sábado, 4 de julho de 2015

Maria Julia Monteiro e os racistas fora do armário

POR LUANA TOLENTINO

Temos assistido a manifestações de racismo cada vez mais violentas. Em parte, isso se deve ao fato de nos últimos anos a população negra ter ascendido socialmente e deixado de ocupar somente postos de trabalho com baixa remuneração e prestígio, como o emprego doméstico, a portaria dos prédios, os serviços gerais e tantas outras.

Ainda em menor número, hoje já é possível ver mais negros ocupando posições de destaque, em cursos de graduação, mestrado e doutorado. Cito a pergunta do antropólogo Kabengele Munanga: "Quem vai limpar a Casa-Grande se agora os negros estão na universidade?" Por essa as elites e a classe média não esperavam.

Essas mudanças têm gerado ódio e revolta, disseminados sem o menor pudor nas redes sociais. Os racistas saíram do armário. Maria Julia Monteiro, jornalista da Globo, é a vítima da vez.

Por mais que eu deteste/não suporte/tenha pavor-nojo-asco do JN, ele ainda é o jornal de maior importância do país. Por mais que eu deteste/não suporte/tenha pavor-nojo-asco da emissora dos Marinho, ela é a quarta maior rede de televisão do mundo. Não há como negar a força e o poder da Globo.

E é justamente esse espaço que Maju, com talento e competência, ocupa atualmente. Todas as noites, Maria Julia adentra a casa de milhões de brasileiros. Não como uma doméstica da novela das 6, 7 ou 8, que ao ser humilhada aceita tudo calada, de forma resignada. Mas, sim, como a “moça do tempo”, posto jamais ocupado por uma mulher negra ao longo dos 50 anos da Rede Globo. Para uma sociedade que naturaliza as desigualdades raciais, isso é inaceitável.

Soube através do Facebook, que na edição de sexta-feira, dia 3, Willian Bonner e Renata Machado falaram sobre os ataques racistas de que Maria Julia Monteiro foi alvo. Ao que parece, a palavra racismo não foi mencionada em nenhum momento. O que era de se esperar. Sabemos que cada frase dita no telejornal passa pela chancela de Ali Kamel, diretor de jornalismo e autor do livro "Não Somos racistas".

Da Globo não espero nada. Da Maju, torço para que ela tenha forças para lutar. Não com um irônico "beijinho no ombro", como ela teria dito, mas com um posicionamento firme. Racismo não é brincadeira. É uma ideologia forjada para negar a humanidade de nós negras e negros. 


Luana Tolentino é professora e historiadora. É ativista dos movimentos Negro e Feminista.

O barulho da chuva #3


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Incoerências de uma cidade em situação irregular


POR ANDREI KOLACEKE

Logo que recebeu um grande terreno como herança dos falecidos pais, Elisa decidiu utilizá-lo para construir uma casa capaz de abrigar o marido e os três filhos. Residente em Joinville, a família havia juntado, ao longo de vários anos e com muito sacrifício, o dinheiro necessário para a construção da tão almejada casa própria. Em busca do alvará necessário para iniciar a construção, no entanto, Elisa viu frustrados os planos de sua família. Já na consulta prévia, foi informada pela Secretaria do Meio Ambiente de que a quase totalidade do imóvel não poderia receber qualquer construção. Uma faixa de trinta metros de largura do terreno encontrava-se em área de preservação permanente, por estar localizada às margens de um pequeno córrego que passava na região.

No caso, o posicionamento da SEMA, embora de acordo com a literalidade da Lei nº 12.651/12 (o famigerado novo Código Florestal Brasileiro), de maneira alguma se mostrava razoável. A respeito da ocupação do solo de Joinville, o próprio Tribunal de Justiça de Santa Catarina já decidiu reiteradamente que “em área urbana não se aplicam as distâncias mínimas definidas pelo Código Florestal entre construções e margens de rios, córregos e canais[1]. De qualquer maneira, diante disso, só restaria a Elisa desembolsar pelo menos R$ 3.800,00 (conforme a tabela de honorários da OAB/SC) para tentar reverter a situação por meio de um mandado de segurança.

