sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

RUDOCOP


Mudar de canal não muda nada

Quino, genial.
POR FELIPE SILVEIRA

É comum, ao criticarmos a imprensa ou a mídia, ouvir a sugestão “troque de canal”. Ela é válida, sem dúvida, mas não resolve nada. A imprensa – e a mídia – vai continuar sendo ruim, muitas vezes fazendo um desserviço à sociedade e tantas outras vezes ganhando dinheiro e poder com isso.

Mudar de canal ajuda, pois você está tirando audiência de quem faz errado pra dar pra quem está fazendo certo, supostamente. O problema é que nem sempre é assim. Os jornais do meio-dia, por exemplo, costumam ser inspirados naquele que tem mais audiência, mas com pitadas mais “populares”, o que também dá audiência. De olho nesse “ibope” popular, o primeiro copia esses concorrentes. E a coisa vai ficando cada vez mais ruim. Sorteios, concursos, matérias cada vez menos informativas,  nunca reflexivas, que visam estimular o consumo e dar status de celebridades aos apresentadores.

Mudar de canal não vai mudar a maneira com que a coisa é feita, e essa maneira tem reflexos na sociedade – e, assim, na vida de todos, inclusive daquele incomodado que mudou de canal. É por isso que as TVs e rádios são concessões públicas.

Vários fatores podem influenciar uma possível mudança na maneira como o jornalismo e a programação de TVs e rádios são feitos. Um público mais exigente – e isso tem a ver com a educação de modo geral – vai cobrar mais qualidade, que deve ser oferecida por profissionais mais preparados – e isso tem a ver com mais acesso aos cursos de comunicação, que devem ser melhores do que são atualmente. Esses profissionais precisam ser unidos, para cobrar e conquistar melhores condições de trabalho (salário, carga horária, diminuição da pressão a qual estão submetidos, tempo e segurança pra produzir melhor etc). E, claro, uma mudança na legislação para cobrar que as empresas ofereçam, de fato, um serviço público, e que não sirvam como peça de manobra de interesses políticos e financeiros.

Além disso, o que considero mais importante é a crítica. Mais do que um direito, criticar é um dever. Isso tem a ver, claro, com a questão do “público mais exigente”, mas não somente, porque essa também é uma questão de tempo. A crítica vai além. Entendo que é uma cobrança constante por mais qualidade, que deve ser estimulada interna e externamente. Às vezes é injusta, às vezes é dura e pode até desanimar. Mas isso acontece, em parte, porque estamos acostumados a evitá-la.

Jornalistas e profissionais da comunicação em geral devem estar abertos a ela, até porque parte do seu trabalho é criticar, direta ou indiretamente. Lidar de maneira inteligente com ela só ajuda a aumentar a qualidade do trabalho, mas para isso é preciso lidar com ela e estimulá-la. Lembrando que lidar de maneira inteligente também pode ser refutá-la.

Mudar de canal não é a solução.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Coronér!


18 meses sem licitação e querem culpar a população

POR CHARLES HENRIQUE VOOS

Foto: Rogerio Souza Jr/ ND Online

Um dos grandes desafios de Carlito Merss era fazer a licitação do transporte coletivo. Não conseguiu cumprir. Desde que o contrato das permissionárias Gidion e Transtusa foi assinado em 1998, todos sabiam que dentro de 15 anos se daria o vencimento do mesmo. Udo Dohler assumiu sabendo disto. Após um considerável tempo de mandato, comunicou oficialmente que não conseguiria fazer a licitação dentro do prazo legal, e uma prorrogação emergencial das permissões seria necessária. Semanas depois, um novo comunicado dava conta de que uma nova prorrogação será feita, para atender aos pedidos dos movimentos sociais de Joinville, principalmente a Frente de Luta pelo Transporte Público. A sensação das entrevistas oficiais do prefeito na mídia é a de que o povo foi o culpado, e não os 18 meses de incompetência (já com a data da primeira prorrogação) para a não-elaboração da licitação.

O jornal A Notícia do último dia 10 retrata com perfeição esta manobra, a qual parece ser um favor de Udo Dohler perante a população:

Um mês depois de ter prorrogado a concessão do transporte coletivo com as empresas Gidion e Transtusa até o meio do ano, o prefeito Udo Döhler (PMDB) admite que terá de ampliar ainda mais o prazo antes de lançar o edital para a contratação das novas empresas que irão operar o sistema. A justificativa para o atraso é o pedido do Movimento Passe Livre (MPL) de que sejam feitas pelo menos 14 audiências públicas para discutir o edital.

