quinta-feira, 31 de maio de 2018
Diário da convulsão: nem os caminhoneiros param este país
POR FAHYA KURY CASSINS
1º dia: nem soube.
2º dia: não percebi o que estava acontecendo; muito e muito trabalho, tanto os de casa quanto os de bater cartão. Vi alguma coisa de passagem pelo Twitter, que me remeteu à última paralisação dos caminhoneiros, quando a Dilma estava no poder. Nem dei atenção.
3º dia: estava cansada, muito trabalho, cabeça ocupada com projeção das próximas semanas, fim de semana e (graças a Deus) feriadão. Ouvi comentarem aqui e ali. Reparei que no posto do caminho para o trabalho, que normalmente é mais em conta, a gasolina estava R$3,79 (dez centavos a mais que na semana passada).
4º dia: comentam que já está faltando verduras no supermercado. Minha mãe relata que a prateleira do feijão estava esvaziando, não encontrou os cortes de carne que queria. Às sete da manhã, o posto que tem movimento baixo estava com filas, gasolina a R$3,99. Neste momento me dou conta de que algo está acontecendo – e não é nenhuma bobagem. No trabalho comentam que correram abastecer, ainda tenho o suficiente para encerrar a semana. À tarde um conhecido conta que irá viajar de férias, dia 1º de junho, e a agência de viagem emitiu alerta sobre a possível falta de combustível e remarcação dos vôos. Fico preocupada. Tento me inteirar do assunto, vejo o Twitter: visão do apocalipse, ninguém imaginou chegar a tanto. Começam a cancelar aulas.
5º dia: percorro uns bairros atrás de carne e verduras/legumes. Vejo dois postos com combustível, num a fila conta com mais de 50 carros, preços acima de R$4,20. Tenho menos de meio tanque, não abasteço. Afinal, isso não pode durar tanto. Resolvo ficar em casa fim de semana, o carro reservado somente para emergências e acompanhar. Penso sobre nossa condição de subdesenvolvimento – eterno. Vejo reportagem sobre a difícil vida dos caminhoneiros, para ficarmos com pena deles – como se tantas outras profissões não fossem tanto ou pior.
6º dia: pessoas relatam horas nas filas dos postos. Estava de cabeça tão ocupada que não vi que ia faltar papel higiênico. Meu pai vai a pé até o supermercado, aproveita e traz óleo de soja, feijão e pão. Passo o dia acompanhando as notícias. Nada animadoras. Sem chance de apoiar os caminhoneiros. Um caos se anuncia e parece que vemos tudo de camarote – pela TV. A declaração do uso do exército e confisco de bens para liberar cargas me parece boa, a que ponto cheguei. Em Joinville tudo segue normalmente, avisam autoridades; à noite o combustível do aeroporto acaba. Descubro, via redes sociais, que quem chama os caminhoneiros de irresponsáveis está sendo manipulado pelo governo – são os mesmos que acham a paralisação o estopim de uma suposta revolução. Verificamos alimentos, itens básicos, remédios, ração para animais (até tartaruga). Não entendo quem ainda anda de carro, apesar de perceber o silêncio que está a rua. Ouço Jungmann e concordo com ele, a que ponto cheguei. Vejo muitos posts e lembro de como era bom nos tempos do FHC, gasolina a R$0,50 e dólar um real, mas os jovenzinhos que não me ouçam. Sinto-me uma viúva do FHC.