Independentemente do desfecho, são situações como a de Elisa que evidenciam a maneira como as questões relacionadas à preservação ambiental vêm sendo tratadas na cidade.

Construída sobre uma área recortada por pequenos cursos de água e ocupada por vastos manguezais, Joinville desde cedo teve sua expansão urbana associada à degradação do ambiente. Do século XIX aos dias atuais, foi uma ideologia utilitarista, de progresso a qualquer custo, que norteou a ocupação do solo e o desenvolvimento econômico da cidade. As indústrias mais antigas e diversos prédios públicos gradualmente ocuparam o espaço que sempre havia pertencido às matas ciliares, enquanto uma população em rápido crescimento tomou o lugar da Mata Atlântica e acumulou-se em torno do mangue. O processo de ocupação da região ocorreu de tal maneira que, passadas tantas décadas, uma aplicação literal da legislação ambiental vigente colocaria a maior parte dos espaços ocupados em situação irregular e inviabilizaria a própria existência da cidade.

Diante da impossibilidade de uma reversão completa do dano já causado, caberia ao Poder Público ao menos garantir a observância das normas federais, estaduais e municipais de proteção ao ambiente com a eficiência, a imparcialidade e a razoabilidade necessárias para torná-las eficazes; deveria, sobretudo, direcionar seu rigor a quem realmente tem oferecido riscos ao equilíbrio natural da região.

No entanto, ao invés disso, tolera, ano após ano, o funcionamento de grandes indústrias às margens de rios e córregos; diante das violações, aplica penalidades irrisórias quando comparadas às dimensões dos sujeitos penalizados; no final das contas, torna a aplicação do direito ambiental um simples custo a ser incluído na fórmula de lucratividade das atividades nocivas ao ambiente. Quando aplica a lei em sua literalidade e com o máximo rigor, o faz justamente com cidadãos como dona Elisa, que dispõem de tanto potencial para causar danos ao ambiente quanto capacidade para reagir às arbitrariedades.

Em Joinville e na maior parte do mundo, o medo de uma possível fuga de investimentos tornou o Estado pouco mais que um refém do capital. Nessa relação de poder invertida, os interesses a que os órgãos governamentais procuram atender são completamente dissonantes dos da população, vez que o modelo de desenvolvimento adotado, insustentável do ponto de vista ambiental, é responsável, como se sabe, pelo aprofundamento das desigualdades sociais e pela deterioração das condições de vida nas comunidades mais vulneráveis.

Como um engodo, a aplicação de normas ambientais em Joinville mostra-se intransigente contra os pequenos, branda contra os grandes, excessiva nos pontos em que é desnecessária e omissa naquilo em que é imprescindível.




[1] TJSC, Agravo de Instrumento n. 2014.006221-6, de Criciúma, rel. Des. Cid Goulart, j. 03-03-2015

Maternagem consciente para quem?

POR EMANUELLE CARVALHO

Há alguns anos, muito tem se falado em maternidade consciente, maternagem e criação de filhos com afeto. Entre as temáticas está a diminuição de horas trabalhadas para cuidado com as crianças, da permanência em casa e o distanciamento do trabalho até que a criança consiga fazer tarefas mínimas como comer e ir ao banheiro.

Essas premissas são de fato muito importantes e possibilitam uma criação com apego, aumentam o diálogo a ligação da mãe com a criança, o conhecimento mútuo, enfim, são muitos os benefícios. Mas o que eu quero pontuar aqui é o privilégios dessas possibilidades.

Em uma sociedade racista e machista ter um filho com a presença do pai é um grande privilégio. Segundo dados do censo IBGE de 2010, uma em cada quatro famílias é chefiada por mulheres. Como não há dados específicos sobre essas famílias, a perspectiva de vários especialistas é de que essas famílias são, em sua maioria, de mães que criam seus filhos sozinhas, com pouca ou nenhuma ajuda do pai(s) de seu(s) filhos.

E se vivemos numa sociedade que remunera suas mulheres com salários até três vezes menores que os homens - nas respectivas funções, tendo em vista que o salário das mulheres negras é em média 35% do salário de um homem branco (no caso de mulheres brancas essa média é de 63%). Como garantir que essas mães conseguiram exercer seu direito de maternidade de forma plena ou minimamente digna?

