segunda-feira, 7 de abril de 2014

As estatísticas do IPEA e outras peças de ficção

POR JORDI CASTAN



A divulgação, de forma irresponsável, de uma pesquisa elaborada pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Aplicadas) e que, entre outros dados, informava que 65% dos brasileiros achavam que a forma de vestir das mulheres era um incentivo ao estupro, gerou uma forte reação em todo o país. Os dados apresentados pelo IPEA colocaram de uma hora para outra o Brasil na Idade Média ou na barbárie da Índia de hoje.



Se a fonte não fosse o IPEA, um mínimo de sentido comum deveria ter permitido identificar que os dados apresentados não faziam sentido. Se é verdade que isto não é Suécia tampouco vivemos na Índia ou no Afeganistão, países e sociedades em que o estupro não é visto como uma brutalidade inaceitável e milhares de mulheres são estupradas anualmente, com o silêncio cúmplice de toda a sociedade.

No Brasil, os casos de furtos, roubos e estupros lideram as pesquisas e junto com homicídios, latrocínios e assaltos ocupam um lugar predominante no ranking da violência e da criminalidade, neste país em que a vida vale cada dia menos.

Voltemos às pesquisas. A minha pesquisa favorita é a que utiliza a "teoria do frango" como metodologia. Ela parte da premissa que se hoje eu comi um frango e você nenhum, cada um de nos comeu meio frango. E estamos bem alimentados. Outros denominam esta metodologia "do freezer", aquela que diz que se colocamos a cabeça no forno e os pés no freezer a temperatura média será perfeita.

Aplicando esta lógica simples, para que 65% dos brasileiros achassem que a forma de vestir incentivava o estupro, seria preciso que em algumas regiões ou grupos pesquisados, praticamente a totalidade da população pesquisada manifestasse a sua concordância, para compensar o grupo, entre os que me incluo, que acha que cada um é livre para se vestir da forma que achar adequado, sem que isso possa servir de justificativa para que alguém seja estuprado.

As perguntas que não saem da minha cabeça são:
- Por que divulgar esta pesquisa justamente agora?
- Quem á encomendou e com que objetivo?
- Por que não houve uma análise mais criteriosa dos dados, quando foram divulgados?
- Ninguém percebeu o absurdo do resultado? Casualidade?

Não acredito em casualidades, tampouco acredito que Deus jogue dados. Acho sim que os pesquisadores do IPEA jogaram com os dados. Pode ser que os dados utilizados pelo IPEA sejam aqueles com seis lados, em que cada um dos lados está numerado de 1 a 6 e que são lançados ao azar, para quem gosta de acreditar na sorte.

Este episódio me deixa com a impressão que o nosso índice de crendice é muito elevado e a capacidade de análise dos dados e informações que recebemos a cada dia é cada vez menor. E assim ficamos mais vulneráveis e fazeis de manipular.

sábado, 5 de abril de 2014

O Exército e a política


POR WILSON DE OLIVEIRA NETO

Há cinquenta anos, foi iniciada uma rebelião militar liderada por generais do exército brasileiro contra o então presidente da república João Goulart. Este episódio ficou conhecido como Golpe de 64 e foi o começo de um período de vinte e um anos de regime militar no Brasil.

Está claro para a historiografia que o golpe foi o resultado de uma conspiração militar que teve como pano de fundo a crise política desencadeada no país a partir de 1961, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros. E mais: esta crise ganhou força através de uma violenta campanha de desestabilização do governo promovida pela oposição.

Interessa neste pequeno texto, o papel desempenhado pelas forças armadas, em particular o exército, nos acontecimentos ocorridos entre 31 março e 1º de abril de 1964. A rebelião e a ditadura militar foram o ponto alto de uma série de intervenções promovidas pelo exército no cenário político brasileiro desde o golpe de Estado que derrubou a Monarquia no Brasil, em 15 de novembro de 1889, erroneamente conhecido como “Proclamação da República”.

Não há exército brasileiro antes de 1822. Afinal, até a independência, não existia o Brasil tal como hoje, mas uma América Portuguesa, uma região que era parte de um imenso império colonial. Inclusive, seus habitantes não eram “brasileiros”, mas “portugueses do Brasil”. Logo, as forças militares estacionadas na colônia eram portuguesas, mesmo que formadas por efetivos nascidos no Brasil.