7º dia: O nervosismo que começou na sexta avança. Até o padre na missa pede paz, que rezemos pelo país e apoio aos caminhoneiros – juro que tento relevar. Cogito a única opção possível: ficar em casa e beber. Avisam que as aulas da universidade onde lecionam serão suspensas segunda e terça. Muitas teorias sobre a paralisação (impossível chamar de greve). Dizem, no FB, que é sensacionalismo criticar o desperdício de alimentos (ainda não é crime neste país) que estamos presenciando – nos caminhões parados, nos criadouros de animais, leite sendo jogado fora – e recrimino quem aplaude caminhoneiro que deixa passar a cerveja. Carreata de caminhões e carros (onde conseguiram combustível?) pede intervenção militar na porta de casa, não são poucos. Não entendo, ainda, o apoio popular. Gente bradando no Whatsapp que eles estão fazendo o que também deveríamos fazer (tipo, acabar com tudo de vez, e não procurar uma saída?) - fico quieta, não sou louca de discutir com louco de Whatsapp. Para não desgastarem a imagem, liberam ração para animais, medicamentos, oxigênio para hospital, carga viva. Apesar das concessões do governo, a paralisação continua. Atitudes muito suspeitas e planejadas – certamente há uma organização por trás disso tudo. Do nada surge a intenção de derrubar o Temer – como se fosse só ele. Acho que o momento requer muita cautela. Este problema que está aí vem de uma década, desde quando criticamos a compra desenfreada de carros, quando aquele presidente mandou – para “aquecer” a economia. Avisamos que daria merda, medida populista e temerária. Não fomos ouvidos, todos que compraram seu carrinho com entrada de mil e parcelas a perder de vista são culpados. Era uma estratégia para sustentar as mazelas do próprio governo – a bomba explodiu. O “Fora, Temer!” aumenta, vingança e recalque. Ele é nossa garantia de estabilidade até outubro – ruim com ele, pior sem. Povo clama intervenção militar para aguardar as eleições de outubro – tadinhos, perdoe porque eles não sabem o que dizem. Povo caindo na porrada por alguns litros de gasolina. Liberam alguns caminhões tanque, nada de liberar comida – que troço burro é esse? Acabou o ovo no Fort Atacadista, dizem que no Angeloni ainda tem. Pedestres e ciclistas fazem manifestação em apoio aos caminhoneiros – país da piada pronta. Governo fez várias concessões e nada; há algo de muito grande e sujo por trás. Vejo com desconfiança o apoio da população – imagino que acabará na mesma hora que o ovo e o feijão em casa: esperemos (não queria ver isto acontecer). #ficaTemer Certeza do dia: não é só pelo diesel. Em Joinville tudo parece continuar normalmente. Aulas não são suspensas, mas não podemos fazer avaliações, nem dar falta, nem conteúdo novo – pois pais não teriam onde deixar as crianças. Maioria das escolas procede assim. #professortambémégente Indústria farmacêutica parando por falta de insumos. Tupy e outras gigantes também. Assisto aos vídeos do “O Brasil que eu quero” no jornal: queremos só que ande, né. Cirurgias eletivas canceladas – me revolta, afinal quase não demoram para marcar, aí o paciente fica na esperança que marcou e acontece um troço desses, imagine o tempo que vai levar pra remarcar. Cancelam procissões de Corpus Christi na cidade, a pedido da secretaria de segurança.
8º dia: a democracia nas mãos do Temer, quem diria! Aguenta mais um pouco aí que as feras ignaras estão na praça (coordenadas pelos lobos atrás das cortinas). Vou duas vezes, a pé, ao centro. Movimento baixo do trânsito, as pessoas reaprenderam a andar. Lojas fecham mais cedo e fico com receio porque voltarei depois das 18h. Tudo muito vazio. A lua me acompanha, parece indiferente a este descaso que estamos relegados. A cidade está há mais de 24 horas sem combustível nos postos. Garantem apenas o transporte público e de viaturas. Notícias desanimadoras chegam de todos os lados. Greve, de fato, acabou. Mas as paralisações estranhamento continuam. Não há lógica, e sobram suspeitas. O que muito me perturba é o silêncio, por todos os lados. Não tenho dormido direito, inclusive, consultando o celular atrás de alguma notícia boa, e o silêncio das madrugadas é ensurdecedor – desacostumei. Planejo como ir trabalhar de ônibus amanhã. O cansaço e o desanimo com a tensão extrema dos últimos dias me consome. Ninguém está feliz. Na praça passo por crianças e babacas de verde e amarelo, com cartolinas escritas em letra cursiva: intervenção militar. Não há nenhuma mudança no cenário em Santa Catarina, enquanto outros Estados mostram avanço e melhorias. Falta pão e gás. À noite as empresas de ônibus anunciam que vão “diminuir os horários” devido ao movimento fraco (empresas parando). Mas não anunciam os horários que atuarão, se de sábado, domingo. Nenhuma informação disponível. Lembro que semana passada fui falar de liberdade de expressão, regimes democrático e totalitários nas turmas de oitavo ano. Nunca tinham ouvido falar em ditadura militar, exceto dois alunos. O perigo nos ronda.