Além disso, o mercado de trabalho para mulheres é cruel, especialmente para mulheres periféricas com baixa qualificação. Para estas sobram as vagas de operadoras de telemarketing, vendedoras, atendentes além de serviços de limpeza e higiene. Essas áreas de um modo geral pedem dedicação de seis dias por semana. Ora, como trabalhar seis dias por semana, de seis horas por dia (fora o deslocamento) e ainda cuidar da casa, dar educação, fazer comida e ainda se virar com lazer, carinho, cuidados pessoais e sua própria vida enquanto mulher?

Tive meu primeiro filho aos 19 anos, em uma condição econômica bem complicada. Cheguei a ter três empregos ao mesmo tempo, entregar listas telefônicas e trabalhar como atendente de telemarketing de madrugada para conseguir ajudar no seu sustento. Fui fazer faculdade somente aos 22 anos, depois que ele tinha o mínimo de independência e eu podia me dar ao luxo de reduzir os empregos ou estágios para dois.

A lida entre faculdade e filhos só foi possível por ter ao meu lado minha mãe, que se dividia entre trabalhar em uma cozinha industrial como servente, e cuidar de uma criança pequena. Eu, além dos trabalhos da faculdade, das tarefas nos empregos, de cuidar do meu filho, ainda tinha de passar, lavar e cozinhar. Mesmo assim, eu fui uma privilegiada e hoje vivo uma vida muito mais confortável e diferente daquela.

Mas quantas de nós não tem o mesmo acesso? Quantas de nós mal conseguem sustentar a própria casa? Quantas de nós permanecem em um casamento desgastado, difícil e violento justamente porque nossas remunerações e tempo disponíveis seriam ainda mais escassos e não daríamos conta de uma subsistência mínima? Quem consegue pedir o divórcio sabendo que aos filhos e a si mesma restará o abandono e uma vida ainda mais difícil?

A sociedade cobra da mulher proletária uma postura muito superior à cobrada a um homem trabalhador e a mulher classe média. Além da tripla jornada de trabalho (casa, empregos e filhos) ainda temos como obrigação, o dever moral de afeto de prontidão, de compreensão, de estarmos bonitas e sermos bem sucedidas.

Há uma distância inimaginável entre uma mulher classe média e uma mulher periférica. Há um casamento estável, uma família estável, um carro, comida com fartura, roupas novas, brinquedos novos, há educação de qualidade, há estabilidade emocional. Eu não estou dizendo que a vida de mulheres classe média não seja o tempo todo vigiada pelo machismo e a misoginia, e seja também muito difícil, mas é preciso fazer o recorte de classe.

É preciso aproximar os discursos das realidades. É preciso lutar para modificar essas realidades e empoderar essas mulheres antes de julgarmos seu tempo, dedicação e modo de cuidar dos filhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Encontro com o ser humano


POR PATRÍCIA STAHL GAGLIOTI

Dia desses, andava pelo centro de Joinville por volta das 8 horas, quando fui abordada por um ambulante que carregava, em seu ombro, um mostruário daqueles em que se pendura bijuterias para vender nas esquinas da cidade. Ele olhou para mim e, sem muita razão, me perguntou: “Você prefere a verdade ou a mentira?”. Titubeei um pouco ao responder, mas disse: “A verdade”. À minha resposta, lançou-me então sua verdade: “Faltam R$ 2,50 para eu tomar minha cachaça, você me arruma?”.

Talvez pela minha inabilidade de negar algumas coisas, ou talvez por crer que não tenho condição nenhuma de julgar as necessidades daqueles que perambulam pelas ruas, atravessei em direção à outra calçada e fui trocar dinheiro para que o rapaz comprasse sua dose de cachaça. Como recompensa, enquanto eu iria em busca dos seus R$ 2,50, ele sacou um arame dos seus materiais e começou a confeccionar uma clave de sol, uma retribuição por eu ser uma “pessoa legal”, em suas palavras.

