quarta-feira, 2 de abril de 2014
Coisas de academia
POR ET BARTHES
Será que você ja viu algo parecido na sua academia? Mais uma produção do Parafernalha.
Espancar os números
A autoria da frase é atribuída a Millôr Fernandes (não
sei se confere): “estatística é a arte de espancar números até que eles
confessem”. Um dia destes dei de cara, aí pelas redes sociais, com um gráfico
do “The Wall Street Journal” sobre os pedidos para a remoção de conteúdos do
Google, apresentando o Brasil como o país mais ativo nesse sentido.
O gráfico era usado num post que não trazia disfarces:
“Brasil é um dos países que mais censura a internet. O Marco Civil protege você
ou os políticos?” Ora, o que isso quer dizer? Simples. Eu odeio o Partido dos Trabalhadores,
odeio o Governo Federal e, portanto, também vou odiar o Marco Civil. Nada mais
interessa. Nem os fatos.
O raciocínio do post é simples: como eu só acredito no
que quero, os números terão que dizer o que eu quero que digam. Ou seja, vou
olhar apenas para o que me interessa. E fica fácil, porque o gráfico mostra que
o Brasil efetivamente está em primeiro. Então, é só pôr tudo no mesmo saco que
o Marco Civil e esperar que os outros partilhem.
Ora, qualquer pessoa com dois dedos de testa vai
desconfiar. Para começar, é preciso saber que os EUA são o país que produz
maior número de requisições para a retirada de conteúdos da internet. Mas parece
que neste caso o que serve para os EUA não serve para o Brasil. A democracia
deles deve ser mais democrática que a nossa.
Se a pessoa não estiver mal intencionada, então vai entender
fácil. Os dados são referentes ao segundo semestre de 2012, ano de eleições no
Brasil. E um olhar mais atento para a infografia faz ver que quase metade das
requisições são baseadas na lei eleitoral. Isso explica por que os números do
Brasil subiram nesse período.
Aliás, basta uma olhadinha para perceber que os outros
itens têm a ver com processos de difamação, pornografia, direitos autorais, incitação
ao ódio e por aí vai (ver gráfico abaixo). Aliás, se quiserem culpar algum governo talvez seja
possível usar as seis - vou repetir, seis - ocorrências referenciadas (pena que a peça não
clarifique se é Federal ou Estadual).
É importante salientar que o Google publica um
“Relatório de Transparência”, onde mantém informações sobre os pedidos de
remoção de conteúdos, seja de governos ou tribunais de países em todo o mundo.
Os números apresentam tendência de crescimento, mas como mostram as imagens no
fim deste texto, no Brasil a origem dos pedidos não é o Governo Federal.
Portanto, dizer que o Marco Civil pretende trazer
censura é balela. Mas imagino que a iniciativa talvez assuste os que querem
fazer do digital uma não-terra sem lei. Porque propõe, logo nos primeiros
artigos, a “responsabilização dos agentes de acordo com suas
atividades, nos termos da lei”. Portanto, não temos que ter medo. É só para quem estiver fora da lei.
![]() |
O gráfico publicado pelo jornal norte-americano é claro. |
terça-feira, 1 de abril de 2014
50 anos, hoje
POR CLÓVIS GRUNER
Há cinco décadas o Brasil
acordou sombrio. Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, um golpe orquestrado
por forças militares e civis colocava fim ao breve interregno democrático que
se iniciara com o fim do Estado Novo, duas décadas antes. Uma democracia
sitiada, é verdade, e em permanente estado de tensão. Frágil e confrontada pelo
golpe, a ela se seguiu uma ditadura que se estendeu pelos 21 anos subsequentes,
e cuja herança nos assombra ainda, como um espectro não inteiramente sepulto. O jornalista Luiz Cláudio
Cunha resumiu assim o período e seu legado:
“A conta da ditadura de 21 anos prova
que ela atuou sem o povo, apesar do povo, contra o povo. Foram 500 mil cidadãos
investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de
subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos
inquéritos das Auditorias Militares, cinco mil deles condenados, 1.792 dos
quais por “crimes políticos” catalogados na Lei de Segurança Nacional; dez mil
torturados nos porões do DOI-CODI; seis mil apelações ao Superior Tribunal
Militar (STM), que manteve as condenações em dois mil casos; dez mil
brasileiros exilados; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos
políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e
estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados
ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245
estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proibia associação e
manifestação; 128 brasileiros e dois estrangeiros banidos; quatro condenados à
morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos
políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; três ministros
do Supremo afastados; o Congresso Nacional fechado por três vezes; sete
assembleias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa, à cultura e
às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje”.