—Não vamos mais apressar as coisas, nem nesse assunto e nem na LOT. Se é para discutir, iremos discutir com calma. O MPL quer 14 reuniões, sugerimos fazer oito, mas se o objetivo é debater, iremos debater e levar todas as opiniões muito a sério. Mas com isso, só se descer o santo para conseguirmos lançar o edital sem esticar a concessão um pouco mais—, explica o prefeito Udo Döhler (PMDB).

Esta declaração do chefe do executivo municipal muito me estranhou, principalmente ao lembrar da lei federal que instituiu o Plano Nacional de Mobilidade Urbana (lei 12587/12). Neste documento está muito claro que todos os cidadãos possuem o direito de serem ouvidos no que diz respeito ao planejamento da mobilidade urbana municipal, conforme enciso II, art. 14 da referida lei. Ou seja: não é nenhum favor, é obrigação.

Entretanto, os 18 meses de incompetência da atual gestão (sem esquecer as falhas da gestão anterior) deveriam ser apagadas de alguma maneira. A situação mais cômoda, como sempre foi, é o jogo de palavras, muito bem articuladas pela equipe técnica que assessora as estratégias do prefeito. E a culpa caiu nos movimentos sociais, os quais apenas querem fazer a lei ser cumprida.

A tentativa de desmoralização dos movimentos é evidente e recorrente. Vale lembrar que o mesmo aconteceu (e acontece) com os movimentos contestatórios da nova LOT, costumeiramente chamados de "donos do atraso", etc. Agora continuam com a insinuação de que tudo atrasou por culpa dos outros, e não por estarem fazendo as coisas da maneira errada. Como se a atual gestão não soubesse dos preparativos necessários para se fazer uma política de transporte seguindo a legislação vigente, pois, afinal de contas, o IPPUJ está lá desde a década de 1990 para isso.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Cão Tarado não me representa!


Direitos Humanos, o que é isso?

POR FABIANA A. VIEIRA

Alguém lembra da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados antes da presidência do deputado pastor Feliciano? Acompanhou a discussão da demarcação de terras indígenas, a violação dos direitos humanos, as políticas de igualdade racial, o arbítrio do poder de polícia nas mobilizações sociais, a situação medieval do sistema penitenciário ou os planos nacionais de Direitos Humanos ou combate à homofobia?

Às vezes só um susto faz a gente entender melhor as coisas. Ao mesmo tempo em que lamentamos a experiência retrógrada e perigosa da religião invadir a seara da política e produzir verdades da crença contra a contemporaneidade laica, devemos reconhecer que o mandato Feliciano na CDHM despertou a responsabilidade que é preciso ter com pequenos e relevantes detalhes da vida política.

No caso, todos aprenderam com a experiência quase trágica. O PT abriu mão de presidir a comissão pela opção de comandar áreas estratégicas do parlamento.  Depois de um longo período liderando a CDHM os petistas resolveram brincar de outros assuntos. Os demais partidos conservadores que não tem nenhum interesse pelos direitos humanos lavaram suas mãos e a comissão foi parar na carteira de um partido pequeno, quase inexpressivo, mas dominado pela inflexão religiosa. O resultado não poderia ter sido outro do que a contradição explosiva entre o preconceito e as mobilizações sociais. O radicalismo sugeriu uma divisão social e o fomento do ódio, quase uma luta civil. Até aqueles que tratam a religião como uma manifestação legítima e necessária da fé, repudiaram a aventura de misturar as coisas e fazer do aparelho legislativo um palanque de teses fundamentalistas.

Ao querer tratar as relações entre o mesmo sexo como doença, o pastor presidente mostrou que a minúscula e ignorada comissão da Câmara dos Deputados poderia fazer grandes estragos em mãos erradas. Passamos a entender mais verdadeiramente que a atividade legislativa, fazer leis, dizer o que pode e não pode legalmente, é uma função que merece respeito. Mais do que a face costumeiramente exposta do proselitismo, da demagogia e da corrupção, características sempre associadas aos parlamentares, os políticos tem um papel social que pode impactar decisivamente na ordem das coisas. Fazer uma lei amplia um direito e inaugura novos direitos, novas práticas, novas etapas civilizatórias. Mais uma vez, pela evidência do erro, aprendemos que precisamos obrigatoriamente escolher bons e confiáveis representantes para fazer a boa política.