Com os R$ 2,50 em mãos, fui em sua direção e trocamos o artesanato pelo dinheiro. O rapaz olhou para mim – se Machado de Assis estivesse ao meu lado, talvez tivesse dito que seus olhos eram como os de Capitu, olhos de ressaca – e soltou mais uma de suas perguntas: “Olhe para as minhas mãos cheias de calo. Você acha que esse dinheiro paga esta peça que eu lhe fiz?”. “Bem, eu não sei quanto custa esta peça, mas foi você quem me pediu R$ 2,50”, respondi. “Eu não quero mais ficar na rua, quero ir embora desta cidade”, continuou.

O calo nas mãos daquele rapaz e sua indagação séria sobre o valor de seu trabalho, feita assim às 8 horas de um dia que se anunciava ensolarado, de alguma forma me tocou. Fiquei pensando, minutos depois enquanto caminhava rumo ao meu trabalho, o quanto menosprezamos o trabalho que realizam, o estilo de vida nômade que alguns escolheram para si, seus calos.

Talvez porque somos aqueles inseridos numa lógica de trabalho atrelada à rotina, ao sacrifício, acostumados a “engolir sapos” e “pastar” para “sermos alguém na vida”. E sermos alguém na vida se traduz em tudo aquilo que pode ser materializado, comprado, medido, contado e exposto aos olhos alheios em postagens nas redes sociais.

Max Weber há muito já falava sobre a característica peculiar do sistema capitalista moderno, no qual se desenvolveu uma ética própria, um modo de vida fundamentado no trabalho e na prosperidade financeira. “O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais”.

Weber também nos disse que “ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é resultado e expressão de virtude e de eficiência em uma vocação”. Mas que vocação seria a do ambulante que me abordou naquele dia na região central da cidade? A de confeccionar claves de sol, brincos e colares de quando em quando, percorrendo diferentes regiões do Brasil e da América Latina?

Parece que também não basta ter vocação para moldar o arame a seu favor e lhe dar a forma que desejar, a não ser que este seja um trabalho mecânico realizado dentro de uma fábrica, na qual se passa oito horas por dia e na qual os homens que ali trabalham podem ser merecidamente chamados de trabalhadores. Dobrar arame nas ruas centrais parece não contar. Assim como não conta fazer malabares no semáforo, ou cuspir fogo em uma apresentação de segundos para faturar trocados dos carros parados.  

E não conta porque além de sermos enquadrados em um determinado sistema de trabalho do qual estamos acostumados, somos extremamente utilitaristas. Se em nada me contribuiu ou de nada me vale as bolas rodando pelo ar antes de retornarem às mãos do malabarista, por que teria de pagá-lo por isso? Cada um com suas escolhas e com a aplicação de seu dinheiro que melhor lhe convir, mas já diria Rubem Braga, nos idos dos anos 1952: “A humanidade não vive apenas de carne, alface e motores”. O que não significa que se deva pagar por isso caso não queira, mas que a gente possa ter um olhar mais apreciativo para as coisas, causos e outros.

O fato é que depois de me pedir uma passagem para outra cidade e de eu negar-lhe por não ter verba para isso, o ambulante sorriu, me deu um abraço desejando bom dia e seguiu seu caminho. Os minutos que conversei com ele, antes de sentar na minha mesa de trabalho e desempenhar minha função costumeira – por vezes de forma mecânica – encheu meu dia de humanidade, de calo, abraços e histórias. De pessoas.

Para finalizar com Braga: “Sejamos humildes diante da pessoa humana: o grande homem do Brasil de amanhã pode descender de um clandestino que neste momento está saltando assustado na praça Mauá, e não sabe onde ir, nem o que fazer. Façamos uma política de imigração sábia, perfeita, materialista: mas deixemos uma pequena margem aos inúteis e aos vagabundos, às aventureiras e aos tontos porque dentro de algum deles como sorte grande da fantástica loteria humana, pode vir a nossa redenção, a nossa glória”.

Bom dia, Sudão







POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO


UM ENQUADRAMENTO – A idade penal em Portugal é 16 anos. Há uma tendência na sociedade – políticos, juristas, militantes das causas civis – no sentido do aumento para 18 anos. A proposta tem a curta oposição de alguns democratas cristãos (?), que pretendem reduzir para 14 anos. No entanto, é um tema que não desperta discussões e passa praticamente despercebido pela maioria da população.

