POR CLÓVIS GRUNER
Há cinco décadas o Brasil
acordou sombrio. Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, um golpe orquestrado
por forças militares e civis colocava fim ao breve interregno democrático que
se iniciara com o fim do Estado Novo, duas décadas antes. Uma democracia
sitiada, é verdade, e em permanente estado de tensão. Frágil e confrontada pelo
golpe, a ela se seguiu uma ditadura que se estendeu pelos 21 anos subsequentes,
e cuja herança nos assombra ainda, como um espectro não inteiramente sepulto. O jornalista Luiz Cláudio
Cunha resumiu assim o período e seu legado:
“A conta da ditadura de 21 anos prova
que ela atuou sem o povo, apesar do povo, contra o povo. Foram 500 mil cidadãos
investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de
subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos
inquéritos das Auditorias Militares, cinco mil deles condenados, 1.792 dos
quais por “crimes políticos” catalogados na Lei de Segurança Nacional; dez mil
torturados nos porões do DOI-CODI; seis mil apelações ao Superior Tribunal
Militar (STM), que manteve as condenações em dois mil casos; dez mil
brasileiros exilados; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos
políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e
estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados
ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245
estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proibia associação e
manifestação; 128 brasileiros e dois estrangeiros banidos; quatro condenados à
morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos
políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; três ministros
do Supremo afastados; o Congresso Nacional fechado por três vezes; sete
assembleias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa, à cultura e
às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje”.
Desde o começo deste ano não
faltam eventos a rememorar a data e avaliar suas muitas implicações: simpósios,
colóquios, programas de TV, edições e cadernos especiais na imprensa, títulos memorialísticos,
acadêmicos ou grandes reportagens revisitam sob diferentes prismas o período. Não
pretendo um balanço exaustivo dessa produção, nem tecer sobre a ditadura algum
comentário original. Mas como brasileiro e historiador, creio que é um
compromisso, além de profissional, também ético e político, contribuir para que
os eventos daquele fatídico 1º de abril não sejam esquecidos. E é nesse espírito
que gostaria de retomar três questões sobre o assunto, que considero fundamentais:
Um golpe contra outro
golpe – Consagrou-se em alguns círculos, e não apenas militares, a versão de
que o golpe de 1964 fez-se para evitar outro. Trata-se, obviamente, de uma narrativa
que interessa aos responsáveis pelas mais de duas décadas de ditadura, mas que não
se sustenta em nenhuma das muitas evidências históricas sobre o período. Em
entrevista concedida ao CPDOC da FGV, o historiador
Luiz Alberto Moniz Bandeira
fala das muitas “provocações” que antecederam o 1º de abril, essenciais
para criar um clima de animosidade e conflito necessário para justificar a tomada
de poder pela direita civil e militar. E embora admita a tendência à radicalização
de algumas lideranças ligadas a João Goulart, é enfático quanto à inexistência
de qualquer condição ou pretensão golpista, dentro e fora do governo: a
principal força de esquerda, o PCB, além de atuar na ilegalidade, tinha um
perfil muito mais reformista que revolucionário.
Havia um ambiente de conflito,
em parte decorrente da Guerra Fria e do fantasma da ameaça soviética. Se desde
o início da década de 60 falava-se do “perigo
comunista”, em um contexto de acirramento das tensões e posições políticas, o “perigo
comunista” se transformou na ameaça de um golpe que instauraria uma “república
sindicalista” aos moldes da revolução cubana. Mas fora da propaganda que ajudava
a alimentar a atmosfera golpista, a realidade era diferente. Se por um lado as
experiências de Cuba e da Argélia, ainda recentes, inspiraram parte da esquerda
brasileira, essa mesma esquerda não tinha pretensões nem tampouco fôlego para
qualquer coisa que, mesmo remotamente, sugerisse a revolução e o golpe.
Insisto: os principais
grupos e lideranças de esquerda eram reformistas: falavam
e defendiam a reforma agrária e as reformas de base; reivindicavam o
nacionalismo contra o capital estrangeiro; produziam uma cultura que se
pretendia “popular” como um meio de “desalienar” as massas demasiadamente
influenciadas pelos padrões culturais tidos por imperialistas, etc... A ameaça de
um “golpe comunista” é apenas mais uma mentira perpetrada pelos artífices da
ditadura. Repetida tantas vezes, ainda há quem nela acredite. Mas isso não a
torna uma verdade.
A ditadura não foi apenas militar – Não haveria golpe nem
uma ditadura que perdurou por duas longas décadas sem a estreita colaboração de militares e civis. Foi essa aliança que sustentou a ditadura, inclusive
financeiramente: hoje sabemos de empresários e grupos empresariais que levaram sua
adesão ao regime para além da simpatia, ajudando a financiar a máquina da
repressão que começa a funcionar já em 1964.