Após a independência, os fundamentos de um exército nacional foram assentados, como por exemplo, a partir do decreto de 1º de dezembro de 1824, que dividiu a força terrestre em tropas de 1ª e 2ª linhas. Até a Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança (1864 – 1870), o exército foi uma organização militar pequena, mal adestrada e equipada. Para piorar a situação, em 18 de agosto de 1831, foi criada a Guarda Nacional, uma milícia que foi um poder paralelo ao exército até sua dissolução, durante o início do século 20.

No entanto, tudo mudou com a Guerra da Tríplice Aliança. A luta contra o Paraguai tornou urgente a formação de um grande exército, inexistente até o momento. Além disso, o conflito produziu uma nova geração de militares, portadores de um forte espírito de corpo, de uma identidade corporativa que exigia ser ouvida e respeitada pelos políticos civis.

A “Proclamação” da República foi a primeira de uma série de intervenções promovidas pelo exército durante o século passado. Ocorreram várias, tais como em 1922, 1924, 1930, 1937, 1945, 1955 e, finalmente, em 1964. O Golpe de 64 não foi uma revolução, mas um golpe de Estado que foi o ponto alto, o ápice, desta história que teve o seu final quase cem anos depois, em meados da década de 1980, quando do fim do regime militar e do inicio da redemocratização do Brasil.

* Wilson de Oliveira Neto é historiador e professor no curso de História da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Que milagre econômico o quê!

POR FELIPE SILVEIRA

O golpe de 1964, que iniciou a ditadura civil-militar no Brasil, fez 50 anos na terça-feira, 1º de abril, e gerou muita discussão sobre o assunto, o que é ótimo. Por outro lado é triste que nesses debates haja a defesa do indefensável. Ou seja, a defesa do regime militar.

Alguém pode questionar: “Ué, quer discutir mas não quer que defendam a ditadura?”

Sim, é isso mesmo. Eu lamento que 50 anos depois tenha gente que a defenda, principalmente porque os argumentos são baseados em mentiras construídas pelo regime. Um caso bem claro é o dito “Milagre Econômico”.

Dia desses, um cara, segundo ele da área econômica, teceu loas ao desenvolvimento econômico do período ditatorial. Falou da industrialização e do desenvolvimento da infra-estrutura, com suas rodovias e hidrelétricas, entre outros. Justificou, assim, o aumento da dívida durante o regime militar.

Esqueceu, no entanto, que tal desenvolvimento industrial e estrutural ocorreu apesar da ditadura, e não por causa dela. Esqueceu que anos antes Juscelino Kubitschek já havia continuado o processo de industrialização (a primeira industrialização ocorreu em outra ditadura, de Getúlio Vargas) em plena democracia. Esqueceu também que a pobreza e a desigualdade social aumentaram no período. Esqueceu ou nunca soube de nada disso, muito por causa de uma educação rala que a ditadura militar tratou de destruir.

Esqueceu também (ou nunca soube), principalmente, que o Brasil vivia um período de ebulição cultural e política naqueles anos. Porém, veio a ditadura e jogou água na fervura. Aquela geração poderia ter feito muito pelo Brasil, mas a ditadura a calou. Sobre isso, indico a leitura de “Trinta anos esta noite”, o relato de Paulo Francis –  já à época um defensor do capitalismo – sobre o golpe e sobre a ditadura e seus efeitos.

Nem vou citar que as reformas de base propostas por Jango, sobre as quais se sustentava a ideia de que haveria um golpe comunista. Sugiro a leitura do texto do Clóvis Gruner, publicado no dia dos 50 anos do golpe: 50 anos, hoje.

Para mostrar como a ditadura foi um lixo que gerou miséria e burrice, cito o caso de Santa Catarina, especialmente de Joinville. Na metade do século 20, cerca de 70% da população catarinense vivia no campo. Veio a ditadura e começou a injetar dinheiro nas empresas dos amigos. Era o tal do desenvolvimento. Empresas como a Tupy e outras grandes receberam gordas verbas do governo para ampliar o parque e a produção industrial. O problema é que a cidade ainda era pequenina e que Santa Catarina era um estado predominantemente agrícola. E agora?

Bom, se vocês são joinvilenses, perguntem para seus pais e avós, que vieram do interior de SC, PR, SP, RS e outros. As empresas iam buscar as pessoas de ônibus, de kombi, de tudo que é jeito. A população, paupérrima, sem acesso à nada, topava vender sua terrinha para tentar vida nova na cidade. Muitas vezes sofria influência do padre, que às vezes recebia uma graninha das empresas para fazer propaganda. Qualquer pessoa com dois dedos de testa, como diz o Baço, sabe da influência que o padre exerce no campo, principalmente naquela época.