Por que usar o exemplo de Portugal? Porque é um dos poucos países da Europa onde os conservadores conseguiram impor a redução. Há uma salvaguarda. Um regime especial prevê a separação dos delinquentes jovens, entre os 16 e 21 anos, dos demais reclusos. A preocupação é evitar que a prisão se transforme numa “escola do crime”. Mas por que o tema não mobiliza a sociedade? Porque daí não vem grande mal ao mundo.

Há muitas respostas possíveis, mas vou pôr o foco numa delas. Um adolescente português com 16 anos de idade já tem pelo menos 10 anos de escolaridade. Em Portugal, a escolaridade é obrigatória até ao 12º ano (segundo grau no Brasil), o que implica numa permanência na escola até aos 18 anos. Os jovens são protegidos pelo Estado, que é obrigado a prover o direito à educação. É apenas um fator, mas faz enorme diferença.

Primeiro veio a educação e a proteção, o que tornou a punição quase desnecessária. Isso explica o fato de ser um não-assunto das sociedades mais desenvolvidas.

BANDOLEIROS DO SUDÃO – No Brasil é o contrário. Em vez de falar em educação, opta-se pela punição. Mais do que isso, opta-se por uma vingança contra um alvo que, para complicar, é um alvo errado, como denunciam as estatísticas. Mas não interessa debater a redução da idade penal. O tema foi esquadrinhado nos últimos meses e os argumentos foram levados à exaustão. A questão é apodrecimento moral do Brasil.

O país caminha perigosamente para o obscurantismo e parece determinado a se tornar um enorme Sudão. O vergonhoso processo de aprovação, conduzido por Eduardo Cunha e coadjuvado por um bando de deputados mercadores (num dia dizem uma coisa e poucas horas depois recusam a própria palavra), é exemplo claro disso. O Congresso Nacional parece ter se tornado uma terra de bandoleiros da ética.

A incipiente democracia brasileira está cada vez mais insipiente. Em nenhuma sociedade desenvolvida – e estou a falar de democracias mais maduras – o povo admitiria que um dos seus máximos representantes protagonizasse golpes contra democracia, como faz Eduardo Cunha, com desassombro. O pior? É contar com o apoio da populaça, que embarca alegre no conto do vigário (no caso pastor) e do discurso fácil do ódio.

Eis o fato: no que se refere à democracia, em apenas seis meses o atual Congresso Nacional conseguiu fazer o país retroceder a níveis inimaginados até pelos mais pessimistas. É mau demais. O fascismo espreita.


É a dança da chuva.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

A criminalização de condutas opressoras sob o manto dos discursos legitimantes

POR FÁTIMA IRENE DOS SANTOS MOSER

“A prisão se torna um meio de fazer com que as pessoas desapareçam, sob a falsa promessa de que também desaparecerão os problemas que elas representam” (Angela Davis)

Dentre os diversos meios de comunicação no campo da linguagem, o discurso encontra-se como uma forma de interação intimamente ligada com a legitimidade de seu conteúdo formal, porém não necessariamente guarda a mesma legitimidade em relação ao seu conteúdo substancial. A noção do termo discurso, por abranger diferentes enfoques culturais, históricos e sociais, pode ser estudada sob diversas perspectivas teóricas.

Contudo, pode-se afirmar, sumariamente, que tem por objetivo não somente transmitir um determinado conjunto de informações, mas transmiti-lo de maneira significativa, ou seja, de modo que adentre a esfera psicológica do interlocutor. Segundo George Orwell, “no nosso tempo, o discurso e a escrita política são em grande medida a defesa do indefensável.” Com efeito, a elaboração de um discurso não necessariamente pressupõe a utilização de um critério de racionalidade ou de comprometimento com a verdade.

Do contrário, pode desempenhar a função de produzir (arbitrariamente) uma verdade, inclusive utilizando-se de apelos emocionais para submeter o maior número possível de pessoas à sua aceitação. Este tipo de interferência – largamente utilizada para a manutenção das relações de poder nas sociedades que lhe estão submetidas – expressa a formação daquilo que se denomina discurso dominante ou legitimante.