A CDHM é tão importante como a Comissão de Educação, de Seguridade , de Constituição e Justiça ou da Amazônia. Debate e delibera sobre questões fundamentais para o exercício da liberdade e para a dignidade da vida humana. Exigir uma agenda afirmativa para o avanço dos direitos humanos é só o básico.

O PT, maior partido do Congresso, que lidera a coalização governamental e dirige a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, agora voltou atrás e vai presidir a CDHM. Espero que agora a ordem das coisas volte ao bom senso e seja possível discutir com mais seriedade questões que tencionam o nosso cotidiano como a intolerância dos ruralistas contra a demarcação de terras indígenas, o comportamento hediondo de racismo nos jogos de futebol, a escravidão moderna  e destruidora do futuro representada pelo trabalho infantil , os mau tratos contra idosos ou as renitentes e violentas discriminações pela opção sexual e contra mulheres que ainda teimam em desafiar a igualdade e a liberdade de opção em pleno século 21.

Querer recuperar o tempo perdido por um erro é uma situação que todos passam e que raramente conseguimos atingir com pleno sucesso. Por isso, para que a Câmara evite errar novamente, basta humildemente aprender com os próprios erros e levar a sério o verdadeiro significado dos direitos humanos.

Também seria bem interessante que todos nós pudéssemos acompanhar com mais atenção e participação o debate realizado pelos nossos representantes, não só em plenário, mas principalmente nas comissões, sejam elas quais forem.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Eu, consumidor

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Na semana passada rolou uma coisa esquisita. Recebi algumas mensagens de pessoas que me acusavam de estar a ser inconveniente. Tudo porque achei que devia ser bem tratado no comércio local. Que ousadia a minha. Tem gente achando que devo ficar caladinho quando sou destratado? Essa estúpida inversão de valores causou alguma azia e por isso volto ao tema.
Ora, leitor e leitora, é o oposto. Não é o estabelecimento comercial que faz o favor de me servir. É uma relação comercial. Uma empresa oferece um serviço e o consumidor paga por ele. Isso implica tratar bem o consumidor e respeitar os seus direitos (porque eles existem). É assim em civilização. Quem não se antenou está com um atraso histórico de pelo menos meio século. Na sociedade de consumo, a palavra é do consumidor.
Para repor os fatos históricos, resgato aqui o discurso do presidente norte-americano John Kennedy, feito no dia 15 de março de 1962, quando finalmente foi reconhecida formalmente a figura do consumidor e a sua importância para a economia. Foi esse discurso que abriu caminho para legislações específicas que vigoram em todas as economias de mercado.
Eis parte do discurso do presidente dos Estados Unidos: “Por definição, o termo consumidor inclui a todos nós. Eles são o maior grupo econômico, que afeta e é afetado por quase todas as decisões econômicas públicas e privadas. No entanto, é o único grupo importante cujos pontos de vista muitas vezes não são ouvidas”. A partir daí, o consumidor passou a ter voz e garantias. Quem não ouviu ficou no passado.
Qualquer empresário - seja do comércio, da indústria ou de serviços - sabe que o seu maior valor é a marca. E a construção dessa marca exige que o consumidor seja tratado com respeito. Não é favor nenhum. É uma obrigação. Por mais que um empresário ache que o seu negócio vai bem e tem margem para descurar o serviço prestado ao consumidor, uma hora ele vai pagar esse preço. É a economia.

Uma informação importante. Na Europa, em muitos países os bares e restaurantes têm uma coisa chamada “Livro de Reclamações” (foto), onde os clientes podem registrar as suas queixas. Há três vias. Uma fica com o cliente, a segunda no próprio livro e a outra deve ser obrigatoriamente enviada à entidade pública responsável pelo setor. Os comerciantes temem tanto as reclamações que fazem de tudo para evitar o recurso ao livro. Ou seja, atendem bem.
Mas tem gente defendendo a ideia de que é normal o consumidor ser mal-tratado. Ou afirmar que quem não está bem que se mude. Ou dizer que é o consumidor que deve se adaptar à lógica do comerciante. Ora, o texto da semana passada falava de uma certa “patologia da normalidade”. Infelizmente, essa normalidade impõe uma mentalidade terceiro-mundista, como podemos ver em alguns comentários ao texto da semana passada.