O resultado disso foi que cidades como Joinville receberam milhares de pessoas nesse período, mais do que o dobro da população. Além disso, o Estado não investia em infra-estrutura para as pessoas, que foram morar nos mangues. Sem saúde, sem escola, sem esgoto. Praticamente todo o investimento estatal era para beneficiar o empresário, que hoje é endeusado como grande realizador.

Quando chegou a crise do petróleo, nos anos 80, acabou o emprego, mas o trabalhador continuava em situação de miséria. E sem condições de voltar para o campo, pois venderam as terras a preço de banana. O empresariado, no entanto, já estava com os bolsos cheios. Se você não consegue relacionar isso com a questão da violência urbana, com a falta de saúde, educação, moradia, me desculpe, mas está faltando dedo nessa testa.

A situação de Joinville se repetiu por todo o Brasil. Ou quando você acha que ficou complicada a coisa nas grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro?

Por essas e tantas outras coisas que é inadmissível “relativizar” a ditadura. E muito menos defendê-la. O debate poderia ser bem melhor se tivéssemos ultrapassado essa etapa da discussão. Como não ultrapassamos, ela precisa ser feita agora.

P.S.: Baseio minha argumentação em dois textos, principalmente. O primeiro é o livro "Crítica ao modelo catarinense de desenvolvimenro", de Ido Luiz Michels. O outro é a dissertação de mestrado "De agricultor a operário: Lembranças de Migrantes", de Valdete Daufemback Niehues.

Homens depilam os testículos


POR ET BARTHES
Uma campanha interessante: 20 homens depilam os testículos e as expressões dos rostos so filmadas. Qual é a ideia? Chamar a atenção para a realização de exames preventivos do câncer nos testículos.


quinta-feira, 3 de abril de 2014

Homens ditadores vão pra PQP!

Fonte foto
POR FERNANDA M. POMPERMAIER

Quando eu fazia o curso de sueco numa turma super miscigenada conheci pessoas de várias culturas e religiões. Nossas diferenças culturais apareciam principalmente nas discussões de temas polêmicos, tradições nos países de origem ou credos. Essas discussões me ajudaram a colocar nossas crenças em perspectiva, questioná-las e tomar novos rumos na educação da nossa filha. Afinal tivesse nascido noutras partes do mundo, minhas crenças poderiam ser totalmente diferentes. Um aprendizado importante veio do comentário da professora frente uma crítica aos suecos. Ela disse: cultura é algo pessoal, muda de família para família. Você conhece um sueco e julga que a maioria é parecida, mas esse pré julgamento só te atrapalha. Com brasileiros, ou qualquer outra cultura é a mesma coisa. Existem alguns comportamentos mais frequentes em alguns grupos, mas cada um é cada um e isso me faz ainda acreditar na humanidade. 

No grupo em que eu estava, existia um homem, vindo do sul da Europa, muçulmano, que eu me esforcei para tentar compreender e ser solidária. Mas não deu. Existia um abismo entre as nossas culturas e os pensamentos dele me assustavam. Numa discussão sobre homem e mulher, ele disse que o instinto do homem é algo incontrolável e que a mulher deveria estar sempre em alerta, não se deixando colocar em situações vulneráveis, como por exemplo: ficar num cômodo sozinha com um homem. 
Choque. 
Ele realmente acredita que o homem é um animal pré-histórico que age único e exclusivamente por instinto e que se estiver sozinho num quarto com uma mulher, não pode deixar passar a tentação da carne. No intervalo ele ainda explicou a teoria das roupas com uma analogia bizarra. Ele disse que mulher é como um biscoito. Se você encontra dois biscoitos no chão na rua, um está coberto e o outro não, qual você come?
Eu tive que ouvir essa frase. 
Respondi que tínhamos pontos de vista diferentes, mas não insisti na discussão, não tinha nenhuma chance. Mas ele poderia, por exemplo, explicar, por que existem tantos casos de estupros em países nos quais as mulheres são obrigadas a usar burcas. Se é uma questão de cobrir o corpo, dessa forma todas estariam protegidas. O homem tinha apenas 27 anos.