Desde o começo deste ano não
faltam eventos a rememorar a data e avaliar suas muitas implicações: simpósios,
colóquios, programas de TV, edições e cadernos especiais na imprensa, títulos memorialísticos,
acadêmicos ou grandes reportagens revisitam sob diferentes prismas o período. Não
pretendo um balanço exaustivo dessa produção, nem tecer sobre a ditadura algum
comentário original. Mas como brasileiro e historiador, creio que é um
compromisso, além de profissional, também ético e político, contribuir para que
os eventos daquele fatídico 1º de abril não sejam esquecidos. E é nesse espírito
que gostaria de retomar três questões sobre o assunto, que considero fundamentais:
Um golpe contra outro
golpe – Consagrou-se em alguns círculos, e não apenas militares, a versão de
que o golpe de 1964 fez-se para evitar outro. Trata-se, obviamente, de uma narrativa
que interessa aos responsáveis pelas mais de duas décadas de ditadura, mas que não
se sustenta em nenhuma das muitas evidências históricas sobre o período. Em
entrevista concedida ao CPDOC da FGV, o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira
fala das muitas “provocações” que antecederam o 1º de abril, essenciais
para criar um clima de animosidade e conflito necessário para justificar a tomada
de poder pela direita civil e militar. E embora admita a tendência à radicalização
de algumas lideranças ligadas a João Goulart, é enfático quanto à inexistência
de qualquer condição ou pretensão golpista, dentro e fora do governo: a
principal força de esquerda, o PCB, além de atuar na ilegalidade, tinha um
perfil muito mais reformista que revolucionário.
Havia um ambiente de conflito,
em parte decorrente da Guerra Fria e do fantasma da ameaça soviética. Se desde
o início da década de 60 falava-se do “perigo
comunista”, em um contexto de acirramento das tensões e posições políticas, o “perigo
comunista” se transformou na ameaça de um golpe que instauraria uma “república
sindicalista” aos moldes da revolução cubana. Mas fora da propaganda que ajudava
a alimentar a atmosfera golpista, a realidade era diferente. Se por um lado as
experiências de Cuba e da Argélia, ainda recentes, inspiraram parte da esquerda
brasileira, essa mesma esquerda não tinha pretensões nem tampouco fôlego para
qualquer coisa que, mesmo remotamente, sugerisse a revolução e o golpe.
Insisto: os principais
grupos e lideranças de esquerda eram reformistas: falavam
e defendiam a reforma agrária e as reformas de base; reivindicavam o
nacionalismo contra o capital estrangeiro; produziam uma cultura que se
pretendia “popular” como um meio de “desalienar” as massas demasiadamente
influenciadas pelos padrões culturais tidos por imperialistas, etc... A ameaça de
um “golpe comunista” é apenas mais uma mentira perpetrada pelos artífices da
ditadura. Repetida tantas vezes, ainda há quem nela acredite. Mas isso não a
torna uma verdade.
A ditadura não foi apenas militar – Não haveria golpe nem
uma ditadura que perdurou por duas longas décadas sem a estreita colaboração de militares e civis. Foi essa aliança que sustentou a ditadura, inclusive
financeiramente: hoje sabemos de empresários e grupos empresariais que levaram sua
adesão ao regime para além da simpatia, ajudando a financiar a máquina da
repressão que começa a funcionar já em 1964.
Também fundamental, e que finalmente tem merecido a devida
atenção de pesquisadores, foi o apoio dos meios de comunicação. Desde os pequenos
jornais do interior – como a joinvilense “A Noticia” –, até a chamada “grande
imprensa” – “O Globo”, “Folha” e “O Estado de São Paulo”, entre outros – raras,
raríssimas foram as exceções: os meios de comunicação não apenas ajudaram a
fomentar o golpe, colaborando para que se instaurasse no país um ambiente de terror
e temor. Consolidado o governo militar, poucos foram os que recuaram efetivamente
em seu apoio inicial, declarando abertamente sua contradição. A maioria
manteve-se titubeante, em parte pela ameaça da censura, mas também porque
continuava a reconhecer a legitimidade do governo militar.