O tais leitores podem achar normal, mas eu não gosto de sair de um bar pela porta dos fundos e sem qualquer explicação. Mas isso sou eu...

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A reforma administrativa e o "Aurora"

POR JORDI CASTAN

Nem todos os episódios do início da história de Joinville são suficientemente conhecidos e estão propriamente documentados. Algumas histórias correm o risco de se perder se não forem recuperadas pelo trabalho dos pesquisadores e estudiosos. Conhecer a nossa história recente é importante, para não cometer os mesmos erros do passado.
A chamada reforma administrativa, proposta pelo prefeito Udo Dohler, imediatamente trouxe a memória o episódio protagonizado por Adolph Gottlieb, capitão do navio “Aurora”, que partiu do porto de Hamburgo em janeiro de 1859, com destino a Joinville, naquela época denominada Colônia Dona Francisca.  A saída do porto de Hamburgo foi num dia cinzento e frio, com água e neve batendo a coberta do “Aurora” e dezenas de famílias agasalhadas com pesadas roupas de lã, para se proteger do vento cortante.
À medida que o navio se dirigiu ao sul, as temperaturas ficaram mais amenas e, na costa do Algarve, os tripulantes e os passageiros desfrutaram de um clima quase primaveril. A costa de Marrocos, próximo a Casablanca, os recebeu com um calor sufocante, acentuado pela vestimenta pesada e de cores escuras que todos usavam.
Quanto mais ao sul o “Aurora” rumava, maior o calor e a umidade. E aos poucos também começava a ficar evidente o fedor que exalavam os passageiros e a tripulação, vestidos ainda com pesadas roupas de lã e sem adequadas condições de higiene a bordo. A situação chegou a ficar insuportável e mais de uma dama perdeu o conhecimento, tal a fetidez que exalavam todos. Foi neste momento em que o Capitão Adolph Gottlieb tomou uma atitude heroica e chamou a todos, passageiros e tripulantes, à coberta.
- “As condições de higiene ficaram insustentáveis e para preservar a saúde de todos a bordo, ordeno que troquem de roupas.” Todos quedaram atônitos ante uma ordem deste tipo, nunca vista antes num navio da companhia. Ante o espanto e inação de todos, o capitão bradou: “Helmuth troque as calças com o Norbert, Norbert troque de camisa com o Klaus, Klaus troque de cuecas com o Wolfgang, Wolfgang você troque as meias com o Joseph.” E seguiu dando ordens imperiosas. “Helga, troque a camisola com a Eva, Eva troque as suas anáguas com a Hilde, Hilde troque a blusa com a Heidi, Heidi troque as meias com a Gertrude.” E assim até que todos a bordo trocaram toda a roupa.
O “Aurora” continuou a singrar até chegar à foz do Cachoeira, e a sua chegada foi anunciada pela fetidez antes que se fizesse visível para os habitantes da incipiente colônia. Porque será que a reforma administrativa anunciada pelo prefeito me fez relembrar do episódio do “Aurora” e do capitão Adolph Gottlieb?

