terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Ditaduras e autocracias. Qual é a diferença?

POR JOSÉ ANTONIO BAÇO

Faz algum tempo, logo após a queda do Muro de Berlin, o pensador norte-americano Francis Fukuyama publicou o famoso livro “O Fim da História e o Último Homem”, que celebrava a vitória da democracia liberal e a realização da ideia kantiana da paz perpétua. Um momento de otimismo logo foi desmentido pela realidade. A história estava viva e a paz era passageira.

Quando tudo apontava para uma evolução rumo à democracia, o mundo começou a caminhar para novas convulsões. E daí surgiram autocracias e ditaduras. Um Bolsonaro, um Trump ou um Erdogan, por exemplo, não são frutos do acaso, mas sim resultados de um processo histórico. Porque há muitos fatores a contribuir para o crescimento dos regimes autoritários.

Em termos da geopolítica global, é importante considerar o declínio da influência dos Estados Unidos nas últimas décadas. Os norte-americanos são firmes na defesa da democracia liberal, mas têm cometido erros ao tentar importar o modelo a outros países que não têm essa tradição. Essa inegável perda de força dos EUA abre espaço para regimes autoritários.

Outro fator importante é a ascensão da China como potência global. O país asiático, que pode ser considerado um capitalismo de estado, tem uma matriz autoritária e é cada vez mais influente na política externa, mesmo sem precisar intervir diretamente em conflitos. A China reprime apoia regimes autoritários como Rússia, Irã, Venezuela ou Coreia do Norte.

No que se relaciona à política mais pedestre, é preciso ter em mente que a democracia liberal está numa encruzilhada. O sistema tem sido desafiado por uma série de fatores, como a ascensão da extrema-direita, a polarização política e a corrupção. Esses vetores contribuem para o enfraquecimento das instituições democráticas e a ascensão de regimes autoritários.

Também é importante considerar o papel da tecnologia, que pode ser usada para reprimir a dissidência e manter os povos sob controle. Os regimes autoritários estão cada vez mais a usar a tecnologia para fortalecer o seu poder. Hoje o WhatsApp é muito mais eficaz para passar uma mensagem do que um horário em prime time na televisão. A vitória de Bolsonaro não deixa mentir.

Hoje há muitas ditaduras e autocracias. Não são a mesma coisa? Há nuances. Podemos dizer que as ditaduras existem em países como a China, Coreia do Norte, Irã ou Birmânia. As autocracias estão instaladas em lugares como Rússia, Arábia Saudita, Turquia, Egito, Vietnã. Qual a diferença? A separação nem sempre é clara, porque algumas características se sobrepõem.

O que define uma ditadura? Em primeiro lugar, o governo é centralizado nas mãos de um indivíduo ou de um pequeno grupo. Há repressão política, incluindo prisão, exílio e assassinato de opositores. E, claro, temos a restrição dos direitos políticos e civis, incluindo liberdade de expressão, reunião e associação. Os poderes não são independentes.

Em que diferem as autocracias? Em quase nada. Mas realizam eleições multipartidárias, apesar de os direitos políticos e civis serem restringidos. O governo também é controlado por um partido ou grupo dominante e a oposição é reprimida. Os poderes são cooptados pelos que detêm o poder, em especial no plano do executivo.

É claro que pode haver divergências conceituais, mas há um facto indesmentível: nenhum desses dois modelos é aceitável para quem prefere a democracia, mesmo com todos os seus defeitos. Mas, infelizmente, o bolsonarismo brasileiro é a prova de que há muita gente que não quer saber de democracia. Há gente disposta a abrir mão da própria liberdade, como já salientou Étienne de La Boétie

É a dança da chuva.

Foto: Sima Ghaffarzadeh


segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

A guerra na Ucrânia já tem um vencedor: a indústria armamentista dos EUA

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Só alguém muito distraído pode não ter percebido. A indústria das armas dos EUA está faturando na Ucrânia. E é bom ver um jornalão a falar do tema, já que a imprensa internacional tem dado pouca ou nenhuma atenção. O “The Washington Post” publicou, no ano passado, uma matéria a revelar que a ajuda armamentista dos EUA à Ucrânia estava a dar um enorme impulso à indústria de defesa americana.

A reportagem referia um estudo do Stimson Center, um think tank de Washington, segundo o qual mais de 90% do dinheiro da ajuda militar para a Ucrânia estavam a ser usados para comprar armas da indústria armamentista norte-americana. Eis os números: dos primeiros US$ 7,6 bilhões em ajuda militar à Ucrânia, US$ 7,3 bilhões teriam sido usados na compra de armas nos EUA.

