POR CLÓVIS
GRUNER
De acordo com o
deputado federal Jair Bolsonaro, do PP carioca, sim. Em discurso na tribuna da
Câmara dos Deputados terça-feira, o parlamentar – conhecido pelo que os
meios de comunicação chamam, eufemisticamente, de “posições polêmicas” – afirmou
textualmente, dirigindo-se à deputada petista Maria do Rosário: “Só não te
estupro porque você não merece”. Não foi a primeira vez: em 2003, durante
debate na Rede TV!, Bolsonaro afirmou exatamente a mesma coisa, também para
Maria do Rosário. Em entrevista concedida ontem ao jornal Zero Hora, ele voltou
ao assunto: “Ela não merece porque ela é muito
ruim, porque ela é muito feia. Não faz meu gênero. Jamais a estupraria”. E
completa: “Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”.
A alguns
parecerá positivo saber que o Parlamento brasileiro não abriga um estuprador,
apenas um apologista do estupro. Mas há coisas importantes implicadas nas falas de
Bolsonaro, na tribuna e na entrevista ao ZH, e não é preciso muito
esforço para identificá-las. Primeiro, e o mais óbvio: se Bolsonaro considera
que Maria do Rosário não é “digna” de ser estuprada porque é “feia”, a dedução óbvia é de que, na
sua mentalidade machista, há aquelas mulheres que merecem sê-lo e que ele pessoalmente, se fosse
estuprador, estupraria. Ou seja, as mulheres “bonitas” – ou aquelas consideradas bonitas segundo a perspectiva do nada nobre
deputado –, merecem ser estupradas; as “feias”, não.
Bolsonaro
concorda, embora por caminhos distintos, com outro apologista do estupro, o
humorista Rafinha Bastos, para quem mulheres feias devem não acusar, mas
agradecer seu estuprador. Ou com os publicitários membros do Conar que, no ano
passado, decidiram manter no ar a campanha da cerveja Nova Schin sob a alegação
de ser “baseada em uma situação absurda”. Afinal, na peça publicitária, o homem
que constrange mulheres e invade seu vestiário, provocando visível horror e
medo, é invisível. Segundo alguns, se a mulher for feia ou homem, anônimo, o
estupro é válido e, em alguns casos, pode ser até divertido. Para Bolsonaro, se
ela for bonita, o estupro é não apenas válido como merecido.
CULTURA DO
ESTUPRO – Bolsonaro é truculento, mas não é um ignorante. Ou seja,
ele não ignora que os números da violência de gênero no Brasil são alarmantes e
agravam a sensação de que vivemos em uma cultura que tem feito pouco caso das
agressões contra mulheres, não raro praticadas nos ambientes domésticos,
por conhecidos e mesmo familiares (pais, irmãos, maridos, amigos, vizinhos, etc...). Segundo o Mapa
da Violência de 2012, as taxas de homicídio de mulheres foram de quase 4.500 em
2010 (4,6 homicídios por 100 mil habitantes). No caso do estupro, foram mais de 51 mil casos registrados somente em 2012, uma taxa de
26,3 por 100 mil habitantes, segundo o Anuário de Segurança de 2013. Como a
qualidade dos registros varia entre os estados, e muitos casos sequer chegam a
ser denunciados, é bastante provável que os números, já altos, sejam ainda
maiores: sabe-se que muitas vezes as vítimas, por vergonha ou porque ameaçadas,
optam pelo silêncio.
O fato de Jair Bolsonaro conhecer estes números e menosprezá-los
torna ainda mais abjeta sua declaração, que não teve no Congresso a repercussão
que merece. Os dois maiores partidos de oposição – DEM e PSDB – silenciaram. O
PSC manifestou apoio a Bolsonaro. Na base aliada, fora alguns petistas solidários
à Maria do Rosário, a reação foi acanhada: o PP não se manifestou e o PMDB
repudiou apenas timidamente o episódio. Coube aos partidos de esquerda,
especialmente os chamados “nanicos”, junto com parte da bancada petista, a
tarefa de apresentar representação contra o deputado, pedindo sua cassação –
que provavelmente não ocorrerá. Do Palácio do Planalto – pelo menos até o momento
em que escrevo essas linhas – nenhuma manifestação, o que não me surpreende: o
silêncio de agora apenas reverbera a conivência silenciosa com que, em 2012, o
governo petista tratou a eleição de Marco Feliciano à presidência da Comissão
de Direitos Humanos e Minorias do Congresso.
Fora dos
corredores e gabinetes parlamentares e palacianos, a declaração de Bolsonaro
encontrou o respaldo esperado para um deputado eleito com mais de 400 mil votos – o mais votado do
Rio de Janeiro. E que se tornou, desde há algum tempo, o principal porta voz de uma
direita conservadora que fez e faz do ódio, do medo e do ressentimento os
principais afetos da política. Eu sei que à direita há aqueles, e não são poucos,
que repudiam os discursos e as práticas do deputado progressista e que não se
veem representados pela sua atuação parlamentar. Mas sei também que,
lamentavelmente, Bolsonaro representa, incorpora e multiplica, contando para
isso com um suporte midiático privilegiado, o que há de pior e mais perigoso em
nossa vida pública, os grupos conservadores, fanatizados em sua repulsa por tudo e todos que são diferentes da sua obtusa concepção de “normalidade”.
PS.: Uma petição online, organizada no site Avaaz, pede a cassação do mandato do deputado Jair Bolsonaro. Se você quiser assiná-la, clique aqui.