Também fundamental, e que finalmente tem merecido a devida
atenção de pesquisadores, foi o apoio dos meios de comunicação. Desde os pequenos
jornais do interior – como a joinvilense “A Noticia” –, até a chamada “grande
imprensa” – “O Globo”, “Folha” e “O Estado de São Paulo”, entre outros – raras,
raríssimas foram as exceções: os meios de comunicação não apenas ajudaram a
fomentar o golpe, colaborando para que se instaurasse no país um ambiente de terror
e temor. Consolidado o governo militar, poucos foram os que recuaram efetivamente
em seu apoio inicial, declarando abertamente sua contradição. A maioria
manteve-se titubeante, em parte pela ameaça da censura, mas também porque
continuava a reconhecer a legitimidade do governo militar.
E há, conhecidos, aqueles casos em que o apoio perdurou ao
longo dos 21 anos de ditadura, como a Rede Globo, numa relação promíscua em que
os sucessivos governos foram beneficiados com o suporte midiático, tanto quanto
beneficiaram empresas e empresários de comunicação. Aliás, nunca é demais
lembrar que se a cultura da corrupção está, ainda hoje, impregnada na vida
política do país, ela encontrou no ambiente instaurado pelo golpe de 64, um
terreno fértil. Foram duas décadas de corrupção e impunidade, favorecidas ambas
pela certeza arrogante que tem os governos autoritários, que nada nem ninguém
os ameaçam.
Resistências e repressão –
A repressão feroz que se abateu sobre toda e qualquer forma de oposição, tem
sido recentemente relativizada aqui e acolá, inclusive por alguns historiadores.
Mas não há relativização possível quando se trata da garantia dos direitos
humanos fundamentais, sucessivamente desrespeitados nos porões e Casas da Morte
onde a ditadura humilhou, torturou e assassinou oponentes. Sobre esses, já se
falou muita coisa, mas é preciso que se diga uma vez mais: nem toda oposição
aos militares pegou em armas. A luta armada, aliás, representou uma ínfima parte
de uma resistência que se fez também por caminhos institucionais – com a
atuação do MDB, da OAB, de setores da igreja, entre outros –; intelectuais e
artísticos, além das muitas tentativas de manter vivos e atuantes os movimentos
sociais urbanos e rurais. A ditadura não perdoou ninguém e tratou a todos,
indiscriminadamente, como criminosos e inimigos.
Pode-se dizer, hoje, que a
luta armada foi um equívoco, e que aqueles que lançaram mãos às armas não pretendiam,
efetivamente, a retomada da democracia, fazendo da oposição à ditadura um meio
para se atingir um fim: a instauração do socialismo. Tudo isso pode ser
verdade, e ainda assim nada disso justifica a violência do Estado. Primeiro,
porque a correlação de forças era absurdamente desproporcional: um punhado de
militantes, em sua maioria mal e parcamente armados e treinados, enfrentou o
poder e o aparelho do Estado, com seus muitos
mecanismos de inteligência e órgãos de vigilância, além das instituições repressivas,
parte delas atuando clandestinamente. Não havia ameaça e, mesmo se ameaça houvesse,
é terrorista o Estado que trata fora dos limites da lei cidadãos que, uma vez
rendidos, já não oferecem nenhum tipo de resistência.
Mas não é só. Não é
casual que a ousadia e a violência dos grupos armados e revolucionários aumentaram
na proporção da truculência institucional, de que o AI-5, decretado no final de
1968, é o marco histórico definitivo. Nesse sentido, a ditadura não apenas forjou
as condições para que parte da oposição optasse pela resistência armada. Ela forneceu
as razões políticas para todas as formas de resistência que se opuseram a ela. É preciso
que se diga, sem receio: é legítima a insurgência contra governos ilegais
que se sustentam na e pela tirania. Sob esse ponto de vista, mesmo a luta
armada traz intrínseca, apesar de seus muitos equívocos, uma aspiração que é não
apenas legítima, mas democrática, ao se insurgir contra um governo, além de autoritário,
ilegal, imoral, ilegítimo e corrupto, constitucional e politicamente.
***
Nas últimas semanas li e
ouvi inúmeras manifestações a pedir uma “intervenção militar”. O ápice dessa
nostalgia autoritária foi a tentativa, patética e fracassada, de reeditar a
Marcha com Deus pela Família. Nas cidades onde ocorreram, marcharam lado a lado
militares; religiosos exaltados e fundamentalistas; tucanos e demos
principalmente do baixo clero; eleitores sem partido descontentes com o governo
do PT, a quem atribuem todo o mal que há no mundo; e militantes neonazistas,
entre outros. Uma fauna apenas aparentemente diversa, que nas ruas e
principalmente nas redes sociais apela pelo retorno ao autoritarismo.
O Brasil vive, principalmente desde FHC e Lula, um processo de aprofundamento e consolidação democráticos. Como toda democracia, a nossa também é frágil e precária, não porque ameaçada, mas porque em permanente construção e invenção. Estar atento às suas fragilidades implica, sim, criticá-la. Mas para fazê-la avançar, não para retroceder. Precisamos de mais democracia. Nunca de menos.