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

As cadeiras e a patologia da normalidade

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Tem muita coisa importante acontecendo por aí. Mas hoje vou falar de um tema que, parecendo irrisório, serve para compreender um pouco da patologia da normalidade (termo de Erich Fromm) dos joinvilenses: o costume de, nos bares e restaurantes, os donos levantarem as cadeiras (foto) a partir de certa hora. Já devo ter andado por algumas dezenas de países, do Paraguai à Noruega, e não me lembro de ter visto coisa parecida.
Correndo o risco de fazer uma análise redutora, acho que esse hábito deve ser uma exclusividade local: significa que é hora de “ir embora” porque o dia seguinte é dia de trabalho. Repito sempre, nas conversas com amigos, que viver em Joinville provoca a sensação de estar dentro de um livro de Max Weber. Aliás, ele exultaria por ver vívida a teoria que em outros tempos dividiu opiniões. Ou melhor, irritou os católicos:
“Os homens de negócios e donos do capital, assim como os trabalhadores mais especializados e o pessoal mais habilitado técnica e comercialmente das modernas empresas é predominantemente protestante”. 
As cadeiras sobre as mesas são a metáfora de um certo insconsciente social. Têm o poder de mostrar como o tempo parou, como a cidade se fecha para o novo, como as ideias do ócio e da boêmia não se encaixam na realidade. Onde vão os intelectuais, os músicos, os artistas, as vanguardas, os disruptores e outros vagabundos? Não vão a lugar algum, porque não existe um lugar para eles. Talvez porque a cidade sequer permita que eles existam.
A noção de tempos livres mudou muito desde o início do capitalismo. E nas últimas décadas a evolução aconteceu de maneira dramática, em especial com a automatização crescente dos processos produtivos e a revolução digital. Nos dias de hoje, os tempos livres ganharam um estatuto adequado a essa nova realidade. É assim no mundo moderno. Mas em Joinville há quem se agarre patologicamente a um passado mítico, onde tudo era “melhor”.
O tal inconsciente social define que ser “gente de bem” é ser ordeiro, trabalhador e não fazer marolas. Ou seja, a noção de liberdade está associada ao trabalho. E para que não me acusem de fazer uma crítica ao espírito do trabalho, recorro aqui a uma fala de Theodor Adorno, quando ele fala de tempos livres: homens não-livres que vivem a não-liberdade como se liberdade fosse. Diz o sociólogo frankfurtiano:
“Se se curasse responder à questão sem asserções ideológicas, tornar-se-ia imperiosa a suspeita de que o tempo livre tende em direção contrária à de seu próprio conceito, tornando-se paródia deste. Nele se prolonga a não-liberdade, tão desconhecida da maioria das pessoas não-livres como a sua não-liberdade em si mesma”.
É a patologia da normalidade. E mais não digo.
P.S.: O leitor e a leitora devem estar a perguntar sobre o que justifica este texto. É que ontem fui “convidado” a sair de um bar às 22h30min. Primeiro levantam-se as cadeiras, depois desliga-se o ar condicionado e por fim as luzes começam a ficar escassas. É hora de ir dormir. Porque amanhã é dia de trabalho.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Primeiro como tragédia, depois como farsas


POR CLÓVIS GRUNER

A morte de Santiago Andrade, cinegrafista da TV Bandeirantes, foi uma tragédia a que se seguiu a encenação de inúmeras farsas. Antes delas, um registro: a reação de alguns militantes de esquerda foi lamentável. Sob o pretexto de denunciar a indiferença das mídias e autoridades políticas aos mortos que antecederam  Santiago – já são uma dezena desde o início dos protestos, em junho do ano passado, a maioria vítimas da repressão policial –, vi principalmente nas redes sociais alguma coisa muito próxima à banalização do sofrimento e da morte.

Talvez porque acostumados a denunciar a violência policial, houve quem tivesse perdido momentaneamente o rumo diante das evidências de que, desta vez, não foram eles – os policiais, o governo, o Estado, enfim –, mas nós os que acionamos a arma que culminou na morte trágica e lamentável de Santiago. Tais manifestações, felizmente, vem sendo substituídas pelas reflexões suscitadas pelo episódio. E digo felizmente, porque a morte de Santiago tem servido de pretexto para que se teçam, em torno a ela, inúmeras narrativas que merecem análise cuidadosa pelo seu caráter farsesco e pelo risco que comportam.

A começar pela própria narrativa midiática. Foi do delegado responsável pelas investigações, Maurício Luciano, que partiu uma das sentenças definitivas sobre o caso: a morte de Santiago não foi um atentado à liberdade de imprensa. O alvo não era ele, mas a polícia. São óbvios alguns dos interesses que permeiam esses relatos. Não apenas o cinegrafista não foi a primeira vítima fatal das manifestações, como não é o primeiro profissional de comunicação a ser vitimado pela truculência. Desde o último dia 6, entidades de classe reiteram mais enfaticamente as denúncias que pipocam desde junho: repórteres, fotógrafos e cinegrafistas que cobrem as manifestações foram vítimas de inúmeras agressões. Na maioria das vezes os agressores eram policiais: uma repórter da Folha quase ficou cega depois de ser atingida por uma bala de borracha; um repórter da Carta Capital foi preso porque levava um vinagre na mochila, e assim por diante.