VERDADE - A propósito, adentrando brevemente na esfera da psicologia, sabe-se que a reprodução de uma “verdade” resulta muitas vezes da herança de um senso comum coletivo (inconsciente coletivo) transmitido de uma geração à outra, sem que necessariamente se compreenda ou conheça a razão de seu surgimento. Assim, não poucas vezes um discurso legitimante é amplamente difundido sem que sequer se pondere de forma crítica e fundamentada a motivação de sua existência.

No que tange ao Direito Penal, campo de estudo do presente artigo, denota-se flagrantemente a utilização deste tipo de discurso como meio de tentar legitimar o sistema punitivista do Estado. Para tanto, induz-se a ideia de que a punição a partir da segregação dos indivíduos desviantes serve como meio de proteger os cidadãos “de bem” e garantir a paz social, uma vez que, além de proporcionar sensação de segurança, projeta-se como instrumento hábil à prevenção do crime pela (suposta) ressocialização no cárcere.

Essa ideia atua como legitimante de um discurso que, na verdade, além de esconder a real intenção do Estado de obter maior controle e poder de decisão, alimenta-se no sentimento de medo que se difunde silenciosamente no inconsciente popular – sobretudo por meio da propagação massiva de conteúdo violento pela mídia que nada almeja que não lucro em razão da audiência.

Assim, diante da sensação de violência e de impunidade, os indivíduos acabam por cobrar do Estado medidas de proteção e segurança que os tranquilizem em relação aos seus “inimigos” – e assim curiosamente cerceiam a própria liberdade em uma plena demonstração de “servidão voluntária” (La Boétie). Como resposta, o Estado fornece (mais) formas de repressão penal, seja tipificando novas condutas ou aumentando a pena de outras. 

LIBERDADES DEMOCRÁTICAS - Partindo de todas as colocações acima esboçadas, não há dúvidas que os atuais debates sobre opressões revelam a necessidade urgente de se problematizar os discursos oportunistas que tentam legitimar a criminalização das condutas opressoras específicas. É preocupante perceber que as dores dos movimentos de defesa das liberdades democráticas – lutas com um “viés de esquerda”, porém não necessariamente – têm sido usadas como argumento de captação de credibilidade política, haja vista que se trata de um segmento normalmente avesso à tutela penal como instrumento de poder do Estado. 

Isso porque o sentimento coletivo de insegurança, a ausência de senso de alteridade no convívio social e as frustrações advindas das desigualdades de toda sorte criam campo fértil para a retórica do paternalismo estatal, a qual é por vezes ingenuamente acolhida pelas vítimas das opressões. Desse modo, uma vez cegos pelo desejo de punir aqueles que apontam como responsáveis pela violência que sofrem, os adeptos desses segmentos aplaudem os processos de criminalização sem notar que, inevitavelmente, não somente esses processos são incapazes de descontruir qualquer estrutura opressora como contituem um permanente estado de conflito entre os indivíduos.

Exemplo recente deste tipo de manipulação encontra-se na criminalização do feminicídio. A lei 13.104/15, aprovada em um momento de baixa popularidade do governo, inseriu como qualificadora do crime de homicídio a conduta que atentar à vida da mulher por sua condição de sexo feminino, seja em situações de violência doméstica e familiar ou em razão de menosprezo ou discriminação a essa condição, bem como incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos da Lei 8.072/90.

Esse tipo específico de violência homicida contitui um dos mais brutais atos de violação aos direitos humanos, sobretudo por ser tão recorrente. Assim, não é difícil perceber a facilidade de manipular a legitimidade do discurso de criminalização dessa conduta. Em uma sociedade extremamente machista e misógina, na qual o regime desigual de gênero viola truculentamente os direitos da mulher tanto na sua esfera física quanto psicológica, o Estado finge dar ouvidos às vozes dos movimentos feministas e responde (apenas) com repressão penal.

Aliás, o próprio projeto de lei originário justifica a tipificação do feminicídio pelo reconhecimento da morte de mulheres causada por desigualdade de gênero e pela mensagem à sociedade de combate simbólico à impunidade. Contudo, a justificativa do projeto não passa de uma denúncia sobre uma situação fática que, embora bastante grave, não serve de sustento à existência de uma lei penal, mesmo porque criminalizar ou não uma conduta está longe de significar o desaparecimento das motivações que lhe deram origem. 

