Afinal, Jair Bolsonaro realmente sugeriu metralhar a Rocinha como solução para o tráfico e a violência na comunidade carioca? A nota, publicada pelo jornalista Lauro Jardim em sua coluna de domingo (11), no jornal “O Globo”, repercutiu enormemente em sites, especialmente os de esquerda, e nas redes sociais, além de provocar a ira do próprio deputado e presidenciável e de seus seguidores, os chamados “bolsominions”.
Apesar da repercussão, é bastante provável que a frase não tenha sido dita, ao menos não como informou Lauro Jardim. Claro que Bolsonaro tratou de desmentir a nota, mas o desmentido de um fascista tem validade zero como prova. Por outro lado, a favor dele, há a ausência de qualquer registro documental, o que em tempos de internet e vídeos comprometedores sacados de celulares, é no mínimo estranho, especialmente em um evento com algumas centenas de testemunhas.
Além disso, nenhum outro veículo ou profissional deu a tal notícia, e o também jornalista Augusto Nunes, convidado a conduzir um bate-papo com Bolsonaro, disse textualmente que se tratou de um equívoco. De acordo com Nunes, seu colega foi “induzido ao erro”, possivelmente informado, e mal, por algum dos presentes. A própria coluna de Lauro Jardim, em sua versão on line, publicou uma espécie de “erramos”, aparentemente acatando a explicação do deputado.
Em seu artigo de terça (13), meu colega de blog José António Baço abordou o assunto sob o prisma de sua repercussão na mídia. Em síntese, defendeu que as recentes notícias envolvendo Bolsonaro, desde o aumento suspeito de seu patrimônio pessoal e de seus filhos (essas, absolutamente verdadeiras), até a nota n’“O Globo”, são parte de uma estratégia para se livrar do incômodo candidato. Gostaria de abordar o mesmo acontecimento sob outra perspectiva.
Tortura, estupro e ódio como paradigmas – A mim não importa que Bolsonaro não tenha dito tamanho impropério, porque há registros suficientes da sua capacidade e disposição em produzir e disseminar o ódio e a barbárie. Há, por exemplo, sua apologia ao estupro, e suas muitas homenagens à memória do Coronel Brilhante Ustra, conhecido por torturar e estuprar militantes mulheres – sim, parece que Bolsonaro tem uma fixação pelo assunto.
Há ainda uma coleção de declarações homofóbicas, racistas e misóginas (além da apologia ao estupro), e sua completa miopia no que se refere a temas como a violência, ao defender o recrudescimento de políticas públicas que há décadas são, justamente, parte instituinte do problema, não sua solução. Uma visão estreita de mundo, obviamente, não poderia resultar em outra coisa além de um candidato cujas “propostas” (passe o exagero) só são comparáveis às nações governadas pelo peso do autoritarismo militar – como a Venezuela ou a Coreia do Norte –, ou do fundamentalismo religioso, como em alguns países do Oriente Médio.
Mas se votar em Bolsonaro é desistir de um país moderno, seja econômica ou politicamente, o que explica que de uma excrescência fascista ele tenha passado a segundo lugar na intenção de votos para presidente? A explicação de que se trata de um outsider, embora coerente, me parece insuficiente. E embora seja verdade que, apesar de ter pertencido à base aliada de todos os governos do PT, seu crescimento se deva em parte à sua capacidade de surfar na onde do anti-petismo mais hidrófobo, tampouco considero tal argumento satisfatório.
Como uma força centrípeta, ele canaliza, dá forma e sentido a um conjunto de afetos dispersos e difusos, tais como o ressentimento, a indiferença, o medo e o ódio, produzidos em um ambiente político pouco afeito a coisas como democracia, liberdades individuais ou direitos humanos. Há uma parcela expressiva de pessoas que o apoiam justamente por seus elogios à ditadura e sua defesa da tortura, por exemplo, e não apesar disso. Nesse sentido, entender o seu significado é compreender o processo de construção de nossa memória recente.
O esquecimento e a banalização da violência – No último livro publicado em vida, “A memória, a história, o esquecimento”, o filósofo francês Paul Ricoeur contrapõe ao que considera as dimensões positivas do olvido, os efeitos potencialmente danosos do esquecimento como gesto forçado de apagamento da lembrança, que denominou de “memória impedida”. É esse impedimento que fundamenta aquelas políticas que, como a nossa, confundem anistia com amnésia e tomam essa como critério para associar aquela ao perdão.
O equívoco não é apenas semântico – anistia não significa necessariamente perdão nem, tampouco, esquecimento –, mas principalmente político. Desde a transição para a Nova República, há uma interdição, um silenciamento a impedir que tratemos a Lei de Anistia e as políticas de esquecimento daí derivadas pelo que elas são: um obstáculo à efetivação de uma cultura democrática sensível, entre outras coisas, aos muitos riscos a que está exposta, e aos restos de uma ditadura que, mesmo institucionalmente, continuam a ameaça-la.
Há diferentes maneiras de interpretar o alcance dessa limitação. Entre outras coisas, o esquecimento produz a naturalização e a banalização da violência institucional – aquela praticada pelo Estado e os governos –, que admitida como um dos componentes de nossa vida social, não é por isso considerada desumana nem, tampouco, uma anomalia, uma aberração, um desvio: no Brasil, parafraseando Giorgio Agamben, a violência institucional há tempos deixou de ser exceção para se tornar a regra.
A truculência de Bolsonaro é um sintoma desse estado de coisas. Ele mobiliza e organiza um circuito de afetos que tem como centro o esquecimento das violências passadas a informar a indiferença cotidiana para com as violências presentes, usando a democracia não para aprofundá-la, mas para conspirar contra ela e fragilizá-la. Racista, misógino, homofóbico, clara e abertamente fascista, Bolsonaro não é apenas a expressão de nossos impasses políticos, mas um perigo que ameaça nossa ainda débil democracia. Se nunca fomos modernos, com ele estamos condenados a nunca ser.