Na semana passada, um novo texto voltou ao assunto, desta vez assinado por Marc Thiessen, colunista conservador do mesmo jornal. A denúncia é reforçada, mas como uma nuance a ter em conta. É que os conservadores - influenciados pelo trumpismo - ameaçam fechar as torneiras da ajuda à Ucrânia. É parte da estratégia para tentar detonar a candidatura de Joe Biden às eleições de 2024.

O argumento é que, sob o pretexto de ajudar a Ucrânia a se defender da invasão russa, foi criado um negocião para a indústria bélica norte-americana. Além disso, os republicanos argumentam que isso faz a aumentar as tensões entre os Estados Unidos e a Rússia (Trump sonha ser um Putin). Mas há um contrassenso: será que o lobby da indústria das armas, que pende mais para o lado republicano, vai na conversa?

Os republicanos estão a criar problemas para a renovação das ajudas à Ucrânia, o que pode ter algum efeito sobre a opinião dos trumpistas. É a interpretação do slogan "America First". A indústria armamentista sempre contou com os republicanos, mais propensos aos gastos na defesa e à manutenção do poder militar dos EUA, não vai assistir tudo passivamente. Afinal, a pátria dos capitalistas é o dinheiro. 

É a dança da chuva.

Foto: Алесь Усцінаў


quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Svetlana Alliluyeva, a filha rebelde de Stalin

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Uma história de amor e ódio. Em 1942, a jovem Svetlana Alliluyeva, filha de Joseph Stalin, se apaixonou por Alexei Kapler, um cineasta judeu. Nessa época, ela tinha 16 anos e ele era já tinha feito 40 anos. É claro que Stalin desaprovou o romance, não apenas pela idade de Kapler, mas também por ser judeu e de origem social inferior.

Os dois se conheceram quando ela foi assistir a um filme que ele dirigiu e começaram a se encontrar em segredo. O romance rapidamente se tornou sério. A filha do ditador soviético ficou grávida, mas sofreu um aborto espontâneo. Stalin soube do romance e ordenou que Kapler fosse preso. Em 1943, o cineasta foi preso e sentenciado a dez anos de confinamento em um gulag, uma prisão de trabalho forçado na União Soviética.

A causa exata da prisão não é clara, mas acredita-se que Stalin tenha usado o romance como pretexto para se livrar de um inimigo potencial. Kapler era um homem culto e bem-sucedido e Stalin pode ter temido que ele influenciasse sua filha de forma negativa. O romance entre Svetlana e Kapler, um exemplo trágico do poder e da brutalidade de Stalin, teve um impacto profundo na vida de ambos. 

A jovem nunca se recuperou da perda de seu amor e ele nunca foi o mesmo depois de sua prisão. Aleksei Yakovlevich Kapler nasceu em Kiev, na Ucrânia, em 1903, e morreu em Moscou, Rússia, em 1979. Trabalhou como cineasta, roteirista, ator e escritor proeminente. Foi conhecido pelo seu trabalho em filmes como "Lênin em 1918", "Homem Anfíbio" e "O Pássaro Azul". 

Svetlana Alliluyeva teve uma vida conturbada e cheia de tragédias. Teve três casamentos e dois filhos. Em 1967, Svetlana fugiu da União Soviética para a Índia, num episódio de grande repercussão internacional. Dois anos depois, mudou para os Estados Unidos, onde se naturalizou e viveu até sua morte, em 2011 (ensaiou uma volta à URSS por causa da doença de um filho, mas acabou por sair novamente).

É a dança da chuva.

Svetlana e Joseph Stalin




quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Está aberta a temporada de caça ao Dino

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

É o tema do momento. A oposição ranhosa não quer ver Flávio Dino no Supremo Tribunal Federal. Os "argumentos" vão se sucedendo. Os opositores políticos e a velha imprensa vendilhona apostaram tudo na negação do “notório saber jurídico”, que é uma das condições para a ascensão à máxima corte. E chegamos ao ridículo de ver um “formador de opinião” de notória ignorância jurídica a bater de forma insistente e irritante nessa tecla.

É tudo conversa para boi dormir. O currículo de Flávio Dino indica que ele possui um conhecimento jurídico amplo e profundo, sustentado uma sólida formação acadêmica e experiência profissional. Além de que a ideia de notório saber é subjetiva. Em termos práticos, caberá ao Senado Federal, através de arguição, decidir se Flávio Dino possui o conhecimento necessário para o cargo de ministro do STF. Não será a imprensa a dar o veredito. E ponto final.

