quarta-feira, 28 de junho de 2023

Em inglês, os caras até parecem gênios

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Pensamento é linguagem. Quando a gente está a pensar usa palavras e daí a importância de saber o valor exato de cada uma delas. É também uma forma de defesa, porque manipulação das palavras é uma das marcas do capitalismo. Ou seja, é uma estratégia ligada à construção de narrativas que visam proteger e promover os interesses econômicos e comerciais.


A introdução de léxicos estrangeiros, sobretudo do inglês, é uma prática comum no meio empresarial. Já notaram que idiotice dita em inglês fica logo parecendo uma coisa do outro mundo. Mesmo as piores sacanagens ficam parecendo obras de anjinhos. Os gurus da economia, por exemplo, usam e abusam. Duvida? Então vamos ver alguns exemplos de coisas que, em inglês, assumem significados quase inofensivos.


Downsizing – Na língua dos administradores significa uma inocente redução dos níveis hierárquicos de uma empresa. Mas em linguagem de gente quer dizer que algum gestor inepto não soube fazer o seu trabalho e, para salvar o couro, teve que fechar departamentos e demitir uma porrada de gente. Há uma diferença entre dizer “o cara demitiu funcionários” ou “o administrador procedeu a um downsizing na empresa”. Em inglês, o sujeito até parece um Einstein.


Outsourcing – É a tal “terceirização”: uma empresa compra soluções a outra empresa. Ou seja, demite os seus funcionários (que tinham custos laborais e outras coisas mais), perde o know-how acumulado e passa a comprar de outro sujeito que produz com custos menores. E por vezes com os mesmos trabalhadores que foram demitidos.


Team building - É uma estratégia para motivar os trabalhadores e, desta forma, melhorar as performances no trabalho em equipe. O team building pressupõe uma série de atividades em que a colaboração entre trabalhadores e o eixo central. Na realidade são ações que contam com benefícios fiscais e pouco custam às empresas.


Outplacement – Isso acontece depois das demissões do tal downsizing. É quando se tenta recolocar um ex-trabalhador numa outra empresa. Dito em língua de gente simples quer dizer: “Nós te demitimos e estamos nos cagando para ti. Mas somos simpáticos e até indicaremos um consultor para te orientar. Também vamos escrever umas cartinhas para levares a outras empresas. No fim vais achar que nós, que te demos com o pé na bunda, somos mais bonzinhos que a Madre Teresa de Calcutá”.


Empowerment – É empoderamento em português. Significa dividir o poder de decisão com o grupo de trabalho. É uma forma de um superior se livrar de tarefas chatas e passar a batata quente para as mãos dos subordinados. E o chefe sempre tem alguém para pôr a culpa se a coisa sair mal.


Benchmarking – Parece sofisticado, né? É tomar decisões a partir do exemplo de outras empresas. Ou seja, quando um administrador não tem a menor imaginação, ele copia os outros. Copiar é mau. Mas um cara que faz “benchmarking” é capaz de acabar candidato ao Nobel de Economia (que, por sinal, é um equívoco, porque só há Nobel de Física, Química, Medicina, Literatura e Paz).


É a dança da chuva.

Or rephrasing, it's the rain dance.


Foto: Ron Lach


domingo, 25 de junho de 2023

Entender fatos complexos com tweets? Não dá...

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Há uma diferença notória entre o jornalismo brasileiro e o europeu. É a atenção que se dá ao noticiário internacional. Todos os dias um cidadão europeu é impactado por muitas horas sobre os fatos do mundo. Tudo  com analistas que vêm do próprio jornalismo, mas também de especialistas nessa área, sejam acadêmicos ou pessoas com autoridade nas áreas em discussão.

Isso não é uma realidade no Brasil. Lembro, por exemplo, que em tempos passados os grandes expoentes da análise internacional eram jornalistas como Newton Carlos, precursor do colunismo internacional na mídia brasileira, ou Clóvis Rossi, que passou a maior parte da carreira na Folha de S. Paulo. O fato é que não há uma tradição nessa área e o Brasil parece mesmo ser “periférico”.

Quando estava no jornalismo diário, houve ocasiões em que ocupei a função de editor internacional, sempre de forma pontual. Foi o suficiente para  perceber a dificuldade do trabalho, uma vez que o acesso à informação era muito limitado. O que um editor de internacional fazia era "baixar" as notícias que chegavam das agências. Não era preciso saber de geopolítica e nem mesmo falar línguas.