REPRESSÃO PENAL - Na verdade, esse tipo de resposta em nada contribui para o reconhecimento dos direitos da mulher e para o avanço na construção de uma sociedade igualitária. O esforço para evitar a morte das mulheres deve se concentrar em ramos distantes do sistema penal, haja vista que seu único instrumento de (tentativa de) proteção é um castigo desigualmente distribuído e incapaz de cumprir suas próprias funções (para maior entendimento acerca da problemática, veja-se o seguinte artigo: link

Não é demais lembrar que o Brasil, apesar de ocupar o segundo lugar em número de presos nos últimos 15 anos, é recordista em número de homicídios, o que leva à possível conclusão de que a repressão penal é absolutamente ineficaz para a prevenção de crimes (sobre a ineficácia do encarceramento: http://www.cartacapital.com.br/revista/838/se-cadeia-resolvesse-4312.html).

Outrossim, ainda do ponto de vista das pautas feministas, vale lembrar que a aposta no encarceramento implica diretamente no aumento de mulheres que, ao visitarem os parentes presos, são diariamente submetidas a (para não dizer “violentadas com”) revistas vexatórias e extremamente humilhantes. Abraça-se o paternalismo estatal sem que se enxergue a faca nas costas dos próprios direitos e garantias.

Não se questiona a própria (e mais devastadora) opressão do Estado. Não há dúvidas, portanto, que é preciso reconhecer que a crescente adesão de diversos setores dos movimentos sociais à ideologia punitivista proporciona um controle ainda maior do poder do Estado e derruba as perspectivas de construção gradativa de uma nova sociedade.

Clamar por poder punitivo significa sucumbir à uma estrutura política pragmática e imediatista, na qual pouco interessa atender de fato aos anseios dos oprimidos senão quando sob pressão das agendas eleitorais ou quando em situação de baixa popularidade.
Significa incentivar a crueldade da repressão informal contra aqueles que correspondem à imagem de criminosos, aqueles que invariavelmente são selecionados pelo sistema em razão de sua vulnerabilidade social, em razão de sua cor, em razão de qualquer diferença incômoda em relação ao resto da sociedade considerada “normal” e “controlável”.

Significa, ademais, compactuar com um método comprovadamente ineficaz, no qual suas falhas estruturais permitem que somente uma pequena parte da totalidade dos crimes cometidos seja alcançada pelas mãos do sistema. Isto é, punem-se certos grupos sociais em vez dos delitos em si. Em outras palavras, significa apoiar um sistema que pune somente uma parte da sociedade composta majoritariamente por pretos e pobres.

Um sistema que objetifica os indivíduos que por ele passam, tornando-os escravos eternos de uma estigmatização capaz de afastá-los cada vez mais da aceitação social e de suas próprias identidades, isto é, uma estigmatização que atua na direção justamente contrária da ressocialização pretendida. Significa, por fim, compactuar com a institucionalização da violência, com o aumento da reincidência, com as privações ilegais de liberdade, com as torturas, com as desigualdades, com a intolerância, com a marginalização e com as revistas vexatórias – tudo aquilo que os movimentos de direitos humanos deve(ria)m repelir.

Em resumo: é preciso transcender o imaginário punitivista e adentrar em debates construtivos sobre práticas éticas para abolição dessas opressões, defendendo os direitos humanos em quaisquer circunstâncias e reafirmando os valores de liberdade. Há outros meios de intervenção mais efetivos para enfrentamento dos comportamentos indesejados e para a concretização de direitos humanos fundamentais.

Segundo Karam, juíza aposentada, “É preciso buscar instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o fácil, simplista e meramente simbólico apelo à intervenção do sistema penal, que, além de não realizar suas funções explícitas de proteção de bens jurídicos e evitação de condutas danosas, além de não solucionar conflitos, ainda produz, paralelamente a injustiça decorrente da seletividade inerente à sua operacionalidade, um grande volume de sofrimento e de dor, estigmatizando, privando da liberdade e alimentando diversas formas de violência.”

