenho certeza, mas acho que era também o único de Joinville). O cara era bom. Dominava os temas com muita facilidade e as suas notas eram sempre exemplares, mesmo naquelas cadeiras em que a maioria vivia a patinar. Fazer certas disciplinas era um pesadelo. Mas não para ele, que parecia talhado para a coisa.

No entanto, era notório que o cara não tinha dinheiro. Pelas roupas que vestia, pelo transporte que usava (busão, claro) ou pelo lazer de que não podia desfrutar. Muito diferente dos outros alunos, quase todos vindos de outras cidades e de famílias com alguma grana. Um bom número de colegas de sala usava roupas de marca, tinha carro próprio e não economizava na hora das festas.

Não sei quanto tempo o tal estudante permaneceu na faculdade (não digo o nome, mas lembro). Mas sei que a certa altura as suas aparições tornaram-se escassas e um dia deixei de vê-lo. Lembro de ter ouvido que tinha arranjado emprego, porque precisava sustentar a família. E a faculdade, com aulas o dia inteiro (e por vezes à noite) impossibilitava qualquer projeto nesse sentido.

Por que trazer essa história? Ora, porque tem muita gente a insistir na meritocracia como a panaceia capaz de produzir uma sociedade justa. Aliás, antes de continuar quero deixar claro: não nego o mérito, porque ele existe. O que rejeito é a desigualdade e as injustiças sociais. Porque a meritocracia só faz sentido se todos partirem em igualdade de condições. Não é o que acontece.

A meritocracia só existe quando todos são iguais à partida
O fato é que eu, sendo um péssimo projeto de engenheiro (tanto que desisti, depois de algum tempo), podia continuar na faculdade. O cara não. E eu pergunto: onde está a meritocracia? Não está. O discurso do mérito, repetido à exaustão pelos “homens de bem” (os que estão por cima da carne seca) serve apenas para a reforçar a elisão das diferenças de classe.

O leitor e a leitora podem contra-argumentar com o exemplo dos self-made man, mas o fato é que são uma minoria. Aliás, ninguém fala das self-made woman, o que apenas denota outra injustiça: no plano do gênero, a meritocracia também é coxa, tanto que as mulheres ganham menos que os homens no desempenho das mesmas funções. Na maioria dos casos, o mérito parece ser apenas para homens brancos e com alguma linhagem familiar.


Mérito sem igualdade de oportunidades é simples palavrório para inocentar as diferenças de classe. Enquanto houver potenciais Einsteins perdidos ali no Itaum não venham com essa treta de meritocracia. Porque é apenas conversa para boi dormir. Meritocracia... o tanas!

É a dança da chuva.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A rua


VALDETE DAUFEMBACK

A rua, com sua dinâmica, com seu movimento, é o melhor lugar para se ler a sociedade. A rua é o lugar da expressão, da liberdade literária, da aventura artística. É na rua que nos surpreendemos com situações inusitadas, que nos descobrimos e descobrimos os outros, que nos encantamos e desencantamos. Em poucos minutos a rua pode ser testemunha de muitas histórias


Em um órgão público esperava para ser atendida quando adentrou no recinto uma pessoa cheia de espontaneidade e solicitou um documento que havia encaminhado fazia uma semana. Naquele momento minha intuição dizia que se tratava de alguém que não conhecia a cultura ordeira e disciplinadora de Joinville.


 Ao sair do prédio, a pessoa já estava na calçada tentando se achar pelos pontos cardeais. Percebi que falava aos seus botões na tentativa de buscar na memória pontos que indicassem o caminho da localização para chegar a um destino pretendido. Ao perceber a cena me remeti ao passado quando nesta cidade cheguei, sem conhecê-la, tentava me localizar por meio de pontos de referência, desejando ter em mãos o novelo de fio de Ariadne para sair do labirinto de pedra e cimento. 


Perguntei à pessoa se precisava de ajuda para encontrar tal endereço. 


- “Eu estou em Joinville faz três semanas e ainda não decorei a cidade”. Assim foi o início de uma conversa que durou quinze minutos enquanto caminhávamos até o local pretendido. 


- “Agora estou feliz, tenho minha Carteira de Trabalho assinada, consegui emprego na construção civil graças ao curso de eletricista que fiz pelo PRONATEC. No Paraná eu trabalhei durante vinte anos na informalidade, mas depois que fiz o curso, vim pra cá e já arrumei emprego”. 


Na conversa mencionou que já havia matriculado os filhos na escola. E pelo entusiasmo com que se expressava, parecia mesmo estar satisfeito com o trabalho e com a cidade que acabara de conhecer.  


- “Tem gente que diz que eu vou trabalhar quatro meses para o governo. É o que vou pagar de imposto. Mas se não for assim, como é que o governo vai conseguir prestar à população serviços públicos? Olha, vai ver se nos Estados Unidos tem Sistema Único de Saúde? Vai ver como está a saúde da população no Paraguai?”.


Fiquei curiosa sobre a pessoa que estava caminhando ao meu lado e que espontaneamente foi revelando seus tesouros sem que eu tivesse feito uma só pergunta sobre a sua vida pessoal.  