Sim, nossas culturas são completamente diferentes. 
Mas aí, você é surpreendida com o resultado de uma entrevista no seu país, na qual 63% dos entrevistados concordam com a frase: "Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". Eu sei que a pesquisa tem sido questionada pelas perguntas tendenciosas, pela pequena amostragem, escolaridade e outros motivos. Mas vamos ser honestos, vocês conhecem homem machistas que acham que a mulher precisa "se cuidar" para não ser estuprada? Aliás, vou melhorar, vocês conhecem mulheres que recomendam à outras mulheres que cuidem com a roupa que usam ou os lugares que frequentam para não sofrerem violência? Aposto que você responderia "sim" para ambas as perguntas. 
A nossa sociedade AINDA põe a responsabilidade do estupro sobre a mulher!
O que é lamentável, atrasado, primitivo e estúpido.

O machão oferece o perigo e ao mesmo tempo oferece sua proteção à mulher escolhida. O homem ainda tem poder sobre o corpo da mulher, que é sua, seu objeto de prazer. 

Eu sugiro a mudança desse padrão e toda vez que algum homem quiser ditar regras, lugares, roupas, das mulheres próximas à ele, que o mesmo vá pra PQP!

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Tá serto.


Coisas de academia

POR ET BARTHES

Será que você ja viu algo parecido na sua academia? Mais uma produção do Parafernalha.




Espancar os números


POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

A autoria da frase é atribuída a Millôr Fernandes (não sei se confere): “estatística é a arte de espancar números até que eles confessem”. Um dia destes dei de cara, aí pelas redes sociais, com um gráfico do “The Wall Street Journal” sobre os pedidos para a remoção de conteúdos do Google, apresentando o Brasil como o país mais ativo nesse sentido.

O gráfico era usado num post que não trazia disfarces: “Brasil é um dos países que mais censura a internet. O Marco Civil protege você ou os políticos?” Ora, o que isso quer dizer? Simples. Eu odeio o Partido dos Trabalhadores, odeio o Governo Federal e, portanto, também vou odiar o Marco Civil. Nada mais interessa. Nem os fatos.

O raciocínio do post é simples: como eu só acredito no que quero, os números terão que dizer o que eu quero que digam. Ou seja, vou olhar apenas para o que me interessa. E fica fácil, porque o gráfico mostra que o Brasil efetivamente está em primeiro. Então, é só pôr tudo no mesmo saco que o Marco Civil e esperar que os outros partilhem.

Ora, qualquer pessoa com dois dedos de testa vai desconfiar. Para começar, é preciso saber que os EUA são o país que produz maior número de requisições para a retirada de conteúdos da internet. Mas parece que neste caso o que serve para os EUA não serve para o Brasil. A democracia deles deve ser mais democrática que a nossa.

Se a pessoa não estiver mal intencionada, então vai entender fácil. Os dados são referentes ao segundo semestre de 2012, ano de eleições no Brasil. E um olhar mais atento para a infografia faz ver que quase metade das requisições são baseadas na lei eleitoral. Isso explica por que os números do Brasil subiram nesse período.

Aliás, basta uma olhadinha para perceber que os outros itens têm a ver com processos de difamação, pornografia, direitos autorais, incitação ao ódio e por aí vai (ver gráfico abaixo). Aliás, se quiserem culpar algum governo talvez seja possível usar as seis - vou repetir, seis - ocorrências referenciadas (pena que a peça não clarifique se é Federal ou Estadual).

É importante salientar que o Google publica um “Relatório de Transparência”, onde mantém informações sobre os pedidos de remoção de conteúdos, seja de governos ou tribunais de países em todo o mundo. Os números apresentam tendência de crescimento, mas como mostram as imagens no fim deste texto, no Brasil a origem dos pedidos não é o Governo Federal.

Portanto, dizer que o Marco Civil pretende trazer censura é balela. Mas imagino que a iniciativa talvez assuste os que querem fazer do digital uma não-terra sem lei. Porque propõe, logo nos primeiros artigos, a “responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei”. Portanto, não temos que ter medo. É só para quem estiver fora da lei.

O gráfico publicado pelo jornal norte-americano é claro. 


terça-feira, 1 de abril de 2014

Direita, volver II


50 anos, hoje


POR CLÓVIS GRUNER

Há cinco décadas o Brasil acordou sombrio. Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, um golpe orquestrado por forças militares e civis colocava fim ao breve interregno democrático que se iniciara com o fim do Estado Novo, duas décadas antes. Uma democracia sitiada, é verdade, e em permanente estado de tensão. Frágil e confrontada pelo golpe, a ela se seguiu uma ditadura que se estendeu pelos 21 anos subsequentes, e cuja herança nos assombra ainda, como um espectro não inteiramente sepulto. O jornalista Luiz Cláudio Cunha resumiu assim o período e seu legado:  