Afinal, sucumbir ao sistema penal nada mais é que perder a luta pelos próprios direitos e subestimar a força do maior instrumento de opressão e promoção de desigualdades. Um sistema de sofrimento estéril. 

 Fátima Irene dos Santos Moser é acadêmica do 10.º semestre do Curso de Direito (Univille)

“A gente aprende com as ocorrências...”

POR VALDETE DAUFEMBACK NIEHUES



A catadora de lixo Estamira, personagem do filme documentário que leva o mesmo nome, em uma de suas reflexões, afirmou que a escola ensina a copiar e que o caminho para a aprendizagem passa pelas ocorrências.
Nas duas últimas semanas presenciamos um debate sobre racismo envolvendo um campo de poder ao estabelecer aí relações de forças institucionais e pessoais.


A ocorrência do fato, ou seja, a apropriação de uma personagem, a namoradeira, por uma educadora escolar, para fazer bonito em uma festa junina, desencadeou um debate que extrapolou as fronteiras da sociedade joinvillense, quando, em outros tempos não teria chegado ao grau de relevância que chegou. Importante mencionar que o fato ocorreu alguns dias após o município de Joinville ter aderido ao Sistema Nacional de Promoção Racial. 

A desconsideração pelas minorias étnicas faz parte de um pensamento tradicional que se naturalizou pelas condições históricas. Durante séculos os afrodescendentes ocuparam uma posição de inferioridade em todo país, mesmo nos lugares em que sua presença é maioria, isso porque o capital econômico contribui relevantemente na mensuração das esferas de poder. 


No entanto, a partir de movimentos sociais em favor da democracia e da representatividade popular no cenário político, a sociedade deu um passo significativo ao instituir na Constituição Federal de 1988, no Art. 5º, inciso XLII, que a prática do racismo constitui crime. Além do que a Carta Magna dispõe de mecanismos que dão suporte à criação de leis que coíbem o preconceito e discriminação às minorias étnicas, como, por exemplo, a Lei 9.459/97, que entre outras coisas, define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.


Sequencialmente, o Estatuto da Igualdade Racial (Projeto Lei nº 3.198, de 2000) foi transformado em Lei nº 12.288, em 2010, visando o combate à discriminação racial e desigualdades raciais que atingem os afrodescendentes.  Sem falar que desde 2003, de acordo com a Lei nº 10.639, as escolas públicas e particulares da educação básica foram obrigadas a inserir em seus currículos conteúdos que contemplem a história e cultura afro-brasileira. 

Com isso, entende-se que não há razão para que educadores desconheçam o teor das leis acima mencionadas, uma vez que delas necessitam para se prepararem ao assumir o compromisso de educar. No caso da professora que se pintou para representar a personagem namoradeira, uma parcela da sociedade não considerou esta atitude como uma expressão de racismo por entender que as circunstâncias do ambiente festivo, a festa junina, justificam a “brincadeira”. Houve quem justificasse o episódio como um mal entendido, pois a professora teria ligações com a cultura do local de onde surgiu a personagem em questão. 


Desta ocorrência, seguindo a lucidez de Estamira, podemos tirar a lição de que em Joinville há um movimento importante que está atento às expressões que sinalizem racismo; que a sociedade tomou conhecimento da importância de se refletir sobre a naturalização e superação do racismo; que a educação escolar precisa estar atenta ao Estatuto de Igualdade Racial; que as instituições de ensino precisam qualificar seus profissionais se desejarem fazer a diferença na promoção da cultura da paz.


Na literatura, a namoradeira poderia ser tanto mulheres negras como brancas, as quais, na sociedade patriarcal ficavam debruçadas no parapeito da janela à espera de um moço para casar. Mas, com raras exceções, as negras é que ficaram popularmente eternizadas em esculturas e sob o estereótipo de vadia (desocupada, preguiçosa), ou fofoqueiras. Neste sentido, pesa aqui a razão de que lideranças do movimento negro ter se manifestado contrariamente à representação considerando um ato de racismo. Por que a professora pintou o rosto para parecer negra? Por que não incorporou a namoradeira branca?  Para reproduzir um ato de racismo naturalizado? Ah, para alegrar pais e alunos desmotivados, afinal, o folclore serve para justificar o injustificável.