- “Sabe, estas pessoas que foram às ruas no domingo (dia 16 de agosto), não sabem o que estão dizendo, não conhecem a história, não conhecem as necessidades dos pobres, não fazem ideia do quanto a presidente contribuiu para ajudar as pessoas a saírem da pobreza. Eu sou prova disso. Não sabem o que é ditadura militar, não sabem o que aconteceu naquela época. Meu pai, um agricultor, foi preso...”. 


Chegamos ao destino. Fim da caminhada sociológica em que assumi uma postura de ouvinte. A pessoa agradeceu e nos despedimos. 


- “A gente se vê por aí”. 


Sorri e segui em frente observando as pessoas em movimento, imaginando as suas histórias, suas vidas, seus encantos e desencantos. Pensei na liberdade de expressão do artista “palhaço” que foi preso na rua durante apresentação em festival infantil, em Cascavel, no Paraná, por usar a arte como instrumento político, tal como na época da ditadura militar. Pensei na polifonia e nas vozes que foram silenciadas ao levantar a bandeira da justiça social. Pensei no apagamento da memória e na alienação da história. Pensei nas cabeças tresloucadas que clamam por intervenção militar. Pensei no esvaziamento da política nos protestos de rua.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Pobre...


A lógica invertida dos ricaços que comandam a cidade

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POR FELIPE SILVEIRA

A página de humor e informação ÉÉÉguaaa postou recentemente que os cidadãos de Porto Alegre, capital do vizinho Rio Grande do Sul, podem pedir para os ônibus do transporte coletivo pararem a qualquer momento durante a madrugada, chamando atenção para o fato de que as linhas da madrugada mal existem em Joinville, e o que existe ainda será cortado. Aí alguém que cuida das redes sociais de uma das empresas de transporte público da cidade teve a brilhante ideia de responder o seguinte: “Que ótimo para Porto Alegre, necessário, para toda cidade que tem ‘vida noturna.’”

A imagem foi apagada, mas o tiro no pé já havia sido dado. A popular página fez outra postagem, agora com o print da resposta, que tem gerado bem mais repercussão e crítica do que o post original. Além disso, o fato nos leva à reflexão deste texto.

O comentário é uma amostra do modo de pensar da elite econômica sobre a cidade. Outro exemplo é a campanha do então candidato a prefeito Udo Döhler, que, perguntado sobre mobilidade urbana, prometeu fazer 300 quilômetros de asfalto. A promessa ainda não foi cumprida, mas, mesmo que fosse, o asfalto é mais uma questão de saúde pública do que de mobilidade. Nesse quesito, poderia ser chamada de anti-mobilidade.

Voltando ao caso das linhas da madrugada, conto minha experiência pessoal para ilustrar, mas tenho certeza que a maior parte dos leitores passou por isso ou conhece alguma história. Como fui universitário até pouco tempo atrás, e ainda convivo no meio, fui inúmeras vezes ao bar com os amigos e também a inúmeras festas. Infelizmente, como as aulas acabam às 22h30, aos amigos que dependiam do transporte público sempre precisavam sair cedo, ficando, no máximo, meia hora com a gente. Já nas festas, houve inúmeras situações de gente que não pode ir ou teve que se virar pra voltar por causa da falta de ônibus. São apenas dois exemplos de como faz falta o coletivo na madrugada.

Mas há outros exemplos mais graves. No tempo que morei no bairro Paranaguamirim, soube de vários casos de pessoas que não tinham como levar seus filhos ao hospital por causa da falta de ônibus. Sem contar nas vezes que as pessoas chegam cansadas de um dia de trabalho e perdem o último ônibus, sendo obrigadas a ir a pé, pagar um moto-táxi, arrumar uma carona...

Em suas mansões ou no conforto de seus carros de luxo importados, os ricaços que comandam a cidade e o transporte coletivo não fazem ideia do perrengue que passa o trabalhador e o estudante para simplesmente viver o cotidiano. Eles não sabem, ou fingem, que uma uma simples corrida de táxi pode custar 1/5 do salário de um trabalhador. Na cabeça desses caras, todo mundo vai ter carro, então a cidade deve ser feita para carros. Se não me engano, o prefeito disse algo parecido na campanha, quando falou nos 300 km de asfalto.

A lógica dos caras está tão invertida que eles não sabem que, se as pessoas não tiverem como chegar e sair dos lugares, as pessoas não vão aos lugares. Aí não tem como ter vida noturna mesmo. Se os lugares não têm clientes, é claro que eles vão fechar mais cedo.

A mesma lógica vale para as ciclovias. Algumas pessoas criticam o investimento em ciclovias, dizendo que há poucos ciclistas. É claro que apenas um número baixo de pessoas vai pedalar enquanto as condições forem tão ruins. A partir do momento que as ruas se tornarem mais seguras, mais gente vai pedalar e possivelmente mudar de vida com isso.

Nesta quarta-feira, 26 de agosto, vai rolar um Catracaço contra a extinção das linhas da madrugada. O ato é chamado pelo MPL, que há anos luta contra os malucos que comandam o transporte coletivo. Compareça, se manifeste contra a extinção das linhas e contra a exploração dos trabalhadores e estudantes.