POR JOSÉ
ANTÓNIO BAÇO
Tem uma coisa divertida aqui no blog. Sempre que
alguém discorda das minhas posições – nas “raras” vezes em que isso acontece –
apela para aquilo que em língua morta alguém decidiu chamar argumentum ad hominem. Ou seja, em vez
de contra-argumentar, a pessoa parte logo para a porrada: “petralha”, “comuna”,
“esquerdista”. E não faltam acusações de uma suposta ligação ao Partido dos
Trabalhadores.
Apressadas conclusões, vagarosa resposta. Há uma
diferença entre integrar um partido e estar do lado dos trabalhadores. É uma opção
de classe. E isso causa desconforto nos neopolitizados, essa gente intelectuamente moldada
pelas redes sociais e pela velha e marota imprensa. Não se sentem “trabalhadores”, pois rejeitam a carga ideológica da palavra. A existência de incomodados entre
os acomodados provoca comichão.
Aliás, a palavra “ideologia” também foi amaldiçoada, porque,
entendem, indicia uma consciência de classe. Não é aceitável, portanto. Porque o trabalhador morreu. Ou
melhor, foi assassinado pelo sistema de economia linguística do capitalismo. Os donos do capital extirparam a
palavra do dicionário, primeiro das empresas e depois da sociedade,
substituindo-a por essa forma abjeta chamada “colaborador”.
Não é
preciso grande exercício mental para entender a lógica. Trabalhador é
uma expressão que vem do discurso de classes. É o cara incômodo, que luta pelos
seus direitos, que se organiza, faz greve. O colaborador colabora. Numa
economia de mercado, nada mais natural que exista um mercado linguístico. Quem detém o poder económico, comunicacional e político pode impor
o seu logos.
É um
fenômeno que me atrevi a chamar “logocracia”. O poder da palavra. O poder pela
palavra. O governo pela palavra. É célebre o diálogo entre Alice e Humpty Dumpty, no texto "Alice do Outro Lado do Espelho", em que o escritor
Lewis Carrol sintetiza, de forma despretensiosa mas acutilante, a questão da
relação entre linguagem e poder:
- Quando
eu emprego uma palavra, ela quer dizer exactamente o que me apetecer... nem
mais nem menos – retorquiu Humpty Dumpty
- A
questão é se você pode fazer com que as palavras queiram dizer tantas coisas
diferentes.
- A
questão é quem é que tem o poder... é tudo – replicou Humpty Dumpty.
A
conclusão é óbvia. Os donos do poder têm a capacidade de fundar o vocabulário
das sociedades. Se linguagem e pensamento são indissociáveis, então a manipulação da
linguagem será a manipulação do pensamento. O “colaborador” é filhote dessa
contrafação linguística. Parece um pequeno detalhe, mas é muito relevante. Afinal, como referiu Cassirer, “linguagem e pensamento são inseparáveis e... uma doença da linguagem é portanto o mesmo que uma doença do pensamento”.
O
processo é muito eficaz. Tanto que a expressão foi assimilada pelo próprio
trabalhador, que já se autodefine orgulhosamente como colaborador. E colabora, claro.
Isso facilitou sobremaneira a vida dos donos do poder. Se em tempos era preciso
baixar o cacete para submeter os trabalhadores, agora a utilização de truques
linguísticos ajuda a atingir esse objetivo. Ou acha que não?
A morte do trabalhador pressupõe a morte dos seus partidos. É a gênese dos problemas que temos acompanhado nos tempos mais recentes. Os partidos dos trabalhadores (que não são apenas um) provocam cagaços de morte nos conservadores. Um Partido de Trabalhadores que preserve a consciência de classe
sempre poderá fazer muito barulho. Mas um Partido de Colaboradores seria
dócil, fácil de manipular, um autêntico paraíso para os fundamentalistas do
mercado. Ironia.
É a
dança da chuva.