Os motivos de natureza política são evidentes na crítica. Os opositores apontam uma tentativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de consolidar a hegemonia da esquerda no STF. A tese é de que Dino seria um aliado fiel de Lula (e do PT) e que a sua atuação no tribunal seria pautada por interesses políticos. É irônico. Porque essas mesmas pessoas assobiaram para o lado nas indicações de Kassio Nunes Marques e André Mendonça, que Bolsonaro considerou os seus 20% no Supremo.

A atuação como ministro da Justiça é outro dos argumentos falhados. Os opositores acusam Flávio Dino de ser parcial na condução de investigações e até tentaram pôr a conta do 8 de janeiro no seu currículo. Teses tão frágeis que beiram o ridículo. Aliás, para alguns parlamentares pretendem. uma retaliação pelas tareias que Flávio Dino aplicou em muitos deles, nas infindáveis convocações para debates no parlamento. Os deputados bolsonaristas não cansam de passar vergonha.

E agora surge um bruaá capitaneado pela inenarrável Michelle Bolsonaro, que surge com o argumento de que comunista não pode ser cristão. “Se ele é comunista, ele é contra os valores e princípios cristãos. Não existe comunista cristão, isso é de contramão com a Palavra de Deus. A gente não pode aceitar esse tipo de gente no poder. Já imaginou se esse homem chegar ao STF o que vai acontecer com a gente?”, questionou Michelle Bolsonaro.

Enfim, seguindo o script bolsonarista, a ex-primeira-dama usa o medo como arma. “O que vai acontecer com a gente?”. Ora, o mesmo que tem acontecido até agora. Nada. As igrejas continuam abertas, nenhum fiel foi incomodado. O bolsonarismo está apenas a tentar ressuscitar o espectro do comunismo como um bicho-papão. É como as crianças com medo de monstros em baixo da cama. Para os bolsonaristas, comunismo é toda pessoa que pense diferente. Ou melhor, toda pessoa que pense.

Não é possível antecipar se Flávio Dino vai ser aprovado ou não. Mas há leituras que podem ser feitas nesse xadrez político. O presidente Lula tem muitos anos de janela e não ia atirar Flávio Dino aos leões. E a aproximação a Rodrigo Pacheco, atual presidente do Senado, muito provavelmente tem relação com a aprovação de Dino. O presidente é um negociador exímio e não faria uma indicação que corresse o risco de ser rejeitada. É esperar para ver.

É a dança da chuva.



terça-feira, 5 de dezembro de 2023

E se a Rússia anexasse Portugal?

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

É um fait-divers, mas não resisto a comentar. Sabem qual a última da terra de Putin? Um dia destes uns estranhões começaram a falar na anexação de Portugal. Foi durante um programa de debates na televisão estatal russa. O apresentador Vladimir Solovyov defendeu a ideia: a Rússia deveria anexar Portugal.

Por quê? O argumento é de que Portugal seria um aliado no contexto da guerra na Ucrânia. Já começou mal, amigo. Fora o Partido Comunista Português, ninguém no país tem demonstrado qualquer simpatia pelos russos no caso da invasão da Ucrânia. E os comunistas aprenderam que essa posição traz perdas eleitorais.

Solovyov afirmou que Portugal é um país "pró-russo", com uma longa história de relações com o país. Mas é uma besteira tomar Portugal como aliado na guerra da Ucrânia. E o tipo também argumentou que a anexação de Portugal daria à Rússia um acesso estratégico ao Oceano Atlântico. Bobinho esse Solovyov. 

O olho no Atlântico tem razões de ser. É que apesar de Portugal ser o 16º país da Europa em termos terrestres, tudo muda quando estamos a falar do mar, porque o país sobe para o 5.º posto em termos dimensão marítima. O potencial estratégico e económico do mar, a tal economia azul, pode vir a ser o futuro do país.

Portugal está alinhado na defesa da Ucrânia, como todo o bloco europeu (à exceção de Orbán, da Hungria). Os portugueses devem ficar preocupados? Claro que não. É tolice. Mas o fato dessa ideia ter vindo a público mostra que, sob a batuta de Putin, os russos andam com ímpetos imperialistas.

A ideia é tonta, mas há uma coisa a salientar. Margarita Simonyan, uma das principais propagandistas do Kremlin e editora-chefe do Russia Today, disse na ocasião que a Rússia não precisa da nação portuguesa, mas que “gostaria muito" de a ter. Enfim, parece que o imperialismo é o sonho molhado dos putinistas.

É a dança da chuva.