quinta-feira, 1 de junho de 2017

Perdemos o apito das fábricas



POR FAHYA KURY CASSINS
Eles já deram codinomes à cidade. Ao sinal da fábrica vinham em hordas, com seus rostos cansados e sorrisos de ar puro. Misturavam-se ao que por ali passavam, reconhecíveis nos seus uniformes azuis de tecido inóspito e sapatos grosseirões. Curioso era o bambolear das pernas sincronizadas a empurrar os pedais rumo à casa, por vezes todo um esforço castigante, por vezes um cadenciado flutuar sobre o paralelepípedo.

Encontrei-os recentemente, de novo. Há tempos não testemunhava o evento. Eram menos, bem menos, mas ainda facilmente identificáveis. Hoje muitos não pedalam mais. Deixamos de ser a cidade das bicicletas? Temos, ainda, porém, muitas fábricas. O tempo dos dias de hoje duplicou distâncias e não mais vale atravessar a cidade sobre elas? Reparei que a saída do estacionamento estava cheia. Eram carros e motos de todos os tipos a tentar alcançar a via principal. Aqueles certamente não mais pedalavam.

Lembrei que estou lendo o tal livro de História “imparcial” da cidade, que foi, aliás, patrocinado com um prêmio da empregadora desses azuizinhos que migram todos os dias pelas nossas ruas. Um livro de História, dos mais gabaritados junto ao povo entendido, pago num prêmio dado por uma indústria, da qual uma grande parcela das pessoas (e da fama, e do sucesso, etc.) da cidade depende. Curioso. No mínimo, curioso: indústrias que detêm inclusive o discurso histórico de formação de um povo, de um determinado lugar.

Não sei se ainda a chamam de Manchester (agora depois do atentado talvez seja melhor deixar quieto). Flores não há mais – as malfadadas azáleas da JK, os inesquecíveis jasmins da Beira-rio, as hemerocalis dos canteiros, nem mais os anthuriuns dos jardins. E não precisávamos de ciclofaixas para acompanhar o espetáculo dos finais e começos de turnos. Era um formigueiro que dava vida aos bairros. As filas de carros parados certamente fazem o contrário: morremos em dobro nas horas insanas que perdemos atravessando a cidade.

Sempre achei que uniformes são uma forma de apagar a identidade das pessoas. Querem-nos todos iguais, obedientes, maquinais. Eis o progresso, o sucesso, a escalada para ser a maior. Nos ensinam o conhecimento prático, que em nada é reflexivo, apenas aprendemos uma sequência de ações que dão um determinado resultado e cumprimos horário e recebemos os salários todos os meses e um chester no final do ano (se não houver crise). Noutros tempos, ao menos, havia poesia em vê-los azuizinhos a lufarem a saída da fábrica sob o apito estridente, nas suas bicicletas coloridas em contraste, por vezes, com o céu nublado de chuva fina. Noutros tempos sonhávamos que aquele era o único caminho e nem atentávamos que do outro lado da rua havia escolas.

3 comentários:

  1. Quanta crítica à indústria vinda de esquerdistas que estudaram em bons colégios particulares e cresceram com ovomaltine... Aposto que quem pagava as mensalidades proibitivas era alguma mãe ou pai que trabalhava uniformizado em algum chão de fábrica.
    Sobre uniformes, alguns dizem que servem para "uniformizar" um grupo, para que todos se olhem como "iguais". Não sei se isso é bom ou ruim, mas nos países que tentaram o comunismo, como a China, vários cidadãos vestiam nas décadas passadas o mesmo tipo de roupa. Somente com a capitalismo e abertura para alguns valores ocidentais, os chineses descobriram que são um tantinho diferentes. Que tal a autora fazer como chineses de hoje, abrir um pouco a cabeça e deixar de ser preconceituosa contra os trabalhadores da indústria que ao menos têm um emprego, ao contrário dos mais de 14 milhões (25 milhões, para ser mais exato) de desempregados por conta de políticas desastrosas deixadas pelo governo que ela apoiou nos últimos 14 anos.

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  2. O livro da História de Joinville foi um concurso, e Carlos Ficker venceu. Não foi uma encomenda, e o autor viajou até a Alemanha para pesquisar.

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  3. Pois "pago num prêmio dado por uma indústria".

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