9º dia: nada de novo em SC. Escolta apenas para produtos hospitalares e combustíveis para veículos de emergência. Governador é um asno e espera que morra alguém para achar a situação preocupante. Pouco antes de eu sair para trabalhar passa uma carreata enorme em direção ao centro, rua chegou a fica parada alguns minutos. Saiu para pegar o ônibus com antecedência. Meia hora passa um lotado e não pára. Em seguida chega outro, bem cheio, motorista avisa que não irá para o centro, bloquearam o terminal, ninguém entra nem sai. Do centro vejo um ônibus vazio e em seguida outro socado de gente. Espero mais um tanto. Nada. Pessoas começam a descer porque os motoristas avisam que não vão para o terminal. Registram roubos de bicicleta, com agressão. Angeloni fechará mais cedo. Imagino que logo teremos toque de recolher. Ouço o foguetório dos “vem pra rua”. Finalmente PRF e exército chegam aos bloqueios. Dizem que teremos gasolina em breve, algumas regiões recebem na mesma noite.
10º: Vou trabalhar. O assunto é só esse e as dificuldades enfrentadas por todos, até o Uber ficou caro. No meio da manhã dizem que um posto nos Espinheiros tem combustível. Vejo pessoas nas janelas, há fila no posto ao lado, previsão de chegar no meio da tarde – ainda é 11h. Não perdemos o feriadão, pelo menos. Sigo viagem, penso que encontrarei estradas livres de caminhões: que nada, está cheio deles e a sensação é boa (dizer isso, a que ponto cheguei). Postos pela BR com fila, alguns caminhões ainda paralisados. Os caminhoneiros podem tentar parar o país, mas não derrubarão a nossa Democracia. Sinto-me melhor, sem dúvida. Relatos de hostilização a quem abastece onde chega gasolina – o ser humano é incrível. O país sobreviveu a mais uma. O Temer também (mas ele tem data de validade, não nos preocupemos). Vou ao supermercado, prateleira de carnes completamente vazia, de pão também, de verduras pouca coisa. Mas há alface já. Esperemos, vamos sair dessa. Depois do feriadão a gente vê.
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Parabéns pelo texto. Ao menos alguém sensato nesse blog.
ResponderExcluirEduardo, Jlle
Obrigada.
ExcluirGostei de como analisar e criticar cada acontecimento não impede o diário de existir! Sério!
ResponderExcluirNão como opinião única e certa sendo passada pra frente, mas não excluindo o sentimento ao passar por esses dias. Estar grudada só ao papel - ou às telas - que "informam" me fazem ficar receosa na facilidade em tornar-me como eles, opacos e rígidos, indiferentes às pessoas. Mas isso aqui me deu um sorrisão, mesmo que bobo, porque apesar dos grandes textos que necessariamente serão lidos, grandes textos que são diários-e-só-sinceros são realmente valiosos.
não comentei sobre cada assunto em cada dia, mas deixo claro que os li. ehisto.
:)
ExcluirE não é que é? Não nos tornaremos como eles (mas devemos nos preocupar, sim).