“A conta da ditadura de 21 anos prova que ela atuou sem o povo, apesar do povo, contra o povo. Foram 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, cinco mil deles condenados, 1.792 dos quais por “crimes políticos” catalogados na Lei de Segurança Nacional; dez mil torturados nos porões do DOI-CODI; seis mil apelações ao Superior Tribunal Militar (STM), que manteve as condenações em dois mil casos; dez mil brasileiros exilados; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proibia associação e manifestação; 128 brasileiros e dois estrangeiros banidos; quatro condenados à morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; três ministros do Supremo afastados; o Congresso Nacional fechado por três vezes; sete assembleias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa, à cultura e às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje”.

Desde o começo deste ano não faltam eventos a rememorar a data e avaliar suas muitas implicações: simpósios, colóquios, programas de TV, edições e cadernos especiais na imprensa, títulos memorialísticos, acadêmicos ou grandes reportagens revisitam sob diferentes prismas o período. Não pretendo um balanço exaustivo dessa produção, nem tecer sobre a ditadura algum comentário original. Mas como brasileiro e historiador, creio que é um compromisso, além de profissional, também ético e político, contribuir para que os eventos daquele fatídico 1º de abril não sejam esquecidos. E é nesse espírito que gostaria de retomar três questões sobre o assunto, que considero fundamentais:

Um golpe contra outro golpe – Consagrou-se em alguns círculos, e não apenas militares, a versão de que o golpe de 1964 fez-se para evitar outro. Trata-se, obviamente, de uma narrativa que interessa aos responsáveis pelas mais de duas décadas de ditadura, mas que não se sustenta em nenhuma das muitas evidências históricas sobre o período. Em entrevista concedida ao CPDOC da FGV, o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira fala das muitas “provocações” que antecederam o 1º de abril, essenciais para criar um clima de animosidade e conflito necessário para justificar a tomada de poder pela direita civil e militar. E embora admita a tendência à radicalização de algumas lideranças ligadas a João Goulart, é enfático quanto à inexistência de qualquer condição ou pretensão golpista, dentro e fora do governo: a principal força de esquerda, o PCB, além de atuar na ilegalidade, tinha um perfil muito mais reformista que revolucionário.

Havia um ambiente de conflito, em parte decorrente da Guerra Fria e do fantasma da ameaça soviética. Se desde o início da década de 60 falava-se do “perigo comunista”, em um contexto de acirramento das tensões e posições políticas, o “perigo comunista” se transformou na ameaça de um golpe que instauraria uma “república sindicalista” aos moldes da revolução cubana. Mas fora da propaganda que ajudava a alimentar a atmosfera golpista, a realidade era diferente. Se por um lado as experiências de Cuba e da Argélia, ainda recentes, inspiraram parte da esquerda brasileira, essa mesma esquerda não tinha pretensões nem tampouco fôlego para qualquer coisa que, mesmo remotamente, sugerisse a revolução e o golpe.

Insisto: os principais grupos e lideranças de esquerda eram reformistas: falavam e defendiam a reforma agrária e as reformas de base; reivindicavam o nacionalismo contra o capital estrangeiro; produziam uma cultura que se pretendia “popular” como um meio de “desalienar” as massas demasiadamente influenciadas pelos padrões culturais tidos por imperialistas, etc... A ameaça de um “golpe comunista” é apenas mais uma mentira perpetrada pelos artífices da ditadura. Repetida tantas vezes, ainda há quem nela acredite. Mas isso não a torna uma verdade.

A ditadura não foi apenas militar – Não haveria golpe nem uma ditadura que perdurou por duas longas décadas sem a estreita colaboração de militares e civis. Foi essa aliança que sustentou a ditadura, inclusive financeiramente: hoje sabemos de empresários e grupos empresariais que levaram sua adesão ao regime para além da simpatia, ajudando a financiar a máquina da repressão que começa a funcionar já em 1964.

Também fundamental, e que finalmente tem merecido a devida atenção de pesquisadores, foi o apoio dos meios de comunicação. Desde os pequenos jornais do interior – como a joinvilense “A Noticia” –, até a chamada “grande imprensa” – “O Globo”, “Folha” e “O Estado de São Paulo”, entre outros – raras, raríssimas foram as exceções: os meios de comunicação não apenas ajudaram a fomentar o golpe, colaborando para que se instaurasse no país um ambiente de terror e temor. Consolidado o governo militar, poucos foram os que recuaram efetivamente em seu apoio inicial, declarando abertamente sua contradição. A maioria manteve-se titubeante, em parte pela ameaça da censura, mas também porque continuava a reconhecer a legitimidade do governo militar.

