POR VALDETE DAUFEMBACK NIEHUES
A catadora de lixo Estamira, personagem do filme documentário que leva o mesmo nome, em uma de suas reflexões, afirmou que a escola ensina a copiar e que o caminho para a aprendizagem passa pelas ocorrências.
Nas duas últimas semanas presenciamos um debate sobre racismo envolvendo um campo de poder ao estabelecer aí relações de forças institucionais e pessoais.
A ocorrência do fato, ou seja, a apropriação de uma personagem, a namoradeira, por uma educadora escolar, para fazer bonito em uma festa junina, desencadeou um debate que extrapolou as fronteiras da sociedade joinvillense, quando, em outros tempos não teria chegado ao grau de relevância que chegou. Importante mencionar que o fato ocorreu alguns dias após o município de Joinville ter aderido ao Sistema Nacional de Promoção Racial.
A desconsideração pelas minorias étnicas faz parte de um pensamento tradicional que se naturalizou pelas condições históricas. Durante séculos os afrodescendentes ocuparam uma posição de inferioridade em todo país, mesmo nos lugares em que sua presença é maioria, isso porque o capital econômico contribui relevantemente na mensuração das esferas de poder.
No entanto, a partir de movimentos sociais em favor da democracia e da representatividade popular no cenário político, a sociedade deu um passo significativo ao instituir na Constituição Federal de 1988, no Art. 5º, inciso XLII, que a prática do racismo constitui crime. Além do que a Carta Magna dispõe de mecanismos que dão suporte à criação de leis que coíbem o preconceito e discriminação às minorias étnicas, como, por exemplo, a Lei 9.459/97, que entre outras coisas, define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Sequencialmente, o Estatuto da Igualdade Racial (Projeto Lei nº 3.198, de 2000) foi transformado em Lei nº 12.288, em 2010, visando o combate à discriminação racial e desigualdades raciais que atingem os afrodescendentes. Sem falar que desde 2003, de acordo com a Lei nº 10.639, as escolas públicas e particulares da educação básica foram obrigadas a inserir em seus currículos conteúdos que contemplem a história e cultura afro-brasileira.
Com isso, entende-se que não há razão para que educadores desconheçam o teor das leis acima mencionadas, uma vez que delas necessitam para se prepararem ao assumir o compromisso de educar. No caso da professora que se pintou para representar a personagem namoradeira, uma parcela da sociedade não considerou esta atitude como uma expressão de racismo por entender que as circunstâncias do ambiente festivo, a festa junina, justificam a “brincadeira”. Houve quem justificasse o episódio como um mal entendido, pois a professora teria ligações com a cultura do local de onde surgiu a personagem em questão.
Desta ocorrência, seguindo a lucidez de Estamira, podemos tirar a lição de que em Joinville há um movimento importante que está atento às expressões que sinalizem racismo; que a sociedade tomou conhecimento da importância de se refletir sobre a naturalização e superação do racismo; que a educação escolar precisa estar atenta ao Estatuto de Igualdade Racial; que as instituições de ensino precisam qualificar seus profissionais se desejarem fazer a diferença na promoção da cultura da paz.
Na literatura, a namoradeira poderia ser tanto mulheres negras como brancas, as quais, na sociedade patriarcal ficavam debruçadas no parapeito da janela à espera de um moço para casar. Mas, com raras exceções, as negras é que ficaram popularmente eternizadas em esculturas e sob o estereótipo de vadia (desocupada, preguiçosa), ou fofoqueiras. Neste sentido, pesa aqui a razão de que lideranças do movimento negro ter se manifestado contrariamente à representação considerando um ato de racismo. Por que a professora pintou o rosto para parecer negra? Por que não incorporou a namoradeira branca? Para reproduzir um ato de racismo naturalizado? Ah, para alegrar pais e alunos desmotivados, afinal, o folclore serve para justificar o injustificável.