Há os fatos. Os jornalistas europeus têm acesso mais direto às fontes de notícias internacionais devido à proximidade geográfica com os principais centros de poder. Isso permite uma cobertura mais abrangente e detalhada dos acontecimentos globais. Além disso, muitos países europeus têm uma longa tradição de jornalismo investigativo e de qualidade.

No caso do Brasil, em primeiro lugar, a distância geográfica pode dificultar o acesso direto às fontes de notícias internacionais. Além disso, os meios de comunicação brasileiros têm uma realidade política, econômica e social específica, que pode influenciar as prioridades da cobertura jornalística. Tudo isso sem falar que o jornalismo passa por dificuldades financeiras.

Não surpreende que hoje em dia, quando temos um evento mundial como a invasão da Ucrânia, mesmo os cidadãos considerados mais instruídas estejam a patinar na análise. Isso é resultado da falta de tradição, de referências ou de uma cultura jornalística sem foco no internacional. Muitos acham possível entender fenômenos complexos com base em ideias desgarradas das redes sociais. Não dá. Tem que estudar.

Isso torna possível que uma certa “esquerda” brasileira acabe aderindo às teses da propaganda russa, uma máquina poderosíssima. Os sites de “referência” dessa esquerda estão subordinados ao ideário de Putin. Não por noções de geopolítica, mas por uma ideia simplória: "eu sou contra os EUA e vou aderir a tudo o que for contra". Mesmo que o regime de Putin seja uma ditadura. Esquerda?

Para terem uma ideia, hoje, num domingo do verão europeu, já ouvi dois programas de uma hora totalmente dedicados ao internacional. Em debate, a ação humanitária na Europa, a reconstrução e o Erasmus (programa das universidades) na Ucrânia, eleições na Espanha, tensão no Kosovo, o legado de Berlusconi e, claro, os fatos envolvendo o grupo Wagner.

Isto é apenas para deixar a ideia de que um cidadão europeu está exposto a mais horas de noticiário internacional do que os brasileiros. E que análises sérias não podem ser feitas apenas a partir de tweets ou sites que sequer têm jornalistas no exterior e limitam-se a fazer um corte e cola de serviços gratuitos (não há almoços grátis). É preciso mais, muito mais…

É a dança da chuva

Newton Carlos foi um dos expoentes do jornalismo internacional no Brasil


sexta-feira, 23 de junho de 2023

Do Titan ao Kursk, a implosão catastrófica da memória

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO 

A tragédia do Titan emocionou meio mundo. Durante dias as televisões não falaram de outra coisa, o que contribuiu para atiçar o interesse das massas. Mas todas as dúvidas foram dissipadas quando a guarda costeira dos EUA confirmou que os ocupantes do submergível haviam morrido de uma “implosão catastrófica” no fundo do Atlântico.

Sem surpresa, as redes sociais passaram a fazer circular versões, teorias e até foram desenterrar fatos históricos. Em tempos de guerra, com o foco na invasão da Ucrânia, houve quem lembrasse de uma notícia antiga: o submarino usado por James Cameron para filmar “Titanic” era russo, por ser mais seguro. Os adoradores do proto-ditador Putin celebram essa “superioridade” russa.

É apenas um problema de memória. Ninguém parece lembrar do submarino russo Kursk, que afundou no Mar de Barents, em 2000, matando toda a tripulação. Dos 118 tripulantes a bordo, apenas 23 conseguiram sobreviver inicialmente e se refugiar em uma seção danificada do submarino. No entanto, devido à lentidão no resgate, morreram todos por falta de oxigênio.

O presidente Vladimir Putin mostrou relutância em aceitar ajuda externa para o resgate dos tripulantes. Mas à medida que o tempo passava, a pressão aumentou e ele acabou aceitando assistência internacional. No entanto, por causa dessa resistência os mergulhadores europeus só entraram em ação oito dias depois. E já era tarde.

A abordagem de Vladimir Putin em relação ao desastre do Kursk foi alvo de discussões e controvérsias, com questionamentos sobre a resposta russa. Mas hoje isso já não é assunto e a memória do Kursk representa apenas uma implosão catastrófica na memória dos adoradores de Vladimir Putin.

É a dança da chuva.