E há, conhecidos, aqueles casos em que o apoio perdurou ao
longo dos 21 anos de ditadura, como a Rede Globo, numa relação promíscua em que
os sucessivos governos foram beneficiados com o suporte midiático, tanto quanto
beneficiaram empresas e empresários de comunicação. Aliás, nunca é demais
lembrar que se a cultura da corrupção está, ainda hoje, impregnada na vida
política do país, ela encontrou no ambiente instaurado pelo golpe de 64, um
terreno fértil. Foram duas décadas de corrupção e impunidade, favorecidas ambas
pela certeza arrogante que tem os governos autoritários, que nada nem ninguém
os ameaçam.
Resistências e repressão –
A repressão feroz que se abateu sobre toda e qualquer forma de oposição, tem
sido recentemente relativizada aqui e acolá, inclusive por alguns historiadores.
Mas não há relativização possível quando se trata da garantia dos direitos
humanos fundamentais, sucessivamente desrespeitados nos porões e Casas da Morte
onde a ditadura humilhou, torturou e assassinou oponentes. Sobre esses, já se
falou muita coisa, mas é preciso que se diga uma vez mais: nem toda oposição
aos militares pegou em armas. A luta armada, aliás, representou uma ínfima parte
de uma resistência que se fez também por caminhos institucionais – com a
atuação do MDB, da OAB, de setores da igreja, entre outros –; intelectuais e
artísticos, além das muitas tentativas de manter vivos e atuantes os movimentos
sociais urbanos e rurais. A ditadura não perdoou ninguém e tratou a todos,
indiscriminadamente, como criminosos e inimigos.
Pode-se dizer, hoje, que a
luta armada foi um equívoco, e que aqueles que lançaram mãos às armas não pretendiam,
efetivamente, a retomada da democracia, fazendo da oposição à ditadura um meio
para se atingir um fim: a instauração do socialismo. Tudo isso pode ser
verdade, e ainda assim nada disso justifica a violência do Estado. Primeiro,
porque a correlação de forças era absurdamente desproporcional: um punhado de
militantes, em sua maioria mal e parcamente armados e treinados, enfrentou o
poder e o aparelho do Estado, com seus muitos mecanismos de inteligência e órgãos de vigilância, além das instituições repressivas, parte delas atuando clandestinamente. Não havia ameaça e, mesmo se ameaça houvesse,
é terrorista o Estado que trata fora dos limites da lei cidadãos que, uma vez
rendidos, já não oferecem nenhum tipo de resistência.
Mas não é só. Não é
casual que a ousadia e a violência dos grupos armados e revolucionários aumentaram
na proporção da truculência institucional, de que o AI-5, decretado no final de
1968, é o marco histórico definitivo. Nesse sentido, a ditadura não apenas forjou
as condições para que parte da oposição optasse pela resistência armada. Ela forneceu
as razões políticas para todas as formas de resistência que se opuseram a ela. É preciso
que se diga, sem receio: é legítima a insurgência contra governos ilegais
que se sustentam na e pela tirania. Sob esse ponto de vista, mesmo a luta
armada traz intrínseca, apesar de seus muitos equívocos, uma aspiração que é não
apenas legítima, mas democrática, ao se insurgir contra um governo, além de autoritário,
ilegal, imoral, ilegítimo e corrupto, constitucional e politicamente.
***
Nas últimas semanas li e
ouvi inúmeras manifestações a pedir uma “intervenção militar”. O ápice dessa
nostalgia autoritária foi a tentativa, patética e fracassada, de reeditar a
Marcha com Deus pela Família. Nas cidades onde ocorreram, marcharam lado a lado
militares; religiosos exaltados e fundamentalistas; tucanos e demos
principalmente do baixo clero; eleitores sem partido descontentes com o governo
do PT, a quem atribuem todo o mal que há no mundo; e militantes neonazistas,
entre outros. Uma fauna apenas aparentemente diversa, que nas ruas e
principalmente nas redes sociais apela pelo retorno ao autoritarismo.
O Brasil vive, principalmente desde FHC e Lula, um processo de aprofundamento e consolidação democráticos. Como toda democracia, a nossa também é frágil e precária, não porque ameaçada, mas porque em permanente construção e invenção. Estar atento às suas fragilidades implica, sim, criticá-la. Mas para fazê-la avançar, não para retroceder. Precisamos de mais democracia. Nunca de menos.
O Brasil vive, principalmente desde FHC e Lula, um processo de aprofundamento e consolidação democráticos. Como toda democracia, a nossa também é frágil e precária, não porque ameaçada, mas porque em permanente construção e invenção. Estar atento às suas fragilidades implica, sim, criticá-la. Mas para fazê-la avançar, não para retroceder. Precisamos de mais democracia. Nunca de menos.
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