E há, conhecidos, aqueles casos em que o apoio perdurou ao longo dos 21 anos de ditadura, como a Rede Globo, numa relação promíscua em que os sucessivos governos foram beneficiados com o suporte midiático, tanto quanto beneficiaram empresas e empresários de comunicação. Aliás, nunca é demais lembrar que se a cultura da corrupção está, ainda hoje, impregnada na vida política do país, ela encontrou no ambiente instaurado pelo golpe de 64, um terreno fértil. Foram duas décadas de corrupção e impunidade, favorecidas ambas pela certeza arrogante que tem os governos autoritários, que nada nem ninguém os ameaçam.  

Resistências e repressão – A repressão feroz que se abateu sobre toda e qualquer forma de oposição, tem sido recentemente relativizada aqui e acolá, inclusive por alguns historiadores. Mas não há relativização possível quando se trata da garantia dos direitos humanos fundamentais, sucessivamente desrespeitados nos porões e Casas da Morte onde a ditadura humilhou, torturou e assassinou oponentes. Sobre esses, já se falou muita coisa, mas é preciso que se diga uma vez mais: nem toda oposição aos militares pegou em armas. A luta armada, aliás, representou uma ínfima parte de uma resistência que se fez também por caminhos institucionais – com a atuação do MDB, da OAB, de setores da igreja, entre outros –; intelectuais e artísticos, além das muitas tentativas de manter vivos e atuantes os movimentos sociais urbanos e rurais. A ditadura não perdoou ninguém e tratou a todos, indiscriminadamente, como criminosos e inimigos.

Pode-se dizer, hoje, que a luta armada foi um equívoco, e que aqueles que lançaram mãos às armas não pretendiam, efetivamente, a retomada da democracia, fazendo da oposição à ditadura um meio para se atingir um fim: a instauração do socialismo. Tudo isso pode ser verdade, e ainda assim nada disso justifica a violência do Estado. Primeiro, porque a correlação de forças era absurdamente desproporcional: um punhado de militantes, em sua maioria mal e parcamente armados e treinados, enfrentou o poder e o aparelho do Estado, com seus muitos mecanismos de inteligência e órgãos de vigilância, além das instituições repressivas, parte delas atuando clandestinamente. Não havia ameaça e, mesmo se ameaça houvesse, é terrorista o Estado que trata fora dos limites da lei cidadãos que, uma vez rendidos, já não oferecem nenhum tipo de resistência.

Mas não é só. Não é casual que a ousadia e a violência dos grupos armados e revolucionários aumentaram na proporção da truculência institucional, de que o AI-5, decretado no final de 1968, é o marco histórico definitivo. Nesse sentido, a ditadura não apenas forjou as condições para que parte da oposição optasse pela resistência armada. Ela forneceu as razões políticas para todas as formas de resistência que se opuseram a ela. É preciso que se diga, sem receio: é legítima a insurgência contra governos ilegais que se sustentam na e pela tirania. Sob esse ponto de vista, mesmo a luta armada traz intrínseca, apesar de seus muitos equívocos, uma aspiração que é não apenas legítima, mas democrática, ao se insurgir contra um governo, além de autoritário, ilegal, imoral, ilegítimo e corrupto, constitucional e politicamente.

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Nas últimas semanas li e ouvi inúmeras manifestações a pedir uma “intervenção militar”. O ápice dessa nostalgia autoritária foi a tentativa, patética e fracassada, de reeditar a Marcha com Deus pela Família. Nas cidades onde ocorreram, marcharam lado a lado militares; religiosos exaltados e fundamentalistas; tucanos e demos principalmente do baixo clero; eleitores sem partido descontentes com o governo do PT, a quem atribuem todo o mal que há no mundo; e militantes neonazistas, entre outros. Uma fauna apenas aparentemente diversa, que nas ruas e principalmente nas redes sociais apela pelo retorno ao autoritarismo.

O Brasil vive, principalmente desde FHC e Lula, um processo de aprofundamento e consolidação democráticos. Como toda democracia, a nossa também é frágil e precária, não porque ameaçada, mas porque em permanente construção e invenção. Estar atento às suas fragilidades implica, sim, criticá-la. Mas para fazê-la avançar, não para retroceder. Precisamos de mais democracia. Nunca de menos.