Foto: Harvey Clements

segunda-feira, 19 de junho de 2023

BRICS: o lado bom e o lado perigoso

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Há uma nova configuração geopolítica a ser formada. A lógica de uma potência hegemônica, no caso os Estados Unidos, está a ser posta em xeque com o crescimento da China. No caso do Brasil, a integração nos BRICS aponta o caminho para um novo rumo de integração econômica. Até aí tudo bem.

Se a aliança dos BRICS é boa na economia, não é possível dizer o mesmo no plano da política. O Brasil é um país que procura a consolidação de democracia, depois de se safar das atrocidades bolsonaristas, e os integrantes do BRICS não são países muito focados no respeito pelas liberdades individuais.

- A Rússia tem muitas restrições no que toca às liberdades civis, incluindo limitações à liberdade de expressão, imprensa e manifestação. Há restrições à atividade política e uma tendência de supressão da dissidência. Tudo isso sem falar que Putin decidiu invadir a Ucrânia.

- A Índia, que vinha mantendo uma democracia vibrante e uma imprensa livre, nos últimos anos tem enfrentado restrições à liberdade de expressão, especialmente em relação a críticas ao governo. Tudo isso sem falar em  questões de intolerância religiosa e censura online.

- A China tem um sistema político autoritário, com restrições significativas no plano das liberdades civis. Há censura estrita na mídia e na internet, controle sobre organizações da sociedade civil e violações dos direitos humanos em áreas como o Tibet e Xinjiang. Tudo isso sem falar nos pesadelos de Hong Kong e Macau.

- A África do Sul tem uma constituição progressista, que protege as liberdades civis. No entanto, o país enfrenta desafios, como altos níveis de criminalidade e desigualdades sociais. Na economia, os problemas no plano energético atrasam o desenvolvimento. O governo de Matamela Ramaphosa não tem conseguido oferecer respostas, apesar do respeito pelo presidente.

Isso quer dizer que o Brasil tem dividendos a tirar no plano econômico, mas é preciso ter muito cuidado no que se relaciona às questões da política. O fato é que o país está em péssimas companhias, sobretudo China, Índia e Rússia, quando o tema é a democracia. Não quer dizer que o contágio político seja uma coisa linear, mas pode causar dissensões no futuro.








sábado, 17 de junho de 2023

Brasileiros em Portugal: o quartinho da empregada

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Um jornal português anuncia que “mais de 250 mil brasileiros compraram casa em Portugal”. Mais do que isso, os investidores do patropi continuam a representar o principal filão estrangeiro para o mercado português do setor. E com destaque para um fator,  porque estamos a falar do mercado imobiliário de luxo.

É natural que essa tendência tenha provocado algumas mudanças, mesmo culturais, em Portugal. O dinheiro manda. Para satisfazer os brasileiros endinheirados, algumas construtoras começaram repensar as plantas dos imóveis para introduzir um espaço específico: o quartinho da empregada. A ideia tinha desaparecido em Portugal.

Há poucas expressões mais odiáveis do que “quartinho da empregada”. Porque é a extensão moderna da senzala de Gilberto Freyre. Na época colonial era um espaço de exploração e submissão, onde os escravos viviam em condições precárias. O "quartinho da empregada" parece ser uma repaginação dessa situação.

É cultural. Os escravos de ontem parecem ter sido substituídos pelos pobres e periféricos de hoje. E há que juntar o cheiro do patriarcado, uma vez que é raro (ou mesmo impossível) ouvir a expressão "quartinho do empregado". A casa grande patriarcal sempre aceitou a presença das mulheres, mas não dos homens.

Enfim, o quartinho da empregada é um espaço de segregação social e econômica, como era a senzala. É palco de desigualdades e relações de poder presentes na sociedade brasileira em diferentes momentos históricos. Afinal, para os endinheirados brasileiros a riqueza só faz sentido se houver pobres por perto.

Sociologias à parte, não resisto a um comentário em linguagem mais chã: essa gente vota Bolsonaro e foge para Portugal, um país neste momento governado por socialistas. Aliás, convém dizer que para os portugueses o Partido Socialista é de centro esquerda com algumas decaídas neoliberais. E, mesmo assim, no Brasil seriam considerados malfeitores comunistas do piorio.

Em tempo: as expressões "elevador social" e "elevador de serviço" também são abjetas na sua aplicação concreta.

É a dança da chuva.