Por que esses casos não mereceram a mesma atenção e nem provocaram a comoção de agora? Há, claro, o componente midiático, e poucas coisas são mais espetaculares que uma morte televisionada. Mas mais importante que a espetacularização, amplamente explorada nos últimos dias, a morte de Santiago tem se prestado principalmente para fins políticos. Há as muitas dúvidas que pairam sobre a prisão dos dois suspeitos de terem sido os autores do disparo – e sobre isso, recomendo a leitura do sempre necessário Jânio de Freitas na Folha. E a vergonhosa tentativa das organizações Globo de ligar o episódio ao deputado Marcelo Freixo, do PSOL, responsável por denunciar a violência criminosa das milícias, que fazem há anos nas favelas da capital carioca o que Rachel Sheherazade saudou como novidade nos justiceiros da praia do Flamengo. Se limitada às disputas políticas regionais, a tentativa de vincular Freixo à morte de Santiago já seria sórdida. Suas implicações, no entanto, extrapolam as fronteiras cariocas.

O TERROR QUE VEM DO ESTADO – Em 2008, ainda sob o governo Lula, um grupo capitaneado pelo então ministro da Defesa, Nelson Jobim, e as principais lideranças militares, redigiu uma primeira proposta para o que definiram como uma “nova Lei de Segurança Nacional”. O projeto era claro em suas intenções: tratava-se de tipificar os crimes que, sob certa ótica institucional, atentassem contra a “ordem democrática”, definindo como terroristas lideranças e movimentos sociais tais como o MST, não por coincidência num momento em que a aproximação do governo petista com as lideranças ruralistas, hoje consolidada, já se esboçava.

O projeto não prosperou, em parte porque encontrou a resistência do ex-presidente Lula. Mas também porque faltava a ele um “gancho”, algo que lhe conferisse a urgência necessária para angariar a legitimidade de que carecem projetos de feição autoritária que, em nome da segurança, atentam contra os direitos e a liberdade – e o exemplo mais recente é o Ato Patriótico, decretado pelo republicano George W. Bush logo após os atentados de 11 de setembro de 2001. A morte de Santiago, vítima de um suposto militante do movimento Black Bloc, deu à direita mais raivosa e às lideranças governamentais o argumento que lhes faltava para criminalizar as manifestações e os manifestantes e, no bojo desse processo, os movimentos sociais.

Expressão máxima dessa orquestração é o projeto de lei que visa tipificar os chamados “crimes de terrorismo” – o PL 499/2013 – que corre a toque de caixa no Senado. Há inúmeros problemas no texto, notadamente sua definição vaga de terrorismo – “Provocar ou infundir pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade da pessoa” –, que na prática permitiria justificar como combate ao terror, entre outras coisas e principalmente, a repressão aos movimentos sociais e manifestações de rua. No mesmo diapasão está a proposta do secretário de Segurança do Rio de Janeiro, Mariano Beltrame, entregue ontem ao Senado Federal, de um projeto de lei para tipificar o “crime de desordem”, entendido como “praticar ato que possa causar desordem em lugar público ou acessível ao público, agredindo ou cometendo qualquer ato de violência física ou grave ameaça à pessoa, destruindo, danificando deteriorando ou inutilizando bem público ou particular”. 

Não é preciso muito esforço pra entender a lógica por trás das encenadas preocupações com a ordem pública. A curto prazo, a intenção é neutralizar ao máximo as manifestações de rua nos meses que antecedem a Copa da Fifa. A médio e longo prazos, o objetivo é assegurar aos governos, pouco importa quem ou quais partidos estejam à frente dele (Gilles Deleuze disse que todo governo é de direita, mesmo que alguns incorporem parte das pautas e do discurso da esquerda), os mecanismos simbólicos e repressivos imprescindíveis para assegurar uma ordem que interessa principalmente ao Estado. Se para isso seja necessário recorrer à ameaça da violência e ao medo, justamente os mecanismos de que se valem o terror e os terroristas, pouco importa. O terrorismo de Estado se auto-legitima ao apresentar-se como irremediável: o que no outro é terror, nele é ordem; o que no outro é violência, nele é uso legítimo da força. E se é o Estado quem combate o que ele próprio define como terrorismo, resta a questão: quem combaterá o terrorismo de Estado?